Artigo: A Ação da Violência Neoliberal sobre o “Outro”, por Hilder Alberca Velasco
Boletim n°62, de 15 de junho de 2022
A Ação da Violência Neoliberal sobre o “Outro”, de autoria do mestrando em Planejamento Urbano e Regional (PPG-PUR/IPPUR), Hilder Alberca Velasco, foi inspirado e produzido durante as aulas da disciplina de Sociologia para o Planejamento II/2022, ministradas pela professora Soraya Silveira Simões.
Ação da Violência Neoliberal sobre o “Outro”¹
Hilder Alberca Velasco²
“Huancabamba sinchikunapak llakta, Pariacaca Shamun runakuna. Huancabamba, mana karanchikchu, ashtawankarin kikinta kamakrinchikmi. Huancabamba kuyaylla kuska kawsankapak, chaypi hampik kuchakuna wakan, asin kikinkunata, rikutakrikkunat. Huancabamba awkakunapa llakta sumaychanata rurashka mana chikankunawan kumushka kana”.
“Huancabamba tierra de guerreros varones y mujeres, prometemos cuidarte. Son los cerros, lagunas, y ríos, los que te dan el poder infinito. Por eso tus hijos e hijas estamos para defenderte, venerarte, y no regalarte. El Güitiligún es el Dios de los Pumas, donde los Jaguares te guardan, te amparen, y por siempre así será. Huancabamba tierra de valientes, y descendientes de los indios del Pariacaca” (HILDER ALBERCA VELASCO, 2021)
INTRODUÇÃO
Martin Heidegger (2005) nos propõe fazermos uma pergunta: o que significa pensar? “A princípio”, o conceito “Outro”, no presente texto, é descrito a partir da concepção de Emmanuel Levinas (2001) para refletir a negação do sujeito por um ego dominante que oprime, desqualifica, invisibiliza, extermina, estigmatiza o Outro por meio da coerção e, no pior dos casos, da submissão da força. O Outro nesta breve reflexão, tendo em conta o debate do autor, é todo aquele corpo e rosto na situação do oprimido. Ao mesmo tempo, o Outro é aquele corpo que, estando fora do sistema, tem que se levantar e se auto identificar como uma alteridade livre e autêntica. Ou seja, o Outro não é só um conceito para se referir a um corpo estigmatizado, mas é também um conceito abstrato. Daí que ser “Outro” também pode ser descrito como um ser, agente, pessoa, sujeito, indivíduo, sociedade ou cultura que não se enquadre em um ego do opressor. Então, o Outro terá um rosto de inferioridade desde 1492, tal como o caso do Sul Andino Indígena Plurinacional / Colonialidade/ Modernidade. Como Enrique Dussel (1994, p.34) afirma, o ego moderno apareceu em seu confronto com o não ego; os habitantes das terras recém-descobertas não aparecem como Outros, mas como os mesmos a serem conquistados, colonizados, modernizados, civilizados, como “matéria” do ego moderno. Então por colonialidade e modernidade entendemos a uma estrutura de opressão, mudança cultural, social. Em resumo, Modernidade/Colonialidade será o novo que tem que se impor sobre o que é considerado arcaico ou inferior.
Na contemporaneidade, encontram-se muitos estudos para refletir sobre a “classificação racial”. Aqui, partiremos da ideia de Aníbal Quijano (2014, p.318), que considera, antes de mais nada, que é importante saber que as relações do poder sempre têm constituído um campo importante para a classificação social e racial. A classificação racial é uma construção da ideia de vencedores e vencidos, justificada desde a categoria de raça. Nesse sentido, o tema da raça tem a ver com a ideia de classificação de identidades superiores e inferiores. Por violência se entende o sentido total da negação de um corpo ou rosto humano. Tanto que se esse corpo se negar a ser parte de uma estrutura dominante, não lhe resta outra coisa que não ser eliminado ou submetido à força física e/ou simbólica. A violência nos territórios do Sul é também simbólica, no sentido de que o abandono do Estado sobre a cidadania é violência. O empobrecimento dos povos, o analfabetismo, a falta de políticas públicas são violência. Então, parte-se da ideia de que uma ação carrega todo um instrumento de luta que pode ser ideológico, político e econômico. Ao refletirmos sobre a violência neoliberal, situamos o fato de que as práticas adotadas pelos agentes do capitalismo levam muito a sério o poder da ação para dominar.
