Trajetórias Profissionais Multidisciplinares no Campo de Públicas: Entrevista com Ana Cláudia Farranha
Boletim nº 83, 08 de novembro de 2024
Maria Aparecida Abreu (IPPUR): Ana, obrigada por aceitar participar deste projeto, Trajetórias Multidisciplinares no Campo de Públicas. Como conversamos, nesta série de entrevistas, já foram entrevistados Renata Bichir, representando o campo da Ciência Política e Paulo Jannuzzi, representando o da Demografia. Você, vem representar o Direito, entre os profissionais atuantes no Campo de Públicas. Você poderia falar um pouco da sua trajetória como professora, pesquisadora e profissional atuante no campo das políticas públicas?
Ana Cláudia Farranha: Muito obrigada pelo convite. É uma alegria poder participar do projeto. Eu me graduei em Direito em uma época em que não havia graduação em Ciência Política, por exemplo, e os cursos de Ciências Sociais estavam se reestruturando com a abertura democrática. Entrei na universidade em 1987. Na faculdade em que estudei, o curso de Ciências Sociais foi criado apenas nos anos 1990. Então, acabei seguindo essa formação, também porque não tinha outras opções. Administração Pública, por exemplo, a gente nem ouvia falar. Eu estudei muito tempo no interior, fui para a capital do Espírito Santo, mas a gente nem ouvia falar de EBAPE – Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas. Esse era um mundo muito, mas muito distante. Quando me formei, eu já dava aula de História, desde os 18 anos. Nesse período, a LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, ainda não havia sido aprovada e quem estudava Direito podia dar aulas de História. Eu dava aulas na escola em que havia estudado, onde sempre gostaram muito de mim. Dei aulas para crianças, de dez anos, na quinta série. Nem sempre a gente ouve um pesquisador dizer “eu gosto de dar aula”. Pois é, eu gosto de dar aula. Há muitas coisas chatas em dar aula, como fazer prova, corrigir, dar nota. Mas dar aula, montar uma aula, pensar onde você quer que o aluno chegue, é uma coisa que realmente gosto muito de fazer. Então, quando acabei a faculdade, fui trabalhar na área do Direito. Fui advogada trabalhista e, na sequência, fui procuradora municipal. Nesse contexto, conhecer a Administração Pública foi algo que me encantou muito rápido e isso virou um gosto, porque realmente amo a Administração Pública. Gosto desse campo, gosto de estudar o Estado. O orçamento é uma coisa que eu entendia muito pouco. Hoje, entendo um pouco mais. Contabilidade financeira é uma coisa que entendo mais hoje. Mas quando comecei a trabalhar, já devia ter uns 20 e poucos anos, apesar de não entender tanto, sempre gostei, porque era um tema muito próximo da política. E então eu fui fazer Mestrado em Ciência Política. Poderia dizer que essa minha trajetória é muito curiosa, porque começo em uma das profissões que têm interface tanto com a Economia quanto com a Administração Pública. Inclusive, historicamente, no Brasil, tivemos vários professores, por exemplo, como Luiz Gonzaga Belluzzo e o João Manuel Cardoso de Melo, na Unicamp – Universidade Estadual de Campinas, que vinham do Direito para discutir Economia. De alguma forma, também faço isso, até mesmo para pensar como a formação jurídica está interligada com as outras disciplinas. Infelizmente hoje, às vezes os alunos chegam lá pensando que existe uma autonomia do Direito. Eu digo “não, espera aí, estamos, também, no Campo das Ciências Sociais”.
Penso que a interdisciplinaridade sempre esteve presente na ciência brasileira, mas foi pouco valorizada. Na minha trajetória, venho de um conhecimento de saber manejar instrumentos jurídicos, fazer petição, fazer contestação: eu advoguei mesmo. Fui advogada trabalhista lá no balcão da justiça. Na pós-graduação, fiz uma escolha pela Ciência Política, na Unicamp. Estudei no IFCH – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – e essa literatura de interpretar o Brasil pela lente do João Manuel Cardoso de Melo e do Luiz Gonzaga Belluzzo foi adquirida antes de chegar no mestrado. Precisei muito dela porque a formação que se recebe nos cursos de Direito é muito a de operar um sistema com ferramentas, não a de pensar sobre esses sistemas. Sempre busquei ir além disso. Então sempre andei muito com o povo da Economia, andei muito com o povo do Jornalismo. Quando criança, queria ser jornalista. Então fui andando nesses caminhos. Essa chave de interpretar o Brasil, de conhecer o pensamento social brasileiro, foi muito importante para mim, além dos textos de economistas. Quando me graduei, além de trabalhar, fiz uma especialização na PUC Minas. Era um programa de formação de professores. Acho que esse programa existe até hoje. Fiz um curso denominado “Política e Sociedade”, dado pelos professores que vinham do então IUPERJ – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro [hoje IESP – Instituto de Estudos Sociais e Políticos]. A Fátima Anastasia e a Heloisa Starling foram minhas professoras. Isso é muito legal porque eles tinham uma pegada de pensar as ideias, pensar a Ciência Política, em uma perspectiva interpretativa do Brasil. Começar a estudar Ciência Política por uma interpretação do Brasil também foi muito bom para fazer conexões. Entrei na universidade em 1987, me formei em 1991, entrei na Especialização em 1993 e em 1994 fui para o Mestrado. Passei na UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais – e na Unicamp, mas escolhi a Unicamp muito por conta de poder fazer esse diálogo da Economia com a discussão de Estado.
