COVID-19: a pandemia que ensina ao mundo a verdade sobre gasto público
Boletim nº 13 – 26 de março de 2020
A contradição é gritante. Se é possível gastar mais agora para combater a depressão – e é, emitindo moeda – certamente já era possível gastar mais para conter a recessão e promover o desenvolvimento econômico e social.
Por Daniel Negreiros Conceição e Fabiano Dalto
Paul Samuelson contou sobre um episódio em que John Maynard Keynes foi criticado por mudar de ideia. A resposta de Keynes foi precisa. “Quando muda a minha informação, eu mudo de ideia. E você, o que faz?” Nada diferente se poderia esperar de qualquer cientista honestamente comprometido em desvendar como funcionam processos do mundo real. Na ciência as hipóteses são provisórias, descartáveis sempre que se mostram logicamente insustentáveis e/ou empiricamente irrealistas. A capacidade de abandonar uma ideia refutada por novos fatos não é uma virtude do cientista honesto. É sua obrigação.
Para um economista como o ministro Paulo Guedes, formado em Chicago, aceitar o diagnóstico Keynesiano da crise econômica que assola o país em meio à pandemia do coronavírus deve ter sido inicialmente desconfortável. Diante dos fatos, tornou-se impossível interpretar o colapso econômico como fruto de um choque de produtividade. Empresas começaram a fechar suas portas e a demitir trabalhadores não por que precisaram eliminar os riscos de contágio aos seus trabalhadores.
Afinal, não é impossível manter a produção de bens e serviços durante a pandemia, mas é impossível fazê-lo quando as vendas desaparecem. Tanto é que continuam operando justamente as empresas de setores onde as vendas foram mantidas, como restaurantes com serviço de entrega, supermercados, farmácias, hospitais, seus fornecedores etc. No final das contas, o que está forçando empresas a fecharem suas portas e demitirem seus funcionários é a velha conhecida dos Keynesianos: a demanda efetiva.
Quando ficamos em casa isolados (e é fundamental que fiquemos em casa isolados para contermos o avanço da pandemia), reduzimos enormemente o nosso consumo – não compramos mais em lojas, não frequentamos mais bares e restaurantes, não viajamos mais de ônibus, táxi, metrô ou avião, não consumimos serviços turísticos etc. Todas as empresas que deixam de vender o que produzem passam a ter dificuldades para efetuar suas despesas – reduzem as encomendas aos seus fornecedores, diminuem jornadas de trabalho, cortam comissões, deixam de pagar contas, deixam de pagar aos seus credores, e demitem funcionários.
Cria-se então uma bola de neve contracionista onde cada empresa em dificuldades que reduz os seus gastos diminui as oportunidades de vendas de outras empresas, que por sua vez reduzem o seu gasto e assim em diante. Com a queda na demanda privada cai também a atividade produtiva (afinal, não faz sentido continuar produzindo o que não pode ser vendido). Será necessário expandir enormemente o gasto líquido do governo brasileiro (i.e. aumentar o gasto mesmo na ausência de incrementos na arrecadação de impostos) de modo a compensar a queda de demanda privada, ou viveremos a mais devastadora depressão econômica da nossa história.
Será preciso ir muito além da antecipação de rendas de aposentados ou oferecer créditos mais baratos a empresas e famílias, como propôs inicialmente o governo brasileiro. Em ambos os casos o efeito imediato será brutalmente insuficiente, além de deprimir a demanda no futuro próximo, quando os aposentados deixarem de receber suas rendas agora antecipadas e quando a população reduzir os gastos em bens e serviços para fazer pagamentos dos juros e amortizações de seus empréstimos.
Certamente, a medida ventilada pelo governo de facilitar a redução de jornadas e salários não será benéfica, uma vez que com a queda das rendas dos trabalhadores cairá também a demanda geradora da receita dos empregadores, alimentando a bola de neve recessiva. Com absoluta certeza não ajudará em nada reduzir jornadas e salários de servidores públicos, uma vez que também eles ajudam a sustentar a demanda pelo que se produz no Brasil, sem contar que estes prestam serviços essenciais para combater a pandemia (serviços de saúde, de segurança e sanitários em geral).
Segue uma evidência anedótica, mas representativa, do tipo de impacto que essa medida produziria na economia como um todo. Em meio à pandemia, muitas diaristas perderam suas rendas por não poderem mais frequentar as residências onde prestavam seus serviços. Com isso, começaram a se multiplicar os relatos de famílias que mantiveram os pagamentos a diaristas, mesmo na ausência do serviço prestado. Pois muitos desses relatos vieram de servidores públicos que serão obrigados a sacrificar estes e outros pagamentos solidários caso percam suas rendas.
