Acordo de financiamento entre Angola e China no pós-guerra: o petróleo como contrapartida para a reconstrução de Angola

Boletim nº 71, 30 de junho de 2023

 

Por Bráulio S. André [1]

 

Acordos de Paz e o Plano de Reconstrução Nacional

A 4 de Abril de 2002, o governo angolano suportado pelo Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) assinou, juntamente com a maior força política na oposição, a União Nacional para Independência Total de Angola (UNITA), um acordo de paz que colocou fim a uma guerra entre estes movimentos políticos que durava vinte e sete anos (1975 – 2002). Levando em consideração o período de guerra anticolonial, que teve início em 1961, posteriormente a guerra entre os movimentos independentistas a partir de 1974, Angola vivenciou uma situação de conflito sem interrupção de aproximadamente quatro décadas desde a sua independência. As divergências entre os movimentos independentistas, com seus diferentes núcleos apoiantes e projetos políticos antagônicos, serviram para dar início a um dos mais longos e fatídicos conflitos da África Subsaariana.

Esta guerra produziu uma destruição completa de todas as estruturas e infraestruturas das antigas cidades coloniais, deixando um saldo de mortes, minas terrestres, degradação e deterioração das estradas, migração e êxodo rural para as cidades mais seguras (no caso Luanda, a capital de Angola). Segundo Sofia Fernandes (2015), em 2002, quando a guerra terminou, a população que vivia em Luanda estava confinada a um perímetro de segurança de cerca de cinquenta quilômetros em torno da capital.

Objetivando a reconstrução do país, o governo de Angola elaborou um Programa de Reconstrução e Reabilitação (PRR), cuja implementação ou execução dependia estritamente de financiamento. Este documento serviria inicialmente como proposta para negociação entre o governo angolano e uma conferência de doadores. No programa foi dada prioridade à construção e reabilitação de infraestruturas viárias, conjuntos habitacionais e novas cidades construídas de raiz (do zero), dada a situação de degradação e destruição generalizada em que se encontrava o país. O documento incluía ainda a necessidade de doação para despesas de reassentamento e reinserção social de pessoas deslocadas e desminagem, governação, gestão macroeconômica e despesas sociais.

Assim, o Programa de Reconstrução de Reabilitação do governo foi apresentado ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD20 como um documento que orientaria a negociação entre o governo angolano e uma esperada conferência de doadores, para apoiar a reconstrução do país (PNUD, 2004).

As condicionantes do FMI e a reação do governo de Angola

Em Angola, havia uma grande expectativa, mas o problema começa a surgir, quando o Fundo Monetário Internacional – FMI, renovou a exigência de transparência das contas públicas angolanas, nomeadamente no que refere à demonstração da utilização de receitas do orçamento entre 1997 e 2002 e, em simultâneo o governo deveria iniciar um programa de estabilização macroeconômica monitorizado e aplicar medidas de corte de despesa pública, direcionadas à diminuição do papel e do peso do Estado na economia. Estas medidas referiam-se à diminuição da despesa pública, assim como à diminuição do número de funcionários afetos a departamentos estatais, assim como a diminuição de subsídios a bens públicos e a empresas estatais de energia elétrica, água e aviação aérea (como  Empresa de Distribuição de Energia de Luanda – EDEL, Empresa Pública de Águas de Luanda – EPAL, Transportadora Aérea de Angola – TAAG etc.).

Estas medidas foram consideradas contrárias à agenda política do governo angolano. Num contexto de pós-conflito, o governo demonstrou intenções de sinalizar a entrada num novo ciclo em que à situação de penúria da população, de desestruturação dos serviços e infraestrutura e de violência estrutural que dominara as relações sociais se seguiria uma fase de crescimento econômico, estabilidade política, coesão social e melhoria da qualidade de vida das populações.

Com o FMI contrário a renunciar às suas condicionantes – típicas dos programas de assistência externa pós Guerra Fria — surge em março de 2003 a oferta de acordo de financiamento chinês. A proposta chinesa, negociada em março de 2003, acabou por responder às necessidades financeiras e objetivos do governo angolano, direcionados à reabilitação e reconstrução de estruturas e infraestruturas destruídas pela guerra.