Política Pública era um assunto de que se falava muito pouco, a gente falava em Teoria Econômica, Teoria do Estado. Isso também acontecia na EBAPE, que já tinha um curso de Administração Pública, mas em tais cursos esse debate chegava muito pela Teoria do Estado. E aí fiz o mestrado na Unicamp, na área de Trabalho e Sociedade, subárea de Trabalho e Sindicalismo. Minha dissertação de mestrado foi sobre a CUT – Central Única dos Trabalhadores, que tratou não apenas dos instrumentos sindicais, mas também da história do sindicalismo e sua influência na luta pela democracia. Então eu estava estudando o sindicalismo, mas estava muito mais preocupada com os temas da democracia, com o futuro, com as instituições. Quando acabei o mestrado, já engatei no doutorado. Essa passagem foi permeada por uma trajetória profissional, porque eu já tinha passado pelo sindicato, pela assessoria jurídica de sindicatos, já tinha passado pela procuradoria e já estava dando aula. Comecei a dar aula no ensino superior em 1998, quando já tinha cumprido os créditos do Mestrado. Fui dar aula de Ciência Política e Teoria do Estado, porque aquele ano foi o da reforma no ensino jurídico, pela qual as disciplinas Sociologia Jurídica, Ciência Política e Teoria do Estado voltaram para o currículo. Isso foi muito legal porque, com minha formação, pude ajudar. No doutorado, eu discuti políticas de desenvolvimento, mas com enfoque em compreender os programas de combate à pobreza que começavam a crescer em toda América Latina. Estávamos em 2000 e fiz o doutorado nessa área. Nesse período, o sentido de Política Pública começou a ficar claro. Foi possível começar a organizar um repertório, como se organiza hoje. Mas terminei também o doutorado sem muita clareza a respeito do que seria um trabalho sobre política pública. Meu trabalho era sobre pobreza, discutindo aspectos da história econômica do desenvolvimento. Na minha formação, desenvolvimento e desenvolvimentismo são temas muito fortes. Apenas em 2004, quando vim para Brasília, por conta de ter sido aprovada em uma seleção de um organismo internacional para coordenar um projeto de cooperação Internacional sobre pobreza, emprego, gênero e raça, começou a fazer mais sentido essa ideia da política pública. Posso resumir dizendo que a marca da minha trajetória é a interdisciplinaridade, junto com essa perspectiva da Economia Política, vinda de intelectuais, como Wilson Cano e João Manoel – e dos livros que eles escreveram – assim como a Sonia Draibe, que não foi minha professora, mas foi uma influência importante. Estava até procurando um texto que escrevi há muito tempo, intitulado “Um outro olhar sobre o liberalismo”. Estou agora reescrevendo sobre isso e verifiquei como essas referências foram importantes para entender também um pouco das questões que permeiam esse tema. São questões do Pensamento Social que endereçam a uma dimensão analítica. Com isso é possível combinar essa percepção da prática com a elaboração de proposta teórica no Campo de Públicas.
Maria Aparecida Abreu (IPPUR): Nessa trajetória, você poderia falar um pouco mais detalhadamente sobre quais escolhas e decisões você considera hoje terem sido as mais importantes? Você já mencionou uma que foi a de escolher a Ciência Política no mestrado. Vamos falar um pouco mais sobre essa e outras decisões que você considera importantes?
Ana Cláudia Farranha: Acho que a escolha pela Ciência Política fez toda a diferença. Ela me coloca nesse lugar em que estou hoje. O ensino jurídico no Brasil, quando fui estudante, era muito focado em instrumentos. Em 1998, quando fui contratada pela Faculdade de Direito de Vila Velha – UVV, para dar aula de Ciência Política, essa possibilidade foi resultado de uma reforma no ensino jurídico que permitia que desse um curso mais focado em política e não necessariamente em instrumentos jurídicos. Ter feito o Mestrado e o Doutorado em Ciência Política fez toda a diferença, pois pude estudar sindicatos não a partir de sua estrutura jurídica, mas de sua inserção na política. Foi assim que estudei a luta sindical e o sindicalismo. Na Unicamp, Armando Boito possibilitava que se fizesse esse tipo de abordagem e minha orientadora, Ângela Carneiro, foi diretora do Arquivo Edgard Leuenroth, que era vinculado à História. E aí temos mais uma mistura: o campo da História. No Doutorado fui estudar Política de Combate à Pobreza. E decidi ficar na Ciência Política. Não fui nem para a Sociologia, nem para Economia. Continuei nos Estudos Políticos. Meu orientador, Reginaldo Carmelo Correa de Moraes, vinha da filosofia, mas era professor da área de Ciência Política, em um programa de Doutorado de Ciências Sociais, e escreveu nos anos 1990 um livro sobre neoliberalismo. Ele trabalhava com ideias políticas e foi muito importante para mim, para pensar em ideias, instituições e atores. Mas somente é possível pensar em ideias, instituições e atores se você conseguir conhecer a história das ideias, a Filosofia Política, não apenas como erudição, mas como uma ferramenta de análise. Então, o Reginaldo foi um cara que me ajudou demais nisso, porque ele vinha discutindo um pouco história das ideias, mas pensando como que as histórias das ideias conformavam políticas. Nessa época havia muita coisa dele publicada sobre educação. Não fui para a área de educação, fui para a área de pobreza. Como ele era uma pessoa ótima, disse, então claramente, em que podia ou não me ajudar
Maria Aparecida Abreu (IPPUR): Ana, acho que era um período também em que não havia como as pessoas serem especialistas nos temas. Então esses professores tiveram que orientar trabalhos sobre assuntos que eles não conheciam muito. Olhando para trás, penso que nossos orientadores enfrentaram desafios que eu hoje não enfrentaria.