A narrativa tem o objetivo de refletir sobre a ideia da violência neoliberal representada pelo Estado e seus aparelhos administrativos e, desta maneira, apontar o sentido repressivo do Estado sobre o sujeito racializado (empobrecido = afrodescendente, Indígena). Marielle Franco (2014, p. 33) deixa claro uma mostra da coerção do Estado neoliberal sobre o Outro como um ente exteriorizado, como um nada, isto é, “quanto maior o planejamento do Estado, maior o planejamento do próprio indivíduo pelo Estado e com isso o fim progressivo da liberdade”. A autora enfrenta uma reflexão concreta no mundo do oprimido, dado que o sujeito é submetido a uma cadeia de controles e disciplinamentos, que o convertem em uma espécie de homem punido cultural, econômica, política e simbolicamente, o que chama a atenção quando a autora fala sobre “o fim da liberdade” do Outro como oprimido e, ao mesmo tempo, como Outro, sujeito divergente. A violência praticada pelo Estado Capitalista contra os Outros, na contemporaneidade, nos leva a retomar as compreensões sobre o Neoliberalismo -e a sua atuação na prática da vida cotidiana – como um fato importante. Posto que o Neoliberalismo ao ser tratado como ideologia política e econômica, contendo uma lógica de acumulação do capital, ao pensar no Sul, segundo os estudos de Marielle Franco, notamos que as abordagens, desde o ano 1970 em diante, seguem sendo um grande pacote oferecido pelos Estados Unidos para os países do Sul Andino Indígena Plurinacional[3].
1. MARIELLE FRANCO: COMO O SEU EXEMPLO DE LUTA PELOS OPRIMIDOS SERVE PARA REFLETIR A LUTA DO MOVIMENTO SOCIAL INDÍGENA DAS RONDAS CAMPONESAS DO PERU, A PARTIR DA PROPOSTA DO ESTADO NEOLIBERAL.
Aníbal Quijano (2009) considera que a classificação da raça/etnia é consequência da colonialidade que entra em contato com o território do Sul Andino, 1492 em diante. Por isso, o sentido repressivo do Estado Moderno sobre o sujeito racializado é um fenômeno constante até agora. O Estado peruano opera uma concentração de poder, na qual em torno dos processos políticos, agendas de governo, programas e políticas públicas?) configura-se o sistema de opressão e de administração do poder junto ao neoliberalismo.
Os agentes, os entes culturais[4] que participam do presente texto reflexivo e sociológico, integram essas arenas de disputa de poder e constituem as chamadas Rondas Camponesas do Peru, exclusivamente as bases ronderas do norte peruano na província de Huancabamba, Piura. Ao mesmo tempo, o campo territorial onde se situa a luta de resistência e genocídio é a Comunidade Andina Indígena Campesina de Segunda e Cajas frente a Empresa Minera Rio Blanco Copper. Refletir sobre o nosso tema desde a perspectiva de Marielle Franco já é um desafio interdisciplinar. A autora traz contribuições para reflexão desde um olhar crítico revolucionário periférico. O que se pretende dizer é que a fala da autora parte do campo cultural do oprimido em divergência com o sistema colonial moderno chamado Estado capitalista moderno. Sendo assim, o que defendia Marielle Franco?