O momento exige que o governo dê renda a trabalhadores e empregadores, subsidiando folhas de pagamento no setor privado e transferindo renda diretamente a toda população – como se propôs a fazer o Reino Unido, onde o governo pagará até 2,5 mil libras a cada trabalhador inglês que tiver perdido seu salário durante o período de isolamento. O governo federal deve ainda oferecer tanto quanto for preciso em ajuda aos governos estaduais para que atuem no combate à pandemia.
Em outras palavras, mesmo que não fosse necessário (e será!) que o governo brasileiro aumentasse muito o seu gasto líquido para custear o esforço de guerra contra a pandemia do coronavírus – contratando mais médicos, construindo hospitais e convertendo espaços ociosos em hospitais de campanha, comprando remédios, kits de testagem, equipamentos etc. – seria necessário aumentar muito o gasto líquido para reverter a atual tendência depressiva da economia brasileira.
Felizmente, ouvimos do ministro Guedes a mais cristalina admissão de que não existe qualquer motivo, além da disfuncionalidade das nossas regras fiscais, para que o governo não realize o gasto líquido necessário para que o nosso sistema de saúde em frente à pandemia em curso e para que se evite a depressão econômica. A mesma boca que sempre decretou a quase falência do Estado brasileiro ocasionada pela suposta gastança de governos anteriores, admitiu em rede nacional que o acionamento de um dispositivo legal (o decreto de estado de calamidade pública) foi suficiente para que o governo criasse “o espaço fiscal” para lidar com a pandemia e a com a crise depressiva.
A contradição não poderia ser mais gritante. Como é possível que um Estado supostamente falido, que precisava até ontem fazer ajustes fiscais cada vez mais agressivos por “falta de dinheiro” agora “descubra” uma fonte ilimitada de recursos para lidar com a situação de pandemia e depressão econômica? Como pode a taxa de juros referencial ter caído ao mesmo tempo em que o governo anunciou o descompromisso com o equilíbrio fiscal? Não era o endividamento público que impedia a taxa referencial de cair? De onde veio o dinheiro para tanto estímulo à economia?
Ao demonstrar que são as restrições legais determinadas por políticos e não a falta de fontes de financiamento que impedem o governo de gastar o suficiente para que a economia tenha seu desempenho ideal, Guedes destruiu completamente as justificativas para suas propostas de reformas de contenção de gastos e combate ao endividamento público. Se é possível gastar mais agora para combater a depressão, certamente já era possível gastar mais para conter a recessão e para promover o desenvolvimento econômico e social do nosso país. A verdade é que a dívida do governo brasileiro denominada em reais não é, nem nunca foi, insustentável. O que havia, e continua havendo, são regras fiscais disfuncionais (meta de resultado primário pouco flexível, congelamento dos gastos primários reais e restrição sobre a suplementação de créditos ao governo central) e uma obsessão pouco saudável de governantes e comentaristas com o equilíbrio fiscal, que impedem que o Estado brasileiro utilize suas ferramentas fiscais em busca da saúde macroeconômica e que gaste o necessário para que se ofereçam bens e serviços públicos de qualidade e em quantidade suficiente.
O atual conjunto de regras fiscais vigentes no Brasil tenta impor ao governo brasileiro o comportamento de uma empresa ou família ameaçada de falência financeira. Para famílias e empresas, de fato, é prudente cortar gastos quando há mais dificuldades e incerteza. O funcionamento saudável de uma economia capitalista exige que nossos governos se comportem da maneira oposta, justamente para compensar o comportamento normal dos agentes privados.
Como revelaram os fatos recentes, governos centrais não são como empresas e famílias que precisam obter previamente o dinheiro que gastam, através de impostos ou empréstimos do setor privado. Um fato que parece ser esquecido por muitos economistas é que o gasto do governo federal em moeda doméstica é sempre operacionalizado através da emissão de mais moeda.
Senão, vejamos: o gasto do governo central se dá através do débito da sua conta única no Banco Central e crédito correspondente de reservas para um banco comercial (que representa emissão de base monetária), acompanhado do crédito pelo banco comercial na conta corrente da pessoa ou empresa recebedora do pagamento (que representa emissão de moeda). Impostos e vendas de dívidas governamentais remuneradas não são operações de financiamento do gasto público, mas servem, respectivamente, para destruir moeda[1] e remoção de renda disponível à sociedade, e ajustes redutores da liquidez das carteiras de ativos privadas[2].