Ana Cláudia Farranha: Hoje temos mais pessoas especializadas. Eu sou generalista. Outro dia estava em um evento com alguns amigos e, lá pelas tantas, tive que me apresentar e disse que se trabalhasse no SUS – Sistema Único de Saúde, eu seria a médica da triagem, que conhece desde a febre do menino até problemas de manifestação mais complexa. Digo para os orientandos: tenho me especializado nos últimos anos em trabalhar com relações raciais e trabalhar com direito de acesso à informação e, agora, mais nos últimos dois anos, depois do pós-doutorado, estou tentando juntar esses dois temas. Claro que o direito de acesso à informação envolve transparência, accountability, mas às vezes os alunos chegam com um tema muito jurídico, sobre uma decisão de tribunal. E sempre digo que o olhar tem de ser mais abrangente, porque por trás da decisão há uma estrutura de pensamento, há um conjunto de ideias que demandam o nosso olhar. Ou, há a seguinte pressuposição: “Ah, você está trabalhando com política pública, então você pode estudar qualquer política pública”. Não, eu não posso estudar, eu posso dialogar com várias delas. Há pessoas que entendem mais do funcionamento porque as políticas públicas também são subsistemas. Elas não são apenas a lei – digo isto quando lido com o público que oriento. Acho que essa competência de alguém generalista, que entende mais a totalidade, é uma competência importante, inclusive para que sejam feitas as pontes dentro do Campo de Públicas, porque senão a pesquisa fica muito presa a um tipo de literatura, a um tipo de metodologia e, nesse caso, perde-se a possibilidade de inovação. Voltando à minha trajetória: acabei o Doutorado em 2006, falando de pobreza. Não havia a dimensão racial nos meus estudos de Mestrado e de Doutorado. Então eu não sou, de origem, uma pesquisadora da dimensão racial. Quando vim para Brasília, foi para trabalhar na OIT – Organização Internacional do Trabalho, coordenar um projeto de pobreza, emprego, gênero e raça. Nessa época, a Laís Abramo era especialista de gênero na OIT, e foi ótimo trabalhar com ela. Trabalhei com a minha colega Solange Sancho, que vinha do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – DIEESE. Vim coordenar um projeto que tinha a dimensão racial e era um projeto de apoio ao Ministério do Trabalho e Emprego, na criação de empregos para as pessoas negras. Lembro que, quando me apresentei nessa seleção, olhei o edital e pensei: “pobreza” era o meu tema de tese do doutorado; “trabalho” era um tema que conhecia bastante, pois além de ter estudado sindicalismo no Mestrado, eu vinha da advocacia sindical e conhecia muito a literatura do mundo do trabalho; “gênero”, já tinha acompanhado; mas raça só sabe quem sente. Aí me apresentei nessa seleção, foi ótimo. Então, fui me aprofundar um pouco mais no estudo de relações raciais. Essa é ainda uma coisa nova, mas é o que eu te digo: só sabe quem sente.
Maria Aparecida Abreu (IPPUR): Em que ano se deu exatamente essa decisão de estudar raça?
Ana Cláudia Farranha: Mais ou menos em 2004.
Maria Aparecida Abreu (IPPUR): Talvez eu vá direcionar a entrevista, mas é que consta no seu Lattes e você mencionou aqui, que foi procuradora municipal. Penso que essa decisão, além de ter implicações na carreira, envolve salário. Seria interessante você falar um pouco mais dela.