A primeira coisa que importa poder distinguir é a luta pelo território vivido, bem como a luta pelo reconhecimento da vida que naquele território se constrói a cultura e um amplo campo de identidades políticas (os moradores da favela). Assim, a luta pela terra e a reivindicação ao não racismo do Estado é uma luta que cobra vidas e se seguirá cobrando. Refletindo sobre o contexto do Peru, consideramos que os referidos processos são igualmente desencadeados pelas disputas territoriais que o Estado, diante da ingerência neoliberal, hoje, também cobra vidas e as pune.
Por isso, as Rondas Camponesas do Peru são compreendidas como um Novo Movimento Social, Indoandinocampesino, que surgiu nos anos 1970 no departamento de Cajamarca, nos Andes. Ressaltamos que a luta pela terra é uma luta antiga e histórica entre a Modernidade/Colonialidade do Poder frente ao Outro (Indígena). As Rondas, como são denominadas, têm como objetivo o cuidado de seus territórios e seus recursos naturais – água, flora e fauna.
Por serem uma organização comunitária indígena, as Rondas trabalham dentro da ética do cuidado, divergindo dos interesses e das muitas máscaras do Estado moderno capitalista, e dos programas capitalistas, tais como o (neo) extrativismo, que é oferecido pelas empresas mineradoras. Dentre os seus valores e práticas, tem uma aproximação endógena com o Bem Viver e com os pressupostos da Filosofia Andina. Essa implícita reflexão parte dos postulados teóricos que a filosofia constrói ou existe desde onde há uma razão. Portanto, os povos originários, ou qualquer outra cultura, fazem, sim, sua própria filosofia. As favelas, os Movimentos Sociais, fazem sua própria filosofia. No entanto, há que se ter o cuidado em saber distinguir entendimento ou subjetividade e razão concreta.
É uma luta que ainda sofre a busca da filosofia concreta desde o Sul. Assim, fica descartado acreditar que somente existe razão humana desde o Ocidente. Ao contrário, fica comprovado que o Sul é um rico campo cultural que, antes de excluir outras formas culturais, é sua essência ser includente e diversa. Com isso, as Rondas constituem um Novo Movimento de novos índios na figura de indoandinoscamponeses, entendidos como entes andinos indígenas e campesinos, na contemporaneidade, além de modos de resistência de uma parte do Sul Andino Indígena Plurinacional (O Peru).
Em Uriel García (1973), o “novo índio “é contemplado como as novas gerações dos povoados que se localizam nas zonas andinas e, de forma geral, possui uma ligação estreita com as antigas culturas e identidades do primeiro índio (outras alteridades livres, todas as civilizações de cultura ditas como sem razão ou selvagem – indígenas e afrodescendentes).
As Rondas Camponesas também seriam agentes que têm uma atuação política em suas comunidades: fazem política, no sentido da palavra, fazem da ação um ato político, dado que se organizam em redes, mediante bases de resistência nos territórios. É um Movimento Social que tem suas atividades reguladas pela Lei 27.908/2003 para sua atuação, mas, ao mesmo tempo, atuam com o direito consuetudinário. O “Movimento Rondero Indígena” se diferença dos grupos de Autodefesa organizados pelo governo de Fujimori, e que contam com a participação do exército peruano.
O campo de intervenção daqueles grupos se deu no conflito ideológico e político interno que o país viveu na chamada época das guerrilhas de Sendero Luminoso e o Movimento Revolucionário Tupac Amaru (MRTA). Os Comitês de Autodefesa seriam uma força paramilitar organizada pelo Estado peruano para combater as guerrilhas.
O território (imagem 1) de atuação do Movimento Andino das Rondas Camponesas de Huancabamba situa- se nos Andes do Departamento de Piura. Huancabamba se situa na Cordilheira Andina a 1.933 m.s.n.m. ao norte do Perú. O conflito socioambiental mineiro entre Rio Blanco Copper, em 2021, e as Rondas Camponesas e comunidades continuam vigentes.
