“Terraplanismo” fiscal e a greve na educação

Boletim nº 78, 03 de maio de 2024

Daniel Negreiros Conceição

Antes da coronacrise já havia motivos de sobra para desconfiar da honestidade e/ou competência dos economistas que defendem que a dívida do Estado brasileiro chegou (ou pode chegar) a níveis insustentáveis. Segundo estes economistas, a prioridade das nossas autoridades econômicas deve ser a estabilização da dívida pública como fração do PIB através do aumento da arrecadação de impostos e, principalmente, do constrangimento dos gastos governamentais. Contraditoriamente, muitos governos declaradamente austeros haviam sido recentemente forçados a ignorar a recomendação sabotadora de que não podiam (ou não deveriam) incrementar seus gastos/pagamentos substancialmente para compensar contrações depressivas nos gastos privados, ou para realizar grandes projetos inadiáveis. 

Suspeitamente, a alegada falta de dinheiro (ou espaço fiscal) que tornava impossíveis as grandes intervenções governamentais anticíclicas e a oferta mais generosa de bens e serviços públicos não impediu que o governo estadunidense reagisse muito generosamente à crise de 2008 “enviando dinheiro” à população, dando ajuda às montadoras de Detroit, e, principalmente, despejando quantidades até então inimagináveis de dólares para salvar da insolvência seus bancos “grandes demais para quebrarem”. Na Eurozona também não faltaram euros para que os governos centrais superendividados rolassem suas dívidas, ainda que a condição perversa imposta pela Troika para o refinanciamento das dívidas soberanas tenha sido o desmantelamento de grande parte da estrutura estatal construída no pós-guerra. Mesmo no Brasil, a ameaça de vexame internacional fez aparecer, como que magicamente, o dinheiro público necessário para que fossem concluídas as grandes obras para a realização da Copa de 2014 e Olimpíadas de 2016. E não podemos nos esquecer das muitas instâncias em que os governos centrais de países beligerantes, supostamente adeptos da austeridade fiscal, ignoram completamente a suposta escassez de fontes de financiamento para patrocinarem a expansão de suas capacidades militares ou para promoverem suas guerras.

Porém, por mais que já fosse possível enxergar as contradições entre o discurso em defesa da austeridade fiscal e a prática dos governos centrais em todo o mundo, tais contradições seguiram bem escondidas do grande público graças ao gaslighting competente dos porta-vozes dos mercados financeiros, especialmente capazes de manipular o debater econômico acessível ao público em geral na grande mídia. Até 2008, a teoria econômica convencional abraçada pelos participantes mais influentes no debate público demonizava toda e qualquer intervenção governamental que ocasionasse a expansão de agregados monetários. No entanto, para que fosse possível defender o resgate multitrilionário oferecido pelo Fed aos bancos “grandes demais para quebrarem” e as operações de relaxamento quantitativo para inflacionar preços financeiros, foi necessário revisar radicalmente a tese anti-intervencionista. Diferentemente do quantitativismo neoclássico tradicional, em que todo e qualquer pagamento estatal responsável por adicionar moeda a carteiras privadas seria indesejavelmente inflacionário e desestabilizador, a nova tese liberal passou a defender que a verdadeira ameaça à estabilidade macroeconômica viria apenas do ativismo fiscal, que empurraria a dívida governamental para níveis explosivamente insustentáveis. Enquanto isso, o ativismo monetário, supostamente conduzido por agentes politicamente mais neutros e tecnicamente mais competentes, seria a ferramenta adequada para promover e preservar a estabilidade macroeconômica.        