Ana Cláudia Farranha: As carreiras jurídicas tinham remuneração mais baixa. Com o passar dos anos, as carreiras docentes e de pesquisa ficaram menos atrativas. Na verdade, me formei muito menina, tendo colado grau com 21 anos. Era muito jovem e entrei na carreira com 21, 22 anos, há 33 anos. Não ganhava o salário que hoje o procurador ganha, era salário de servidor público em geral. Direito era uma saída salarial, mas não dava muito dinheiro para quem não tinha um pezinho nos grandes e tradicionais escritórios. Não venho de família jurídica: minha mãe era professora de História e meu pai, professor de Português e pastor. Quando fui para a Ciência Política, não imaginava que me tornaria uma professora de Direito. Sempre brinco com meus alunos que o Direito é meu marido, com quem me casei com 17 anos e desde então estou casada com ele. Ajuda a pagar as contas. Sempre que estou precisando de dinheiro, as pessoas pensam “Puxa, mas Ana Claúdia é advogada” e me chamam. Ter formação jurídica me abre muitas portas. Eu não posso reclamar disso. Com o tempo, passei a dizer para os alunos que tenho uma atuação profissional que beira o poliamor. Tenho um flerte com a Administração Pública e com a Ciência Política e sou professora no Direito. Para que eles não me julguem mal, pensando que me casei com um, mas traio com outro, sempre digo: vivo em uma casa com essas três disciplinas: o Direito, a Administração Pública e a Ciência Política. Voltando à minha carreira, nos anos 90 as carreiras jurídicas são fortalecidas, e a AGU – Advocacia Geral da União é criada em 1993. Naquele momento, o Judiciário não tinha esse tamanho e esse protagonismo que tem atualmente. Então, sair de uma carreira jurídica, naquele momento, não era espantoso. E eu queria muito estar na área de Política, queria ser professora. Pesquisador não era um cargo, hoje também isso mudou. Nas universidades públicas e em algumas instituições privadas, somos professores e pesquisadores. Os mestrados que existiam lá no início da década de 90 eram distantes da formação jurídica e onde existia Mestrado em Direito era na PUC/RJ. E, voltando um pouco na minha trajetória escolar, minha família mudou do Rio de Janeiro para o interior da Bahia (Teixeira de Freitas), no final dos anos 1970 e aí, quando chegou na época dos estudos, eu e as minhas irmãs fomos estudar em um lugar perto, que era Vitória. Então eu estudei no Espírito Santo. Não sou capixaba, mas fiz graduação lá. Muito tempo depois, começaram as pós-graduações na UFES – Universidade Federal do Espírito Santo. Primeiro na Economia, que montou um Mestrado, mas isso no final dos anos 1990. Então você só havia uma ideia de atuação na área de pesquisa nos grandes centros, né? Acho importante a gente falar isso, porque venho de uma geração que, fora do Rio de Janeiro e São Paulo, não tinha nem a estrutura nem as oportunidades que existem hoje. Um pouco disso a gente ajudou a construir. Então, quando optei por ir para a Unicamp, no mestrado em Ciência Política, eu tinha passado também na UFMG (em Ciência Política, no DCP – Departamento de Ciência Política). Eu não falei “ah, vou ficar aqui sendo uma advogada de procuradoria”, porque o salário não era o salário de hoje e tampouco o reconhecimento era o mesmo. Então, para mim, foi absolutamente racional trocar a advocacia pública e o sistema de justiça (que naquela época não era tão fortalecido como é hoje) pela formação acadêmica.
Decisivo para mim foi me perguntar: vou dedicar minha vida inteira à advocacia para ganhar dinheiro? Nos anos 1990, para ganhar dinheiro era necessário associar-se a um grande escritório. Lembro-me de alguns advogados trabalhistas na época, que ficaram ricos com algumas causas, mas eram meia dúzia no mercado, não era uma fulana, não era Ana Claudia Farranha. Há 30 anos, eu era uma garota, uma menina que ninguém nem sabia quem era, não tinha sobrenome, não vinha das elites judiciárias do Espírito Santo. Então, fazer essa escolha teve a ver também com o que me esperava profissionalmente. Para mim, ficar apenas com a procuradoria não era uma alternativa. Poderia continuar no meu estágio probatório, e teria que conversar com algum vereador na Câmara e pedir favor para seguir no emprego e viajar toda semana para São Paulo para cumprir os créditos de mestrado. E o dinheiro para isso? Tudo bem, eu mantenho o emprego, mas que horas vou estudar? Então pensei: olha, quer saber, concurso é igual Carnaval, tem todo ano. Às vezes tem mais de um. Depois de muito tempo, fiz um concurso e virei funcionária pública. Não ganho o salário de um procurador, mas acho que tenho uma alegria e uma realização que é melhor do que se eu tivesse ficado estritamente no direito. Penso que o Direito sempre me ofereceu boas pistas para pensar esse conjunto de coisas, tanto na dimensão pública como na acadêmica. Tanto que hoje eu dou aula de Teoria Geral do Estado – TGE e falo para os alunos que nós vamos falar dos autores do Direito, mas vamos pensar também numa perspectiva de Teoria Política. Porque essas coisas estão imbricadas, e a sua divisão é disciplinar, não existe uma cisão. Tem um texto mesmo sobre a minha trajetória de sala de aula no Direito que trata disso. Dei aula de TGE muitos anos da minha vida e agora pedi para voltar novamente para TGE, porque eu estava com a disciplina de Controle de Constitucionalidade, mas queria também lidar com assuntos novos. Não dá para trabalhar só com o que se produz. A gente tem que pensar de forma mais ampla, principalmente considerando que essa disciplina atrai discentes que são do Direito, da Ciência Política e de Relações Internacionais. Não vou perder a oportunidade de fazer uma formação melhor com eles. Então, eu acho que a formação no Direito abre portas. Outro dia, um amigo meu falou assim “Mas você não acha que você foi um pouco assim ‘burra’ (por não ter ficado na advocacia)?”. Respondi que talvez eu tenha feito uma espécie de voto de pobreza, mas penso que também não tinha muita certeza se me daria bem numa carreira jurídica, se suportaria o que fosse necessário, no sentido deme submeter.