O projeto minero não tem licença social para operar ou explotar, dada a negativa das comunidades e o Movimento Rondero que mediante a Consulta Prévia dizerem não ao projeto minero o 16 de setembro de 2007. As Rondas Camponesas do Peru existem desde 1976, completando 46 anos de atuação em 2022, enquanto as Rondas Camponesas da Província Huancabamba existem desde 1983, há 39 anos, exercendo a justiça comunal consuetudinária.
Justiça Comunal Comunitária é o uso do Direito Consuetudinário em si, para uso do equilíbrio da vida entre habitantes de um território. Entender Justiça Comunal é entender uma parte do chamado Bom Viver na parte da ética do cuidado. É por isso que, para os que estudam o Bom Viver, ele não é um simples conceito. Há que ir ao campo a interpretar, e cada povo tem uma descrição do que seria o Bom Viver5.
O que escrevo não é subjetivismo, é realidade. O Movimento Rondero nestes povos Andinos Indígenas teria melhor funcionamento em emitir justiça do que a polícia controlando a ordem interna e externa dos territórios. Então, Justiça Comunitária Rondera é facilitar e solucionar os problemas dos habitantes das comunidades sem defender a participação dos entes jurídicos do Estado peruano.
Imagem 1. Departamento de Piura, Peru
Fonte: Minha Região, Piura (2010)
O novo índio, o indígena andino campesino, seria a forma de entender o ente rondero(a). Na imagem 2, vemos os indígenas rodeiros(as) do norte peruano Huancabamba protestando pelas suas terras comunais e outros conflitos, como o Estado peruano fica em defesa do neoextractivismo mineiro. Neste sentido, a repressão (imagem 3) também foi efetuada pelo Estado e seu aparato militar.
Imagem 2: Protesto das Rondas Camponesas contra o neo extractivismo minero
Fonte: Arquivo de trabalho (2020)
No Peru, o Estado é também coercitivo. Sua dominação estrutural é ideológica e política e, por isso, ajuda a manter com confirmação os desejos dos Estados hegemônicos e suas políticas. A morte, o encarceramento, os processos jurídicos penais, o racismo se mostram em constatação com os muitos mortos ocorridos nos confrontos com a polícia. Por conseguinte, as forças do Estado garantem o neoliberalismo. O texto de Liliana Sanjurjo e Gabriel Feltran (2015) enfatiza também que não podemos esquecer a forma como os governos do Sul foram tratados pelas ditaduras:
Especialmente no contexto latino-americano, tanto no passado ditatorial recente quanto na presente forma democrática, observa-se como distintos governos, por meio dos sujeitos e instituições que os constituem, colocam em ação enunciados valorativos a fim de justificar, sobretudo moralmente, as políticas estatais de segurança e os atos repressivos perpetrados contra aqueles categorizados como seus “inimigos internos” (FELTRAN e SANJURJO, 2015, p.40)
Segundo os autores Feltran e Sanjurjo a história dos Outros – o povo empobrecido, que não quando fechar os atropelos pela administração Moderno/Colonial, hoje com nomes de Estados-nação capitalistas. A morte (imagem3) e repressão é a essência da ideologia do Estado Moderno, agora no contemporâneo o Estado e o neoliberalismo são uma dupla perfeita no Sul para lutar com os Outros (povos estigmatizados e povos que resistem) diante da violência física e simbólica. O Peru não foi aceito para dar morte ao povo que não fica do lado do capitalismo. Para continuar o exercício do pensar a violência desde Marielle Franco (2014), referenciamos que a crítica do sistema, sobre a denominação atual, portanto, demonstra a carga ideológica para manutenção dos elementos fundamentais da política hegemônica, pois se centraliza na ação da polícia e usa o recurso ideológico da apelação pela paz.
Imagem 3: Morte e repressão dos Indígenas pelo Estado Peruano
Fonte: Campamento Minero Río Blanco Copper (2005).
Franco (2014) entende que a polícia tem um predomínio real dentro do jogo do sistema, que acaba sendo uma entidade de poder muito vital e estratégica, termo que a autora usa para caracterizar o processo de ocupação territorial.