Acordo de Financiamento Angola-China

Em março de 2003 foi assinado o Primeiro Acordo no Quadro de Financiamento entre o Ministério do Comércio da República Popular da China e o Ministério das Finanças de Angola, operacionalizando uma linha de crédito no valor de 2 bilhões de dólares, que deveria ser executada entre 2004 e 2007, ao abrigo do Acordo-Quadro para a Parceria Estratégica Público-Privada

Em 2007 é assinado um novo acordo de financiamento de 2,5 bilhões de dólares. Estes empréstimos, outorgados por um banco estatal que funciona como entidade financiadora dos acordos bilaterais assinados pelo Ministério do Comércio Chinês, perfizeram um total de 4,5 bilhões de dólares. Em paralelo, a Presidência angolana negociou com um fundo privado chinês, o China International Fund, um outro financiamento com um valor oficial de 2,9 bilhões de dólares. Estes financiamentos públicos e privados chineses à Angola, totalizaram 7,4 bilhões de dólares (FERNANDES, 2015).

É no âmbito deste acordo que vários projetos são desenvolvidos em Angola: construção e melhoramento de aeroportos; recuperação de ferrovias, melhoramento de quebra-mar em portos; reabilitação e construção de novas estradas municipais e interprovinciais; melhoramento de hidrelétricas; construção de estações e subestações elétricas; construção de condutas adutoras de água; construção de novas centralidades urbanas.

Como era de se esperar, o acordo de financiamento entre o governo angolano e o Ministério do Comércio foi desta forma caracterizado pela complementaridade de interesses, através do qual para a China era garantida um abastecimento regular de petróleo, ao passo que para Angola era garantida uma fonte de financiamento com recursos avultados, sem imposição de condicionalidades políticas e/ou econômicas.

O petróleo como contrapartida ao financiamento chines

Angola recebe o estatuto de país produtor de petróleo no IV Congresso Mundial do Petróleo, realizado a 7 de junho de 1955. Esse estatuto foi atribuído pelo fato de, na noite de 12 para 13 de abril do mesmo ano, ter ocorrido em Angola a primeira descoberta de petróleo com interesse comercial em toda África Subsaariana. A descoberta foi feita por meio de prospecção pela Petrofiina, companhia petrolífera belga. A reserva petrolífera estava localizada na Bacia Hidrográfica do Kwanza a 300 kms ao longo da costa Atlântica, com uma profundidade de 140 km (Jornal de Angola, 2018).  

Dali em diante têm sido descobertas inúmeras reservas de petróleo em Angola, o país chegou a estar na segunda posição na produção de petróleo em 2014, atrás apenas da Nigéria. Em 2022, o país chegou a produzir em média 1,18 milhões de barris diários (jornal de Angola, 2022). Várias são as multinacionais petrolíferas a operar em Angola, como por exemplo: BP, Statoil, Total, Chevron, entre outras.

Por Angola não ter uma economia diversificada, todos os grandes projetos, todos empréstimos a organismos internacionais, toda sua estrutura macroeconômica e social, são suportados e/ou financiados pelas receitas provenientes dos royalties do petróleo e/ou pelo envio de remessas de petróleo como forma de pagamento.

É neste quadro, que no âmbito do acordo de financiamento entre o governo angolano e o governo chines, foi desta forma caracterizado pela complementaridade de interesses, através do qual para a China era garantida um abastecimento regular de petróleo, ao passo que para Angola era garantida uma fonte de financiamento com recursos avultados para execução dos seus projetos, sem imposição de condicionalidades políticas e/ou econômicas.

Neste sentido, o petróleo se configura como principal produto de exportação de Angola e representa 96% do total de exportações, seguido dos diamantes que pesam em média 3% das exportações do país.

 

Fonte: Banco Nacional de Angola (apud relatório das relações China-Angola, CEIC, 2020)

Desde que terminou a guerra em Angola (04/04/2002), a China tem sido o destino principal das exportações do petróleo de Angola, o que a torna o maior parceiro comercial de Angola.

No gráfico acima, é possível notar o aumento da percentagem de petróleo que é exportado para a China. Só em 2012, dos USD 68,8 bilhões de exportações de petróleo, 49,6% foram destinados à China. Mesmo com a diminuição das exportações totais de petróleo nos anos seguintes, devido às sucessivas quedas no preço do barril de petróleo, a percentagem destinada a China continua a aumentar sendo em 2018 de 65% e no primeiro semestre de 2019 de 69% (CEIC/UCAN, 2018, p. 76), o que em termos monetários representava à época USD 16 bilhões. 