E eu ainda era uma mulher, negra e jovem e sem nenhum trânsito nas grandes bancas (os escritórios) de advocacia. Me lembro uma vez, em que era estagiária de um escritório, e nunca fui boa de bater em máquina de datilografar. Por conta de mudanças de cidade, nunca fiz curso de datilografia. Aqui, vou fazer um super parênteses. No ensino médio (que chamava segundo grau nos anos 80), mudei muito de cidade. O colégio onde eu estudava fechou o curso científico e passou a oferecer somente a formação em contabilidade ou no magistério. E o meu pai dizia que eu e minhas irmãs tínhamos que ir para uma universidade, então era importante fazer o “científico”, que daria uma formação adequada para acessar a universidade. Então eu e minha irmã mudamos da cidade de Nanuque para a cidade de Teófilo Otoni, ambas em Minas Gerais. O plano era fazer datilografia em Teófilo Otoni, mas a escola pública em que eu estudava passou por uma greve. Com dois meses de greve, meus pais consideraram melhor a gente ir morar em Vitória, no Espírito Santo. Meus pais são professores, então estudei em escola particular porque às vezes a família conseguia desconto, e eu sempre conseguia bolsa. Em um ritmo pré-vestibular, ficou difícil fazer datilografia e acabou que nunca fiz um curso de datilografia, não sei bater máquina. Feita essa digressão, me lembro que o tal advogado, após eu ter terminado de bater uma petição dos processos que eu acompanhava (num sufoco danado, catando milho), me entregou uma petição dele e me pediu para bater para ele. Respondi que estava no meu horário e que não sabia bater máquina mais do que ele. Ele olhou para um outro advogado e perguntou como eu não sabia bater máquina, então eu disse que era estudante de direito, não secretária. Esse e outros episódios foram me dando um pouco de pavor da advocacia.
Na cabeça dele, eu tinha que saber bater máquina, afinal de contas, era uma menina, uma mulher. Então, a advocacia nunca foi um lugar no qual me senti confortável. Sempre me senti muito desconfortável. Me lembro que uma vez fui também no fórum com esses mesmos advogados e fui com uma saia branca, muito jovem, uma sainha branca, e ele olhou para mim e falou assim “Doutora Cacau, você vai despachar com o juiz?” Eu não entendi e falei, “não, eu nunca faço isso de ir lá conversar com o juiz”, ele “Porque está com uma roupa dessas” aí entendi: esse cara está dizendo que eu estou muito sexualizada, que essa roupa era para despachar para o juiz e tal. Então, no dia em que passei no mestrado, não tive dúvida. Pedi demissão e fui embora para Campinas sem emprego. Essa decisão foi importante, como também foi importante ter vindo para Brasília. Nessa vinda, aceitei o desafio de coordenar um projeto Internacional, afirmando: “há 35 anos sou preta e acho que sei o que os pretos passam nesse país. Então, acho que eu posso assumir essa coordenação, estudar para isso. Como falo com os meus alunos, a gente senta e estuda. Então, acho que essa vinda para Brasília foi um diferencial, porque me aproximou do Campo de Públicas Depois de aprovada no concurso aqui na UnB (a minha primeira aprovação em Administração, no Campus de Planaltina), fiz uma Summer School na ENAP – Escola Nacional de Administração Pública, e então pude ter contato com essa literatura de análise de Política Pública que veio dos Estados Unidos, cuja relevância eu destaco para os alunos, mas que também não é suficiente: é necessário pensar com as lentes do percurso político brasileiro. Reforço sempre a necessidade de uma competência generalista, para lidar com qualquer problema que apareça, que mereça ser alvo de uma política pública. Foi muito positivo ter vindo para Brasília, porque quando fui tentar os concursos, já me sentia habilitada, não me sentia uma fraude. E foi muito legal. Foi muito legal também ter feito um concurso no Direito, eu já era professora aqui na UNB, era professora no curso de Gestão do Agronegócio e Gestão Ambiental no Campus de Planaltina. Embora eu tivesse sido aprovada na área de Administração, também dava aulas de Direito Ambiental. Mas era muito difícil conseguir ser docente na matéria do concurso: dar aulas de administração. Também o campus era muito longe da minha casa, minha filha era muito pequena nessa época, com 5 anos, eu trabalhava de noite, tinha que enfrentar a estrada de noite. Aí decidi ir para a faculdade de Direito, que na época se chamava Direito e Gestão Pública, e prestei o concurso. Este foi um diferencial na minha carreira, porque consagrou a ideia da interdisciplinaridade na minha prática profissional. E foi importante também não ter tido medo de fazer esse concurso, porque ninguém trocou vaga comigo. Sentei lá, fiz uma prova escrita, fui dar aula, defendi meu memorial. Já estava no serviço público havia três anos e meio na UnB, mas refiz todo o rito de passagem para ingressar novamente no cargo. E tive que cumprir um novo período de estágio probatório. Então, enfim, eu tive essa coragem.
Maria Aparecida Abreu (IPPUR): Em sua produção acadêmica, por meio de ensino, publicações, orientações, um leque amplo de temas da administração pública e do direito está presente. Contudo, é possível identificar dois eixos principais: o primeiro diz respeito à relação do direito com o campo da administração pública e o segundo da relação do direito com o campo das políticas públicas. Essa é uma distinção que fiz, que não sei se faz sentido para você.