Na linha da repressão violenta do Estado, é a polícia a encarregada de ter amplo poder nos territórios onde existem interesses do Estado e o neoliberalismo. Enfatizamos que estudar o sentido crítico de Marielle Franco e sua morte nos leva a refletir que defender os territórios vividos é uma luta sangrenta. A luta pela vida no território é a luta pela sobrevivência do genocídio do Estado capitalista para um lutador social. Entendemos por um lutador social, um corpo crítico, diferenciado, é uma alteridade livre e crítica com potência na reflexão sociológica, inquieto por defender aos Outros iguais.
2. CRÍTICAS AO ESTADO NEOLIBERAL PERUANO A RESPEITO DO PLANEJAMENTO DOS TERRITÓRIOS
A crítica do Estado Neoliberal é também a crítica ao neoliberalismo. Entendo, assim, o Estado como um campo onde se organizam e se estruturam as muitas formas de dominação e poder, tendo em conta o sentido burocrático, político e econômico. Em palavras curtas o Estado é a fábrica do como se faz e se organiza a vida da sociedade. As Rondas Camponesas do Peru, desde sua chegada em 1976 nos Andes, em sua divergência com o Estado, já têm sofrido muitas mortes, repressões, encarceramentos, e até homicídios por matadores de aluguel[6]. A violência é contínua, pois onde se mobilizam as Rondas Camponesas há uma forte ligação de contato opressor entre o Estado capitalista e as lideranças indígenas, sobretudo representantes das comunidades.
Além disso, não existe ninguém sendo punido ou sendo responsável pelos atropelos aos Direitos Humanos. Pensando e refletindo no sucedido com Marielle Franco e os matadores de aluguel (milicianos), no seu assassinato pelas máfias do Estado Brasileiro, gostaria de dizer que, para a infelicidade do povo oprimido do Sul Andino, esse é estigmatizado e ensanguentado, e que são muitos os caídos assim como Marielle Franco. O fenômeno que une estas lutas Ronderas do Peru a outras no Sul Andino Indígena Plurinacional, é concordar que a defesa do território e da vida que ali existe, é considerar que a luta pelos direitos e o reconhecimento da forma cultural e identidades não tem preço algum.
Por isso, essas práticas não podem ser legitimadas como atos normais na sociedade, e mais ainda em um intelectual (cuidado com a alienação), pois se tratam do extermínio do Outro que luta e se expõe à morte. Uma vez morto, um lutador social comunitário ou político não tem como ser reposto. O que se quer dizer, é que o lutador é um corpo, um Outro único na vida e, por isso, ser lutador social não é qualquer coisa. O lutador social é um ente ligado à sua terra, ele é eterno, e se ele morrer a terra vai chorar. Perguntamos ao leitor em geral: Quanto tempo se investe para ser um lutador pela vida e pelos pobres? Aqui, se entende que lutador social não é o mesmo que ser um militante: é algo mais profundo, é uma luta transcendental também, na qual o corpo se junta com o abstrato e o material concreto. Acho que Marielle foi essa pessoa que entendeu esse fato.
Marielle Franco (2014, p. 33) deixa claro uma mostra da coerção do Estado neoliberal sobre o Outro como um ente exteriorizado, como um nada: “ou seja, quanto maior o planejamento do Estado, maior o planejamento do próprio indivíduo pelo Estado e com isso o fim progressivo da liberdade”. A autora enfrenta uma reflexão concreta no mundo do oprimido. Dado que o sujeito é submetido a uma cadeia de controles e disciplinamentos que o convertem em uma espécie de homem punido cultural, econômica, política e simbolicamente, chama atenção quando a autora fala sobre “o fim da liberdade” do Outro como oprimido e, ao mesmo tempo, como sujeito divergente.
Então, se poderia olhar para o fato de que a violência praticada pelo Estado Capitalista contra os Outros, na contemporaneidade, leva a retomar as compreensões sobre o Neoliberalismo e a sua atuação na prática da vida cotidiana como um fato importante de opressão simbólica e, ao mesmo tempo, reconhecendo que ele é tratado como ideologia política e econômica, com uma lógica da acumulação do capital.