Não seria surpreendente que a nova tese anti-intervencionista tivesse sido elaborada sob encomenda por defensores dos interesses da classe rentista. Não apenas a nova tese passou a legitimar os pagamentos estatais realizados por autoridades monetárias para restaurar/inflacionar preços financeiros de que dependem as saúdes dos balanços patrimoniais das grandes instituições financeiras, mas também desautorizou os pagamentos deficitários de autoridades fiscais, pelo efeito supostamente indesejável sobre a dívida pública. Possivelmente, os defensores da nova tese esqueceram que a própria moeda entregue pelas autoridades monetárias em troca de ativos financeiros diversos representa uma dívida estatal. Ainda que a moeda estatal permaneça convenientemente invisível na maioria das métricas de endividamento público utilizadas no debate dominante, ela difere de outras dívidas estatais apenas por ser registrada como passivo da autoridade monetária e por não pagar juros. Tanto quanto as dívidas remuneradas do Tesouro, o compromisso/dívida fundamental do Estado para com quem possui moeda é reconhecer o direito inquestionável de realizar todo e qualquer pagamento na moeda de conta da economia doméstica (no Brasil, o real). Esqueceram também o principal motivo pelo qual os pagamentos restauradores da solvência das grandes instituições financeiras devastadas em 2008 (em razão das suas apostas insustentavelmente e criminosamente irresponsáveis durante a expansão da bolha do mercado subprime) eventualmente não produziram um aumento significativo na dívida pública (visível sob a métrica convencional). Foi a prática “inovadora” do relaxamento quantitativo pelo Fed, que tornou aplicações mais líquidas no próprio Banco Central (como depósitos voluntários remunerados) tão rentáveis quanto as dívidas do Tesouro americano, fazendo com que boa parte da liquidez criada pelo Fed não acabasse aplicada nas dívidas governamentais remuneradas incluídas na (parte visível da) dívida pública.  

Assim, os pagamentos estatais extraordinariamente grandiosos que foram necessários para evitar que o sistema financeiro estadunidense colapsasse e que o mundo globalizado entrasse em depressão puderam ser explicados e justificados sem que a tese anti-intervencionista precisasse ser completamente abandonada. O motivo pelo qual as intervenções multitrilionárias pelo Fed (e outras autoridades monetárias) seriam mais aceitáveis do que intervenções fiscais comparavelmente elevadas seria a (suposta) ausência de impacto das primeiras sobre a (parte visível) da dívida pública. Na prática, o que a nova tese anti-intervencionista passou a defender foi que pagamentos estatais excepcionalmente elevados são perfeitamente toleráveis e necessários, desde que feitos pela autoridade monetária em benefício direto de instituições financeiras, mas são intoleráveis quando realizados pela autoridade fiscal em benefício do restante da população.

Infelizmente, os defensores da austeridade não poderiam prever a crise pandêmica global iniciada em 2020. Imediatamente, a nova tese anti-intervencionista foi evocada pelos porta-vozes do mercado financeiro para justificar generosos pacotes de ajuda aos grandes bancos. No entanto, um resgate apenas para os bancos não impediria que a pandemia da Covid-19 destruísse as economias de todo o mundo.  Afinal, o motivo pelo qual os bancos pediram (e receberam) ajuda de seus governos logo no início da pandemia foi o colapso da renda dos seus clientes e devedores. Empresas impedidas de funcionar e, consequentemente, incapazes de receber receitas, simplesmente não tinham como seguir cumprindo suas obrigações financeiras junto aos bancos. Também não tinham como seguir pagando os salários de seus funcionários, que também acabaram inadimplentes junto a seus credores. Uma ajuda governamental para que os bancos refinanciassem as dívidas de seus devedores mais impactados pela crise pandêmica seria necessária, mas não suficiente para evitar o colapso econômico. Para que as economias capitalistas não fossem destruídas pela pandemia, seria necessário repor pelo menos grande parte da renda privada perdida enquanto a pandemia exigisse o distanciamento social. Empresas fechadas precisavam de ajuda para evitarem a falência, trabalhadores precisavam de renda para se manterem dignamente vivos. Além disso, seria necessário um aumento extraordinário nos gastos governamentais para a produção e distribuição dos bens e serviços públicos para o combate à crise sanitária, como hospitais de campanha, vacinas, etc. 