Ana Cláudia Farranha: Do ponto de vista do Direito, e de como essa disciplina vem se construindo como área na CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, embora tenha havido muitas reformas, o ensino jurídico ainda é muito parecido com o que fiz entre 1987 e 1991. Então não é simples chegar no Direito e falar “eu quero publicar sobre isso”, “eu vou fazer isso”, “eu vou coordenar”. Um ponto de partida que encontrei foi pensar em Direito e Políticas Públicas. Embora eu trabalhe com mais com a perspectiva da análise da Política Pública, tento levar as referências que a gente tem trabalhado na análise de uma determinada política pública para dentro do direito. O que faço é diferente do que outros pesquisadores mais tradicionais do direito fazem, que é pensar as Políticas Públicas como um subcampo do Direito. Eu faço do Direito uma ferramenta, relevante, mas uma ferramenta para a Política Pública. Meu trabalho é mais de investigar o contexto institucional, pensando: quais são os atores? Quais são as instituições? Quais são as ideias? Como elas estão organizadas? E aí, acho que misturamos duas coisas, a administração e a política. Então, não há dois eixos, eles são um só.
Maria Aparecida Abreu (IPPUR): Então você poderia desenvolver um pouco mais a diferenciação entre o que você faz e o que os pesquisadores desse subcampo do direito e políticas públicas fazem?
Ana Cláudia Farranha: O campo Direito e Políticas Públicas também é novo. Ele está vocalizado pelos colegas da USP, em que Direito e Política Pública pode ser um subcampo autônomo e que, com as ferramentas do Direito, você vai ter condições de estudar, de estudar esse conjunto de políticas públicas que estão definidas nas leis. Mas isso é uma camada. O que quero fazer é outra história. O que eu quero fazer é trazer as informações que tenho. Por isso que estou mais no campo da análise. Outro dia até estava pensando, você trabalha mais com quais autores? Trabalho com todos. Há um de que gosto muito, o Raul Lejano, que escreveu “Parâmetros para análise de políticas: a fusão de texto e contexto”. Hoje consigo entender um pouco mais o Harold Lasswell e suas perguntas “quem, o quê e para quem?”. Fui pesquisar a vida do Lasswell, ele foi professor da escola de Direito de Yale e gosto de dar essa informação aos alunos para falar que não adianta estudar lei porque um dos caras que fundaram o Campo das Políticas Públicas é um cara que vem do Direito. Falamos da realidade, não de dogmática. O que faço, no Direito, é trazer essas referências para estudar o contexto institucional.
Maria Aparecida Abreu (IPPUR): Prosseguindo a entrevista, Ana, vamos falar sobre sua atuação em programas de pós-graduação. Você poderia nos contar um pouco sobre sua atuação e os desafios enfrentados em cada um deles?
Ana Cláudia Farranha: Atuo em dois programas. Um deles é o PPGD – Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. Atuo nele desde 2015. Já fui coordenadora e é um Programa nota 7 na Capes, que recebe muita gente. Atuo também no Programa de Mestrado Profissional em “Direito, Regulação e Políticas Públicas”, um mestrado profissional do Direito. Essa é uma iniciativa mais nova, aprovamos aqui em 2019. Ele foi avaliado, nesta última Quadrienal, com (nota) 3. Embora a gente já tenha formado cinco turmas e estejamos com mais duas turmas, ele é um curso novo. Nele, atuo na linha de políticas públicas e a outra linha é a de regulação. Então, atuo nestes dois programas há um tempo. Mas por quê acabei atuando em um programa de Direito e Regulação, e não em um de movimentos sociais ou outro tema mais afeito ao meu doutorado? Porque com essa história de ficar lá em Planaltina dando aula de Direito Ambiental, as pessoas começaram a sacar que tinha alguém no direito que podia trabalhar em alguns projetos, e aí fui convidada para trabalhar no Centro Interdisciplinar de Estudos em Transportes – CEFTRU. O Centro estava fazendo o desenho da concessão do transporte público intermunicipal em Goiânia e precisava de alguém que entendesse de direito. Já haviam procurado algumas pessoas que não tinham respondido e me chamaram. Eu fui. E aí fui trabalhar mais diretamente com a construção de instrumentos de regulação e isso me levou para o tema da regulação. Mas estou em programas de pós-graduação desde 2008. Já formei muita gente, já vi muita gente, já rodei muito, mas fiquei lá no Mestrado em Transporte de 2013 a 2015, pensando um pouco teorias regulatórias, porque eu dava uma disciplina “Regulação e Transporte Público”. Quando eu cheguei em 2015, falei, “Rapaz, como meu concurso era Direito e Gestão Pública, posso ficar nessa linha de direito regulatório, porque eles têm uma carência realmente e fico mais à vontade”.
No Programa, há outros pesquisadores que lidam com Políticas Públicas, mas de um ponto de vista mais do Direito Constitucional, à luz da influência kelseniana. Para dialogar com esse ponto de vista, eu falo que efetividade da norma não é efetividade da política pública. Então, se alguém chega dizendo que quer estudar corrupção, digo que não basta ler a legislação e os regulamentos, é preciso entrevistar pessoas, analisar os atores envolvidos. Fico em uma posição confortável de poder fazer isso que estou fazendo, em termos metodológicos.