Acerca do conceito de pacificação do Estado e polícia, esse conceito é novo para pensar meu objeto de estudo. Agora o Estado peruano usa a força militar (aparato militar – polícia ou exército) para exercer paz e controle em territórios urbanos da costa, onde a violência e o crime têm se empoderado pela falta ou abandono do Estado. Não existem dúvidas de que o fator da raça na opressão dos povos é uma questão essencial, que não é de agora do tempo contemporâneo, que tem séculos com a chegada da Modernidade/Colonialidade do poder. Sem abandonar o debate entre as Rondas Camponesas e a violência do neoliberalismo sobre elas, acredito que as narrativas e atitudes de luta e coragem, como as de Marielle Franco, não tem que ser esquecidas. Portanto, a crítica seria viver sempre dentro do problema e também sempre combatendo o sistema.
Já pensando o território desde o debate de Faranak Miraftab (2016, p.367), a autora entende que refletir o planejamento insurgente é reconhecer um planejamento alternativo à medida, desde os mesmos espaços e territórios oprimidos. Então criticar como se fazem as políticas públicas e como os territórios são classificados seria como uma obrigação moral fazê-lo, refletir e aplicar na prática a divergência. Pensando no contexto peruano, a insurgência é necessária em territórios dos pobres, onde são criminalizados como vergonha do país. Falo de que a racialização dos territórios tem um período histórico desde a primeira negação do índio. Hoje, os bairros empobrecidos são parte da arte da negação do Outro, e se necessita pensar uma insurgência desde o endógeno para o exógeno.
Como diz Faranak Miraftab (2016, p.369), “os movimentos radicais necessitam, assim, reinventar constantemente seus espaços de ação através de práticas de ruptura e criação”. A autora adverte que os ativistas dos movimentos e organizações sociais que lutam pelos seus territórios tem que sempre estar em constante autorreflexão sobre seus repertórios de luta, para assim não serem corpos fáceis para o sistema exterminar e os punir. O Outro (todo sujeito oprimido), no Sul, tem sido um corpo negado e classificado e racializado. Assim, o corpo tem sido desde sempre uma propriedade humana também a ser conquistada, submetida, disciplinada e, sobretudo, governada, tanto por forças estranhas como pelo próprio sujeito que carrega.
Segundo os estudos de José Enrique Finol (2015, p.14), o corpo e suas muitas presenças, sua história e suas concepções são tão complexas e onipresentes quanto as próprias mulheres. Sendo assim, o autor diz, “o homem é, em muitos aspectos, seu corpo, seus significados, sua presença e, em grande medida, também sua ausência”. O corpo seria como o mapa histórico do indivíduo na sociedade. A xenofobia do Outro servirá para canalizar a crítica da “classificação racial” nos dias atuais, desde a ideia da Corporeidade oprimida. A xenofobia, então, é uma construção dessa má formação do estereótipo construída desde uma ideia do corpo do um outro inferiorizado. O ego do opressor desde seu primeiro contato com esse outro diferente a ele foi descrito como super dotado, perfeito.
3. PALAVRAS REFLEXIVAS PENSANDO NA LUTA QUE MARIELLE FRANCO NOS DEIXOU
A pergunta de Martin Heidegger (2005) exposta no início deste trabalho, questiona o que significa pensar. A interpretação dessa pergunta traz consigo, em primeiro lugar, uma armadilha ao modo tradicional de refletir a vida cotidiana. Acontece que a educação dominante nos tem ensinado que tudo começa com pergunta e resposta, e assim sucessivamente.