Como as autoridades monetárias não realizam pagamentos diretamente para empresas e trabalhadores, o combate à coronacrise só poderia ser realizado através de gigantescas intervenções pelas autoridades fiscais. Com a ameaça de colapso completo das nossas sociedades, tornou-se evidente que muitos dos defensores da tese anti-intervencionista eram muito menos sinceros em seus apegos à austeridade fiscal do que faziam parecer. Assim que o tamanho da ameaça representada pela pandemia foi compreendido, os defensores da austeridade mais pragmáticos (ou menos fanáticos) passaram a defender que os governos poderiam e deveriam expandir seus gastos tanto quanto necessário para evitar que a pandemia destruísse suas sociedades. No Brasil, o mesmo Ministro Paulo Guedes que vinha insistindo que o governo brasileiro havia esgotado seu espaço fiscal e precisava realizar uma grande reforma administrativa para reduzir seus gastos com salários de servidores públicos anunciou que o governo federal realizaria gastos emergenciais de quase 150 bilhões de reais quando declarou estado de calamidade em razão da pandemia. Ao final de 2020, o déficit primário do governo havia chegado a impressionantes 745 bilhões de reais. Nada mal para um governo supostamente “quebrado”. 

O mais revoltante nessa história é que nunca se exigiu de Paulo Guedes nem de seus aliados mais próximos que explicassem como um governo que esgotara seu “espaço fiscal” e carecia de novas fontes de financiamento, a ponto de precisar reduzir os salários de seus servidores públicos, foi capaz de expandir tão grandiosamente os seus gastos quando a ameaça da devastação pandêmica se tornou insuportável. Por que os gastos deficitários até então inevitavelmente inflacionários e economicamente destrutivos passaram a ser toleráveis e defendidos justamente quando o desafio de preservar a estabilidade dos preços seria especialmente mais difícil, em razão das pressões da crise sanitária sobre custos e desorganização das cadeias produtivas? Por que os governos deveriam gastar sem limites para combater a pandemia, mas antes não podiam gastar para combater o desemprego e produzir bens e serviços públicos suficientes para garantir direitos fundamentais à sua população?

A verdade é que as massivas intervenções fiscais deficitárias realizadas pela maioria dos governos do mundo para combater a coronacrise foram possíveis porque nunca faltou dinheiro para que governos centrais realizassem seus gastos, desde que seus pagamentos estivessem definidos em suas moedas nacionais.¹ Governos centrais em todo o mundo realizam seus gastos através da criação de moeda em carteiras privadas. Este é um fato semanticamente inquestionável! Impostos não servem para “financiar” os gastos do governo, mas apenas para “destruir” a moeda estatal criada pelos pagamentos realizados pelo Estado. Desta forma, a lógica das finanças públicas é totalmente diversa da lógica das finanças dos usuários da moeda (famílias, empresas e governos subnacionais ou usuários de moedas estrangeiras). Enquanto a capacidade de realizar pagamentos de usuários da moeda está inevitavelmente condicionada à sua obtenção prévia (através da venda de mercadorias, propriedades ou dívidas), são os pagamentos da população ao Estado, como os impostos, que dependem dos pagamentos que o Estado realiza (gastos públicos e empréstimos a instituições financeiras). Significa que impostos não financiam os pagamentos estatais. Pagamentos estatais é que financiam os impostos!

É por isso que no Brasil não foi necessário realizar qualquer alteração no sistema de financiamento público para que o governo obtivesse o “dinheiro” necessário para seus gastos. Obviamente, o governo não poderia recorrer, e de fato não recorreu, a empréstimos junto aos agentes privados. Afinal, tanto bancos como empresas estavam tão financeiramente destroçados pela pandemia que recorreram ao Estado em busca desesperada de ajuda. Também não faria sentido buscar financiamentos externos para financiar os gastos para o combate à coronacrise, exceto para aliviar pressões cambiais, uma vez que a vasta maioria dos pagamentos públicos seria realizada em reais e não em moedas estrangeiras. 