Maria Aparecida Abreu (IPPUR): Confortável ou entusiasmada, Ana?
Ana Cláudia Farranha: Entusiasmada! Ter o que estudar.
Maria Aparecida Abreu (IPPUR): É uma noção particular de conforto aquela em que alguém deixa uma pesquisa exclusivamente documental para decidir entrevistar atores políticos relevantes. O que você fez foi quase o contrário: uma procura pelo desconforto.
Ana Cláudia Farranha: É isso mesmo, é um entusiasmo, é o desafio do pesquisador. E é ao mesmo tempo uma dificuldade que vejo no campo do Direito. Às vezes, por exemplo, aparece alguém que quer discutir cotas em universidades, mas a referência bibliográfica que ele me traz é um manual. A pesquisa, mesmo a de mestrado, tem de trazer algo de novo, uma inovação. Se for para fazer a mesma coisa, não precisa. E às vezes, acho que a nossa ciência tem privilegiado esse “todo dia ela faz tudo sempre igual”. Consegui ganhar um projeto do CNPq para estudar “Direito de acesso à informação, gênero e raça”. E ontem (referência ao mês de junho de 2024) foi tão bonitinho ver os alunos (de TGE) que se apresentaram partirem do meu texto. Uma vai estudar a Defensoria, que usa Lei de acesso à informação para as questões raciais, para as ações que ela promove e que envolvem pessoas negras, e o outro vai comparar o massacre do Rio de Janeiro com o massacre dos Estados Unidos, dando oportunidade de estudar Direito à memória, à verdade e à reconciliação. Então, lá no mestrado profissional e no programa acadêmico, penso que tenho um papel muito interessante de trazer essa literatura da análise de Políticas Públicas. E como aqui na UnB, os programas que trabalho são muito plurais, às vezes tem aluno de outra linha [de pesquisa] que vai fazer minha disciplina. A minha disciplina se chama “Direito e Análise de Política Pública”. Com esta disciplina, penso que minha ação no programa é a de trazer a análise da política pública, o que não é administração pública exclusivamente, Isso me rendeu seis orientações de doutorado, algumas muito negociadas, outras que trazem a ideia de ciclo da Política Pública, que hoje já não é tão festejado no nosso campo, mas no Direito ainda faz sentido, inclusive para ajudar a abrir a lente analítica. Esses seis trabalhos de doutorado foram legais. Acho que quase todos têm publicação, um deles resultou em um livro do qual não sou autora, mas tenho alguns artigos com um ex-orientando, o Paulo Fernando Soares Pereira, sobre titulação de terras quilombolas. Outro orientando foi o Jarbas Almeida Cunha, que fez é um trabalho sobre judicialização da saúde, sendo esta compreendida em suas fases decisórias².
Maria Aparecida Abreu (IPPUR): Ana, apenas retomando o roteiro da entrevista, você poderia identificar pontos em comum e diferenças nos dois programas de pós-graduação em que você atua?
Ana Cláudia Farranha: No profissional, que é mais recente, eu tenho ampliado minha participação. Hoje sou vice coordenadora do Programa de Mestrado Profissional em Direito e Regulado, auxiliando o Prof. Henrique Costa, nosso coordenador. Alguns trabalhos orientados por mim já foram defendidos, nessa perspectiva de pensar o contexto. Por exemplo, orientei um trabalho cujo objeto eram as metas do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, no tema da corrupção. Neste caso, o ponto investigado era o de compreender que não se trata apenas de aplicação do direito, mas, é importante desenvolver instrumentos de administração que alinhem a atuação do Poder Judiciário em determinados casos. Talvez, aqui, uma ideia pouco desenvolvida na literatura é o das políticas judiciárias que são ações que o Poder Judiciário faz no âmbito administrativo (no CNJ – por exemplo) e vão repercutir no contexto político e institucional
Maria Aparecida Abreu (IPPUR) – Você tem participado de encontros acadêmicos, tanto do Direito como da Administração Pública e do Campo de Públicas. Você faria alguma diferenciação da sua contribuição para os três Campos?
Ana Cláudia Farranha: Me sinto muito acolhida no campo de Políticas Públicas, acolhida na ANEPECP – Associação Nacional de Ensino, Pesquisa e Extensão do Campo de Públicas. Eu gosto de ir para esse barco que é a Administração Pública e penso que é um campo bastante abrangente. Fui diretora da Sociedade Brasileira de Administração Pública – SBAP, que tenho a impressão de ter se tornado bastante diversa depois da pandemia. Vou ao encontro da SBAP todos os anos.
Maria Aparecida Abreu (IPPUR): Por influência do Campo de Públicas também ou não?
Ana Cláudia Farranha: Também! Por influência do Campo de Públicas e penso que também as pessoas que a criaram, que vinham principalmente da Administração, foram tendo que fazer pontes com o Campo de Públicas. Não estou na graduação do Campo de Públicas, estou no Direito. A SBAP é mais voltada para a pós-graduação e nela me sinto muito acolhida, porque, além de ter sido diretora, tivemos a conquista de implementar um grupo de relações raciais e interseccionalidade que tive oportunidade de coordenar nos anos de 2019 até 2024. Em relação ao Direito, vou a encontros e, nesse caso, privilegio os que se inclinam para uma reflexão mais próxima à da Ciência Política.