A lição que precisamos aprender com a pandemia e a depressão em curso é que nossas autoridades econômicas podem sempre emitir mais dinheiro para assegurar resultados econômicos e materiais desejáveis. Quando houver deflação e desemprego nos mercados de bens e serviços, a autoridade fiscal pode (e deve) emitir mais dinheiro para sustentar a demanda agregada. Da mesma forma, a autoridade monetária pode emitir mais dinheiro (mais precisamente, reservas bancárias) para reverter a deflação de ativos financeiros e estabilizar o sistema financeiro. E o Banco Central brasileiro pode fazer isso escolhendo a taxa Selic que considera mais adequada, como deixou claro quando decidiu reduzi-la este mês, mesmo com o anúncio de elevação do endividamento público.
Em outros países, até mesmo os preços de dívidas públicas de longo prazo foram inflacionados (juros foram reduzidos) através de políticas de relaxamento quantitativo sem qualquer dificuldade. Mesmo se o mercado financeiro for contaminado pelo medo infundado da inadimplência ou falência estatal, em razão de um aumento da dívida pública, não é preciso que se elevem os juros incidentes sobre a dívida pública, de curto ou longo prazo, uma vez que a capacidade da autoridade monetária emissora de absorver estes títulos é ilimitada.
Quando entendemos que o gasto público sempre é operacionalizado pela emissão de moeda[3], torna-se óbvio que não existe limite financeiro para a sua capacidade de realizar pagamentos. Ao invés de se respeitar restrições artificiais, como limites arbitrários para a dívida pública ou metas rígidas de resultados fiscais, deve-se respeitar o único limite que de fato importa: o limite inflacionário da economia.
Dizer que é possível que um governo central gaste sem limites financeiros não é o mesmo que dizer que ele deva gastar sem qualquer limite. Quando se dá o esgotamento das nossas capacidades produtivas, deve-se atentar para o descontrole inflacionário. A partir deste ponto é possível que seja necessário limitar o gasto público, não por medo do endividamento público crescente, mas para evitar a inflação de demanda.
É natural que o leitor brasileiro, traumatizado pela hiperinflação que ainda acometia a nossa economia há menos de três décadas, se preocupe com o gasto público potencialmente inflacionário. Felizmente, compreender melhor a natureza operacional do gasto público nos permite entender também melhor a sua relação com a inflação. Inflação de demanda não é o resultado inevitável de um aumento no estoque de moeda existente na economia. Qualquer gasto, público ou privado, pode ser mais ou menos inflacionário sendo ou não “financiado” pela emissão de mais moeda.
Quando o gasto é muito grande, a demanda em excesso tende a pressionar os preços. Este fato é verdadeiro quando o gasto público é financiado pela criação de mais moeda, quando buscamos empréstimos de bancos comerciais e criamos moeda para os nossos gastos privados, ou quando o gasto privado é financiado pelo desentesouramento de quantidades de moeda já existentes. É a variação na demanda, e não a variação do estoque de moeda, que pode ter efeito inflacionário.
Além disso, para que choques de demanda inflacionários se tornem retroalimentadores (ou inerciais), como na hiperinflação brasileira, é preciso que existam mecanismos de reprecificação conflitivos[4], que se tornam especialmente potentes quando promovidos pelo próprio governo[5]. Foram estes os mecanismos dissolvidos, juntamente com a inércia expectacional, pelo Plano Real. De qualquer forma, o risco que temos hoje é de depressão, não de inflação!
Finalmente, a boa notícia para os que, mesmo com tudo que foi exposto acima, continuam preocupados com o aumento da dívida pública é que a gestão fiscal competentemente contracíclica tende a promover o equilíbrio fiscal com muito mais eficácia que a gestão fiscal “responsável” obsessivamente focada no combate ao endividamento público.
Um dos resultados frustrantes recorrentes em países em que se tentou reduzir gastos públicos para combater o endividamento do Estado é que, na ausência de melhorias fortuitas na balança comercial ou do aumento indesejável do endividamento líquido do setor privado, o endividamento público tende a aumentar ao invés de diminuir. Foi o que aconteceu no Brasil desde 2014. Já uma gestão fiscal contracíclica que estimule a economia através da expansão responsável do gasto público durante recessões, como em Portugal[6] a partir de 2016, acaba contribuindo para a estabilização e redução do endividamento estatal.
O motivo é simples. O equilíbrio das contas públicas é consequência, e não causa, da expansão econômica. Quando há recessão, cai a arrecadação de impostos e o governo se vê obrigado a aumentar seus gastos para mitigar os efeitos do desemprego elevado. Já quando a economia cresce, aumenta a arrecadação enquanto caem os gastos do governo que precisa se preocupar menos com o desemprego e cada vez mais com a inflação. Como mostraram com muita propriedade economistas do FMI (Pescatori, Sandri e Simon, 2014), o tamanho da dívida não atrapalha o crescimento econômico. Sua trajetória, e não o seu tamanho, é que costuma ser indício do desempenho da economia, pelos motivos explicados acima.