Por ignorância ou desonestidade, economistas até então intransigentes em suas defesas da austeridade fiscal chegaram a defender que o governo brasileiro “imprimisse” moeda para combater a coronacrise, mas apenas extraordinariamente, como se as condições pandêmicas removessem todos os motivos pelos quais o expansionismo fiscal era intolerável em tempos normais. Talvez desconheçam, ou não queiram revelar ao público, que o governo já EMITIA e sempre emitiu moeda para realizar cada um de seus pagamentos. Novamente, este fato é semanticamente inquestionável! Ao final das contas, o governo brasileiro não precisou recorrer a nenhuma inovação, como autorizar a “impressão” irrestrita de moeda ou o financiamento direto do Tesouro pelo Banco Central, para que fosse capaz de praticar o MAIOR déficit primário de sua história. Bastou suspender as restrições legais que limitavam o tamanho dos gastos públicos (à época, o teto de gastos instituído pela Emenda Constitucional 95, além da regra de ouro constitucional e o compromisso com metas fiscais rígidas imposto pela Lei de Responsabilidade Fiscal). Uma vez recebida a autorização legal para incrementar os seus gastos, o governo brasileiro realizou seus pagamentos sem quaisquer dificuldades. Simplesmente, criou moeda em carteiras privadas através do crédito das reservas bancárias de bancos comerciais. Como a moeda criada pelos gastos deficitários inundou as carteiras privadas de recursos líquidos inertes, grande parte acabou transformada em dívidas públicas remuneradas pelo enxugamento monetário automático realizado pelo Banco Central, comprometido em evitar que a taxa Selic ficasse abaixo da meta estabelecida pelo Copom. E da mesma forma que o Banco Central satisfez a demanda privada por aplicações rentáveis para evitar a queda da Selic quando as carteiras dos bancos foram inundadas de moeda estatal pelos pagamentos estatais, ele satisfez a demanda geral por moeda estatal para evitar que a Selic subisse quando o governo ofereceu seus títulos primariamente para repor o saldo de sua Conta Única. Por este motivo, o governo brasileiro pode praticar o déficit primário extraordinário em 2020 (de quase 750 bilhões de reais!) enquanto a Selic foi mantida em seu menor nível histórico. 

Os eventos da coronacrise provaram que os governos não precisam arrecadar impostos ou obter empréstimos junto à sociedade para conseguirem fazer seus pagamentos. Com o empobrecimento violento da maioria dos agentes privados durante a pandemia, simplesmente não é mais razoável crer/defender que o dinheiro para pagar pelos gastos extraordinariamente elevados durante a pandemia tenha vindo de carteiras privadas, através do pagamento de mais impostos ou empréstimos junto à sociedade. A origem de tanto dinheiro é óbvia: o dinheiro foi criado pelo Estado brasileiro. Uma vez criado e adicionado às carteiras privadas, o dinheiro foi usado para comprar dívidas públicas, permitindo que o Tesouro fizesse a reposição mais que integral do saldo de sua Conta Única já ao final de 2020. E foi também o enriquecimento privado extraordinário resultante do déficit primário gigantesco em 2020 que permitiu que a arrecadação de impostos fosse incrementada enormemente em 2021, produzindo um celebrado resultado primário positivo. Ou seja, foram os pagamentos estatais excepcionalmente elevados que financiaram (a maior parte d) as compras privadas de títulos públicos em 2020 e a arrecadação recorde de impostos em 2021!  

Os eventos da pandemia provaram também que o Banco Central pode manter o juro referencial em qualquer nível que julgue necessário, independentemente da situação fiscal do governo. Aprendemos, ou deveríamos ter aprendido, que o Banco Central pode até mesmo reduzir o juro referencial a níveis irresponsavelmente baixos (dada a dinâmica cambial da economia brasileira) ao mesmo tempo em que o governo federal realiza o maior déficit primário da sua história, como em 2020. Antes da pandemia, governos centrais já realizavam seus pagamentos através da criação de moeda. A diferença é que este fato não era tão óbvio como na pandemia porque o tamanho dos gastos dos governos costumava ficar desnecessária e disfuncionalmente limitado por legislações fiscalmente restritivas, permitindo que o financiamento de déficits fiscais modestos fosse crivelmente descrito como se tivesse sido viabilizado pela tomada de empréstimos junto ao setor privado. 