Maria Aparecida Abreu (IPPUR): Em relação a estudo das Políticas Públicas, o que você considera que diferencia o Campo de Públicas em relação ao da Administração Pública e do Direito, você mesmo disse que não frequenta tanto os encontros do Campo de Públicas, mas você acha que tem uma diferenciação entre a Administração Pública e Campo de Públicas?
Ana Cláudia Farranha: Penso que eles nasceram diferenciados e tendem cada vez mais a se aproximarem, agregando pesquisadores da Ciência Política, em que a área de Políticas Públicas é relativamente recente, pois quando estive na Ciência Política, a preocupação principal era com Teoria Política. Penso, então, que a tendência é todos eles se fundirem.
Maria Aparecida Abreu (IPPUR): Este próprio roteiro de entrevista começa falando de Políticas Públicas e depois o Campo de Públicas vai sendo inserido. Na verdade, as pessoas estão estudando Políticas Públicas de diversas maneiras. O Campo de Públicas, que é mais abrangente que o das Políticas Públicas e que a Administração Pública tradicional. Mas o que que nos une?
Ana Cláudia Farranha: Penso que há uma inflexão com a Constituição de 1988. É uma Constituição garantista, dirigente, com muitos direitos sociais. Penso que a nossa Constituição faz com que a teoria de análise das políticas públicas dos anos 1950 tenha de ser atualizada. O Brasil é um celeiro original de políticas públicas. Escrevi um artigo sobre regulação do setor portuário, cujas perguntas que nos nortearam foram: qual é o arranjo institucional para os modelos de delegação da exploração e da administração de um porto? Quem são os atores relevantes? Quais são as Instituições? Quais as competências? E como é possível criar lentes de análise para sua governança? Nesse sentido, pensar a modulação jurídica que é ofertada pela Constituição Federal, mas pensar também como os atores se movem dentro de instituições que vão sendo re-significadas na luta política – seja ela institucional ou de disputa na sociedade – ao longo da República parece ser um fio condutor para pensar o Campo de públicas
Maria Aparecida Abreu (IPPUR): Para encerrar, você poderia indicar, para os estudantes do Campo de Públicas e para quem vai se dedicar ao tema das políticas públicas, quais são as habilidades imprescindíveis, quais são desejáveis e quais que podem ser um diferencial? Nesta pergunta, há um elemento evidente de aposta.
Ana Cláudia Farranha: Então vamos lá, as imprescindíveis: penso que a pessoa tem de ter uma formação multidisciplinar – administração, direito, economia, ciência política. Você tem que dominar os conteúdos desses campos e um pouco da sociologia porque, apesar de eu ter feito um doutorado em ciências sociais e a minha formação não ter sido na sociologia, a sociologia política aqui é muito desejável também. Então, penso que essas cinco disciplinas precisam ser percorridas.
Maria Aparecida Abreu (IPPUR): Mas aí você acha que a sociologia não foi compensada pelo que você sentiu na sua pele, para usar uma expressão sua?
Ana Cláudia Farranha: Penso que uma boa abordagem de Ciência Política, uma boa abordagem de Administração Pública e Guerreiro Ramos são imprescindíveis.
Maria Aparecida Abreu [IPPUR]: Um apontamento: você está pensando uma Administração Pública já bastante sociologizada?
Ana Cláudia Farranha: Exatamente. E penso que o debate de teorias da Política Pública, não sei se cola na nossa realidade, isso pode ser desejável, assim como conhecer e compreender a realidade brasileira e os processos pelos quais o Estado brasileiro passou e vem passando.
Ela pode evitar, por exemplo, um excessivo encantamento com a tecnologia. Tive contato com profissionais da Defensoria Pública e me foi apontado que há serviços digitais de atendimento que não são acessados. Neste caso, houve um esvaziamento da humanidade desse serviço. Ainda entre as competências desejáveis, acredito também que seja muito importante um generalista, que tenha uma leitura da conjuntura. Penso que uma pessoa muito especializada para pensar, trabalhar e estudar no Campo de Públicas, se ele é muito especializado, ele vai estudar Direito Regulatório. Agora, o que tenho visto é que as pessoas muito especializadas têm pulado para dentro do campo e pretendido levar as suas especializações. Acredito que não vá dar certo.O ideal é chegar com a sua especialização e se abrir para novas disciplinas.
Maria Aparecida Abreu (IPPUR): E agora, as habilidades diferenciais?
Ana Cláudia Farranha: Diferencial é a necessidade de trazer os conteúdos dessas disciplinas para uma interpretação do Brasil. Sem importação de modelos ou teorias, mas, como diz a “ moçada”: compreendendo a real E isso passa também pelo lugar do humano. Às vezes vejo uns filmes e resgato um pouco do sentido de modernidade, na perspectiva do humano. O Ken Loach é o meu preferido, porque, se a gente pensar direitinho, a ideia de modernidade vem do humano, que depois foi substituído pelo indivíduo. Se a gente pegar a utopia de Thomas Morus, ele está falando do humano e não do indivíduo. O indivíduo é uma outra fase do capitalismo dentro do processo da revolução renascentista. Mas não sei se o mundo do jeito que está comporta isso. Mas seria desejável.