Mas, essa seria uma armadilha que impede que o ente em si antes reflita e logo responda. Assim, nem tudo é ou deveria começar com a palavra, isto é, isto ou aquilo (por exemplo, o capitalismo “é isso”, o socialismo “é isso”, o neoliberalismo “é isso”, o Bom Viver “é isso”). Entendo que Heidegger não queria que pensássemos assim, dado que isso é somente reproduzir ou ser elásticos de conhecimento. Hoje estamos no mundo onde as técnicas dominam o imaginário do ente no seu campo cultural ou social, mas, ao mesmo tempo, o mundo pede respostas rápidas. No entanto, devemos enfatizar que não se pode emitir qualquer resposta rápida porque o ente sempre fica em mudança e adaptação cotidiana no mundo, o seu cosmos. Por isso, a pergunta “o que significa pensar?” lança um desafio profundo, que não é simples de responder. Leva-se muito tempo e perseverança reflexão concreta no mundo em que vivemos. Ainda que sucinto o presente debate, se entende que existe muita boa literatura, desde outros espaços disciplinares, para entender melhor a vida acadêmica prática concreta, dado que a criminalidade é persistente contra esse Outro, favelado, indígena, a prostituta, o camponês, o proletário. Por assim dizer, o capitalismo se mostra como um vampiro de vidas humanas pelo trabalho e exploração da vida da Terra. Em grande maneira, os autores referenciados fazem a luta a favor do oprimido. Nesse sentido, segundo os fatos que mostram a violência com um definido campo cultural e social, é sempre o oprimido o corpo perfeito onde o opressor e o sistema simbólico do poder constroem suas práticas repressivas. Mas, não é suficiente ter uma crítica abstrata. É necessário que os oprimidos tenham força para ir a buscar formas de resistência. Se um povo não se unir, ou não buscar saídas práticas contra o opressor, a reflexão concreta nunca vai chegar na prática. O que se quer dizer, é que o mundo oprimido necessita da prática também com urgência, sobretudo em países tão complexos como os do Sul. Dito isso, se necessita, também, descolonizar o saber desde as Escolas; Universidade; Lugares Públicos; Instituições do Estado; Movimentos Sociais; Acadêmicos, Comunidade Estigmatizada; Camponesa, Indígena, Afro.
Digo isso porque, segundo um olhar decolonial, somos ainda parte dessa Colonialidade do Poder, que teve início lá pelo ano de 1492, e que, não por acaso, agora estamos situados em Estados Nação Modernos. A luta contra o opressor, qualquer que seja sua instituição, o marcará de poder; tem que ser de espírito e já não de sangue, porque o sangue divide, mas o espírito unifica. O que queremos chamar atenção é que não dá para ser fechados de mente, seguindo o exemplo simbólico do opressor, sendo alienados, racistas entre oprimidos. Não é o caminho a seguir, é ingenuidade.
O povo empobrecido não é pobre porque quer: foi empobrecido e continua sendo empobrecido, agora não somente de meios econômicos, mas também de intelectuais. A memória está sendo aniquilada pela modernidade e suas lógicas do consumo. Por isso, o povo urbano e seus pares não devem perder a esperança, tem que ir com urgência a buscar as memórias de seus antigos, a memória da luta. O urbano destrutivo e exterminador foi inventado, sim, pelo capitalismo. Mas os povos alienados do Sul se esquecem que um tempo atrás existiu um modelo de situar a cidade para outros fins: a convivência plena. Desde o nosso humilde ponto de reflexão sociológica baseado nas leituras da disciplina, a vida urbana está condenada e obrigada a reagir, dado que vai conviver sempre com seu criador, o capitalismo. Porque, enquanto existir o capitalismo como sistema-mundo; o mundo urbano e sua cultura urbana, todo ser vivo, natureza, território, todos os que moram lá, serão uma espécie de expiação para satisfazer o desejo de acumulação de capital do sistema mundial globalizado do capitalismo. Então, é a mesma crítica é para todo Movimento Social e também ao Novo Movimento rondero no Peru, pois a existência do capitalismo e da colonialidade do poder devem promover uma luta mais além da luta pela sobrevivência. Tem que lutar se se quer sobreviver, infelizmente é uma desgraça, mas é real e concreta. A luta contra o capitalismo é uma obrigação moral, ética de toda alteridade livre e a esperança não se deve perder.