Se a crença no financiamento dos gastos públicos pela cobrança de impostos e/ou pela tomada de empréstimos junto à sociedade é o “terraplanismo” que inviabiliza o desenvolvimento pleno das ideias econômicas tal qual a crença num planeta em formato de pizza inviabilizou o desenvolvimento da geografia e da cosmologia, a experiência da coronacrise deveria ser tão revolucionária para a economia quanto as primeiras viagens de circum-navegação. Talvez mais: experimentar os eventos da crise pandêmica foi para os economistas como uma viagem ao espaço em que um terraplanista pudesse enxergar com os próprios olhos a Terra esférica. A única explicação viável para os gastos extraordinários realizados pela maioria dos governos do mundo, sem explosão dos juros remuneradores de dívidas públicas, é que os gastos públicos SÃO financiados pela emissão de moeda, que impostos SÃO operações destruidoras de moeda, e a venda de dívidas públicas remuneradas É a transformação da moeda criada pelos pagamentos estatais em aplicações pagadoras de juros. Dado o custo terrível da pandemia, que produziu milhões de mortes e sofrimento, é inaceitável que uma lição tão importante seja ignorada!  

Se o austericismo seletivo de Paulo Guedes já era suspeito, hoje podemos afirmar com ainda mais segurança que a adoção de regras fiscais desnecessariamente restritivas, que condicionam limites para os gastos públicos a resultados fiscais arbitrários e disfuncionais é uma escolha insincera do governo brasileiro. Ainda que a confusão de Fernando Haddad seja sincera, e que mesmo depois dos eventos da coronacrise ele acredite verdadeiramente na possibilidade de esgotamento do espaço fiscal do governo brasileiro, membros influentes de sua equipe muito provavelmente sabem a verdade sobre as finanças públicas. Quando, em 2022, técnicos do Senado Federal incluíram no texto que justificava a proposta da eventual Emenda Constitucional 126/2022 (“de Transição”) uma referência à Teoria da Moeda Moderna (MMT em inglês) alegando muito corretamente que “como os títulos emitidos pelo Tesouro Nacional são em reais, não existe a possibilidade de o governo não pagar”, um economista, então anônimo, da equipe de transição correu para desautorizar o parecer técnico afirmando que seria “como dizer numa eleição que Deus não existe. Não tem sentido e só causa problema”. Era uma tentativa óbvia de reafirmar aos porta-vozes do mercado financeiro o compromisso do governo recém-eleito de não enfrentar o “terraplanismo” fiscal. 

O significado da analogia infeliz ficou um pouco mais claro tempos depois, quando o provável autor anônimo foi revelado

Lembrando de uma posição manifestada anteriormente, Galípolo, para expressar seu pensamento econômico, comparou o debate sobre os limites para a emissão de moeda à discussão sobre se Deus existe ou não. Ou seja, a existência pode ser discutida academicamente e filosoficamente, mas não a fé, que leva as pessoas a ter (sic) uma crença. Transmitindo para a lógica do mercado, a fé pode ser entendida como as expectativas, que influenciam os preços. 

O que Gabriel Galípolo parece sugerir é que pouco importa se uma crença popular é verdadeira ou não. Não se deve questioná-la quando a maioria das pessoas compartilha dela. É provável que Galípolo tenha razão no que se refere à crença individual em Deus, que não afeta (ou certamente não deve afetar) as decisões técnicas, cientificamente fundamentadas, de um governo central. Mas certamente isso não é verdade com relação às crenças sobre os limites fiscais de governos soberanos. Importa muito saber se o risco de falência financeira de um governo endividado na moeda que ele mesmo cria é real ou é apenas uma mentira contada por porta-vozes do mercado financeiro para obrigar que o governo limite os seus gastos desnecessariamente e sucateie a máquina pública. O absurdo da alegação do hoje Diretor do Banco Central ficaria muito mais óbvio se ele fosse um representante do Ministério da Saúde. Imagine o leitor que, durante a pandemia da Covid-19, um representante do governo afirmasse que “pode-se discutir se a cloroquina funciona ou não como tratamento contra a doença, mas não se pode negar que muitas pessoas acreditam na sua eficácia, então esse será o tratamento escolhido pelo nosso governo”. É o que fez Galípolo.