Outro aspecto importante a considerar é que o petróleo angolano não apenas operacionalizou a forma de pagamento ao financiamento chines, mas também influenciou para que outras frentes comerciais com a China fossem abertas. Isso fez com que a China se tornasse desde 2002 um dos principais (se não o principal) fornecedores de bens à Angola, ocupando os três primeiros lugares dos 10 países que mais fornecem bens à Angola, à frente de Portugal e Singapura.

Segundo o CEIC (2020), em termos dos países fornecedores de bens à Angola, em 2012 a China ocupou a terceira posição (9%), depois de Portugal (16%) e de Singapura (15%). Entre 2015-2018, o quadro muda e a China se torna o principal fornecedor de bens à Angola (14%), ficando em segundo lugar Portugal (13%).

Com a entrada de João Lourenço como presidente da república de Angola em 2017, Angola começa a voltar novamente seus olhares para o ocidente e em 2019, a China volta para a posição de segundo maior fornecedor de bens à Angola, avaliados em USD 961,7 milhões (12% das importações), depois da França (23%) que aparece pela primeira vez na história de Angola como principal fornecedor de bens.

Fonte: Banco Nacional de Angola (apud relatório das relações China-Angola, CEIC, 2020)

De qualquer das formas como exposto no gráfico acima, apesar de entrarem novos players nas relações com Angola, só em 2018, as exportações de petróleo à China foram 14 vezes superiores aos valores das importações.

 

Considerações finais

Isto posto, podemos concluir e considerar o petróleo como principal forma de pagamento pelos empréstimos feitos à Angola, objetivando a execução dos seus planos, programas de reconstrução nacional.

Os acordos com a China permitiram à Angola a captação de recursos financeiros consideráveis que permitiram a execução de grande parte das obras de infraestruturas em todo território nacional, apesar da existência de contestação de qualidade em alguns projetos, não se pode negar que o país beneficiou muito de um modo geral. Estes acordos ainda permitiram a vinda de empresários chineses com disposição em investir no aumento da produção nacional e na geração de empregos.

Neste sentido podemos inferir que foram acordos que favoreceram os dois lados. Por um lado, favoreceu consideravelmente Angola que precisava do financiamento, das empresas de construção e da matéria prima chinesa para execução dos projetos, mas que não tinha interesse em realizar as reformas impostas pelo FMI, dada a sua conjuntura de país recém-saído de uma guerra. Por outro lado, a contrapartida de petróleo favoreceu consideravelmente a China, enquanto uma potência e segunda maior economia mundial, precisa de reservas deste recurso disponíveis para manter toda sua cadeia produtiva e/ou indústrias em funcionamento.

Vale ainda lembrar que as relações comerciais entre Angola e China são caracterizadas por uma complementaridade de interesses. Angola vende à China matéria-prima, o petróleo bruto, e a China vende a Angola produtos industriais acabados com maior valor agregado.

Deste modo o petróleo angolano tem tido um papel decisivo na reconstrução de Angola no pós-guerra. O país enfrenta agora o desafio de aproveitar os royalties do petróleo para investir em outros setores e assim diversificar sua economia. É um caminho complexo, passível de outras abordagens e que daria espaço a outro artigo. Por agora, ficamos por aqui, acreditando que possa ter sido possível compreender minimamente a importância deste recurso para o desenvolvimento de Angola, nas últimas duas décadas.

[1] Bráulio Sebastião André é Doutor pelo Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – IPPUR/UFRJ. Doutorando em Economia Política Mundial pelo PPG/EPM da Universidade Federal do ABC. Professor de Planejamento e Política Regional, Ordenamento e Gestão do Território, Geopolítica e Geoestratégia do Território no Instituto Superior Politécnico Metropolitano de Angola – IMETRO e na Universidade Independente de Angola – UNIA. Coordenador do Núcleo de Pesquisa Observatório das Cidades e Regiões Africanas em Angola – OCRA/Angola. Pesquisador vinculado Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES/Brasil e ao Ministério do Ensino Superior Ciência Tecnologia e Inovação de Angola – MESCTI/Angola.

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