Finalmente, ao final não importa quantos títulos tenhamos, se tivermos medo de ir para o campo prático testar o que produzimos. Também não importa muito se somos apenas práticos e temos medo de criticar nossa prática com a teoria. É por isso que neste mundo capitalista e diverso temos que ter um pé na teoria e outro na vida real.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O exercício deste texto foi fazer essas análises, ainda com muitos motivos implícitos. O primeiro deles é querer pensar, mas não somente qualquer tipo de pensamento ou reflexão. É um texto com humildade científica, dado que tem suas limitações e que também não tem como objetivo emitir respostas prontas. É por isso que pensar na luta de Marielle Franco e as Rondas Camponesas do Peru foi o desafio tido neste texto, que ainda não estaria completo e teria seus pontos cegos para melhorar. O convite é escrever para equivocarmos e logo melhorar, como também mostrar que, aqui perto do território do Brasil, no Peru, existe um Movimento Andino indígena chamado Rondas Camponesas, e que assim como o Movimento Sem Terra (MST) do Brasil, os entes que o compõe são entes em busca de reivindicação por justiça, contra o modelo racista do Estado Moderno Colonialista e capitalista.
Notas
- Este trabalho foi inspirado e produzido graças às aulas da disciplina de Sociologia para o Planejamento II/2022, ministradas pela professora Soraya Silveira Simões.
- Natural da província Indoandinacampesina de Huancabamba, Piura, Peru. Indígena Andino graduado em Ciência Política e Sociologia pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (CPS/ILAESP/UNILA). Mestrando em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ). Colaborador das revistas eletrônicas Ola Política (Colômbia) e Sociotramas (Equador). Pesquisador no Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN/IPPUR/UFRJ).
- Sul Andino Indígena Plurinacional é um conceito que venho trabalhando em meus estudos para dar ênfase ao vasto território, rico cultural e materialmente, concreto, vivo e ativo. Não utilizo referências porque tenho incertezas quanto ao emprego deste conceito da maneira como utilizo. Sul é potência cultural e humana: não é qualquer território. Mas ao mesmo tempo, esse território, o Sul, é chamado de periférico, pobre, sem educação, pouco moderno, não globalizado ou que ainda está buscando encontrar o segredo para dar o salto ao progresso capitalista. Por certo, esse salto ao progresso é a pior mentira dita pelas hegemonias, e que foi aceita pelos governos e pelo povo que tudo quer copiar do Ocidente. É, portanto, uma mentira potente comprada por governos e povo de mente ingênua e alienada.
- Utilizamos o conceito de “entes” culturais por entendermos, segundo Heidegger (1927), para referirmo-nos ao sentido do ser.
- Atrevo-me a dizer que as Favelas tem seu próprio Bom Viver comunitário, dado que são uma cadeia de relações culturais diversas (campo de sangues) existente nestes territórios vivos e concretos. O que quero dizer é que o conhecimento está ali disponível. Apenas se tem que ir buscá-lo e interpretá-lo. O Bom Viver é empatia pelos outros, são práticas de potência que se organizam dentro dos territórios e seus agentes. Existe um texto que recomendo dos autores Fernando Fernandes, Jailson de Souza e Silva e Jorge Barbosa, “O Paradigma da Potência e a Pedagogia da Convivência”. Quando os autores falam de sacar respostas dos territórios estigmatizados pelo Estado, se pode interpretar que eles incitam a ir buscá-las ou nos convidam a sacar nossas práticas de Bom Viver e ser contra o sistema, com nossas práticas de potência.
- Matador por aluguel no Peru seria o chamado Sicário. Os milicianos estariam representados pelos militares que dão serviços privados a empresas de governo ou organizações convencionais que operam no país.
REFERÊNCIAS
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