Os eventos dos últimos dias foram extraordinários e expuseram fatos possivelmente surpreendentes para economistas como o ministro Paulo Guedes. Mas a força das evidências e a urgência de políticas econômicas competentes certamente farão com que o ministro e vários outros sigam o exemplo de Keynes e abandonem suas aversões irracionais ao endividamento público. Precisamos de uma completa mudança de paradigma. A pandemia e a depressão em curso não mudaram a maneira como funcionam economias capitalistas. Apenas tornaram certos mecanismos dolorosamente mais óbvios. É a demanda agregada que determina o que pode e será produzido e vendido numa economia capitalista. Não é e nunca foi necessário cortar gastos públicos sem que a economia estivesse operando no seu limite inflacionário.
Mercados financeiros sofisticados e grandes não exercem influências estabilizadoras sobre as economias. Pelo contrário, mesmo quando não são as origens de instabilidades econômicas, acabam exacerbando oscilações indesejáveis e exigindo atenção e ajuda das autoridades econômicas. Não faz sentido nenhum impor ao governo central restrições fiscais que tornam menos eficaz a gestão macroeconômica, como as hoje vigentes no Brasil (metas fiscais, teto da dívida pública, regra de ouro). Tais restrições devem ser revogadas e substituídas por restrições funcionais que tornem a gestão fiscal mais contracíclica e estabilizadora (como a imposição de metas fiscais orientadas pelo nível de atividade econômica e pelo limite inflacionário). Governos estaduais e municipais não dispõem das mesmas fontes de financiamento irrestritas que o governo federal, mas podem e devem receber ajuda financeira federal.
Se tivermos sorte, nossos governantes agirão com inteligência e o dinheiro necessário para que se enfrente a pandemia e a depressão virá de onde sempre veio. Da emissão de moeda. Não é preciso que nos preocupemos em arrecadar mais impostos ou descobrir novas fontes de financiamento.
Durante os próximos meses/anos de crise econômica a dívida do governo brasileiro aumentará muito, pois será necessário compensar a contração da demanda privada. E isso não é um problema! Salvo em caso de falência intelectual absoluta dos nossos governantes, ao nosso governo nunca faltará dinheiro para realizar qualquer pagamento em reais, inclusive juros e amortizações de sua dívida. Podemos e devemos gastar o que for necessário para enfrentar a pandemia e evitar a depressão econômica, sem qualquer preocupação com o aumento no tamanho da dívida pública. Disso dependem as nossas vidas e de nossas gerações futuras!
Notas:
[1] Quando pagamos impostos, a moeda faz o caminho inverso até a conta única.
[2] A venda de títulos públicos remunerados pelo governo central ou pela autoridade monetária tem o efeito de substituir reservas bancárias (perfeitamente líquidas e menos rentáveis) por dívidas públicas remuneradas (menos líquidas, porém mais rentáveis).
[3] Aliás, todo o gasto privado ou público exige a emissão prévia da moeda, uma vez que este é o único meio para que ela passe a existir. A diferença entre a moeda criada quando o governo central realiza um gasto ou quando um banco comercial oferece um empréstimo a alguém, e a moeda desentesourada por alguém é o tempo durante o qual ela esteve em circulação antes de ser usada para o dado pagamento. Neste caso, tem razão a sabedoria popular: dinheiro não dá em árvore! Ele é sempre criado pelo seu emissor.
[4] Basicamente grupos econômicos diferentes reagem à deterioração inflacionária de seus poderes de compra reajustando os preços de que dependem suas rendas, motivando outros grupos a fazerem o mesmo.
[5] O exemplo mais óbvio do tipo de mecanismo reprecificador responsável pela inércia da hiperinflação brasileira era a remuneração diária corrigida pela taxa inflacionária oferecida pelo governo a detentores de seus títulos de curtíssimo prazo (overnight) que permitiram que a população com acesso a serviços bancários obtivesse a correção monetária plena de seus créditos correntes.
[6] A dívida pública portuguesa, que explodiu entre 2010 a 2016, passando de 95% do PIB para mais de 130% do PIB em 2016, passou a cair desde que o governo adotou o estímulo público ao crescimento econômico como estratégia de saneamento fiscal, estando hoje em cerca de 120% do PIB. Por outro lado, a dívida bruta do governo geral brasileiro era inferior a 60% em 2014 quando a então presidenta Dilma deu início a uma sequência de ajustes fiscais cada vez mais agressivos no país. Hoje, a dívida bruta do governo geral brasileiro já representa cerca de 80% do PIB sem que o governo e especialistas reconheçam o fracasso de suas políticas de austeridade.
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