Hoje o terraplanismo fiscal abraçado pelo governo federal se manifesta no subfinanciamento desesperador dos serviços públicos, motivo pelo qual vários servidores públicos da educação escolheram o caminho da greve. É importante que os servidores em greve saibam que o governo MENTE quando afirma que não tem dinheiro para aliviar o sufoco financeiro em que se encontram as Universidades e Institutos Federais, por exemplo. Não falta dinheiro para o governo porque o governo realiza TODOS os seus pagamento criando moeda. O que falta hoje é a autorização legal para que o governo gaste o suficiente para manter seus serviços saudavelmente financiados, em razão do Novo Arcabouço Fiscal (NAF) inventado e defendido pelo próprio governo. E nada, além da suposta necessidade de agradar os porta-vozes do mercado financeiro e evitar críticas da grande mídia, justifica a imposição de um teto de gastos quase tão mediocremente restritivo quanto o infame Teto de Michel Temer. Tanto o compromisso com um déficit primário zero, como a regra arbitrária de permitir que a despesa primária do governo cresça apenas 70% do crescimento real das receitas tributárias, desde o crescimento não seja inferior a 0,6% e superior a 2,5%, seriam estúpidos até mesmo para um usuário de moeda. Uma grande empresa que pretendesse se reconstruir depois de um grande desastre certamente não poderia restringir o aumento de suas despesas a 70% do crescimento de suas receitas no ano do desastre, e certamente precisaria aumentar seus gastos em muito mais do que 2,5%, justamente porque sem um incremento generoso nas despesas sua capacidade de gerar receitas não seria restabelecida.  

Mas o NAF é ainda muito mais estúpido porque o Estado brasileiro não é um usuário de moeda. Ele é o ÚNICO criador da moeda estatal que utilizamos para pagar nossos impostos. Sem pagamentos estatais, só seria possível pagar impostos se falsificássemos com sucesso as cédulas de reais. Como o governo já cria moeda quando faz cada um de seus pagamentos, não é necessário que nos preocupemos com a forma como esses pagamentos serão “financiados”. O que deve nos preocupar é a consequência econômica do tamanho e composição desses gastos. Gastos públicos podem ser exageradamente elevados, não porque tenham sido financiados pela criação de moeda (sempre são!) ou porque tenham excedido os impostos elevando a dívida pública, mas porque podem adicionar mais demanda do que a economia, com sua capacidade produtiva e dinâmica cambial, é capaz de suportar. A consequência mais óbvia de gastos exagerados é a inflação, e isso não tem qualquer relação com o comportamento da arrecadação ou com a “evolução” da dívida pública. Mesmo sob o regime desnecessariamente restritivo do NAF, é possível imaginar situações em que o governo realmente precisasse restringir os seus gastos até mais do que sob o NAF, como numa situação catastrófica de colapso produtivo ou guerra. Um regime fiscal inteligente deveria limitar e condicionar os gastos do governo às elasticidades de oferta relevantes para a economia brasileira, permitindo que o gasto fosse incrementado enquanto fosse capaz de mobilizar mais capacidade produtiva em nome do bem-estar do nosso povo. Um governo eleito com a promessa de que reconstruiria o país, destruído pela pandemia e pelo sucateamento perverso do Estado desde 2016, não pode seguir passivamente submetido ao “terraplanismo” fiscal. Pode e deve expandir seus gastos generosamente, dando fim definitivo à crise de subfinanciamento que assola a Saúde, Educação e Segurança públicas, funcionalmente atento apenas aos limites inflacionários da nossa economia. 

 

[1] Mesmo na zona do Euro, a expansão dos gastos deficitários dos governos centrais dos países membros, necessária para combater a crise pandêmica, foi muito facilmente viabilizada graças à colaboração generosamente acomodativa do Banco Central Europeu, cuja capacidade de criar euros sempre foi ilimitada.