Entre cinco e dez, talvez noventa, ou mil: Coronavírus, mídia e quantificações
Boletim nº 24 -04 de junho de 2020
Por Leonardo Brama¹
Como muita gente, tenho acompanhado há mais que dois meses inúmeras matérias de jornal sobre o coronavirus. Comecei pelas publicações da imprensa italiana, nas quais já a partir da metade de fevereiro o vírus começava a ser o assunto dominante, passando por vários aprofundamentos em alguns dos principais jornais americanos, europeus e, por último, com a chegada do vírus, foi a vez da imprensa brasileira. Nos debates internos às demais notícias e nos comentários dos leitores nas redes sociais, percebi analogias relativas a certo tipo de comunicação nas matérias, quantificações, comparações (algumas detalhadas, muitas superficiais), previsões, teorias, contra teorias, etc. Assim sendo, com esse texto apresento algumas críticas e reflexões sobre certos tipos de abordagem na construção das matérias jornalísticas em tempo de coronavírus, as quais frequentemente aparentam estar em competição na tentativa de informar, com precisão decimal, uma realidade que continua ignota em muitos dos aspectos. Boa parte das fontes utilizadas para as argumentações elaboradas ao longo do texto referem-se ao contexto europeu, e uma menor parte ao brasileiro. Isso, essencialmente, por dois motivos: tanto em relação ao fato de que o surto do vírus, cronologicamente, afetou a Europa primeiro, permitindo assim uma disponibilidade de dados e análises que antecederam outros contextos (especialmente aquelas acerca das subnotificações, sobre as quais tratarei mais à frente); quanto em função da crença, radicada no imaginário coletivo, relativa a uma maior confiabilidade e eficiência de tudo que é produzido e elaborado pelos países europeus (ainda mais se do norte). Veremos que a realidade dos números oficiais produzidos e publicados nos últimos tempos pela maioria dos países europeus vai numa direção oposta a essa crença.
Em primeiro lugar, vale lembrar que o objetivo primário de qualquer jornal, mesmo nas melhores circunstâncias (aliás, quando grupos econômicos ou políticos não influem de modo determinante na construção da linha editorial), é vender o produto final, possivelmente ganhando da concorrência. E continua como objetivo primário mesmo (ou ainda mais) em tempo de coronavírus, considerando a explosão generalizada em termos de público registrado pelos meios de comunicação em escala global. A dramaticidade de um evento é uma das qualidades primárias que o torna mais noticiável que outros (parafraseando Stuart Hall[1], entre outros), e o fato de ter, nesse período, uma proliferação de títulos de jornal mais dramáticos que o conteúdo das matérias, tem a ver também com isso. Até porque não é preciso muito esforço durante uma pandemia que, por si só, já é bastante trágica, suscita preocupação, e uma pessoa preocupada quer respostas que possam atenuar esse sentimento, decifrando as incertezas que o produzem, mesmo quando as certezas (sobre o vírus) por parte dos demais especialistas, são poucas. Enquanto leitor, quero ser informado do modo mais exato possível. Enquanto jornal, devo “também” oferecer o que o meu leitor deseja. O que, em termos de cobertura jornalísticas sobre coronavírus, significa também abundar em números, gráficos, taxas, quantos mais instrumentos e quantificações que ofereçam ao leitor uma ideia de veridicidade, considerados comumente uma fotografia da realidade. Mas, do mesmo modo que na fotografia a subjetividade do fotógrafo interfere com a objetividade da câmera (ele escolhe o que fotografar, o enquadramento, o momento, etc.), assim também ocorre na construção de dados numéricos, cujas representações “objetivas” deveriam ser sempre interpretadas, mas são valorizadas em tantos âmbitos por supostamente reproduzir, de maneira mais autêntica, a realidade. Tomando a título de exemplo os dados estatísticos sobre um fenômeno específico, muitas vezes é mais revelador, para compreendê-lo, observar para os pressupostos metodológicos e as lógicas por trás da produção dos números que embasam aquela análise estatística, as quais podem conduzir num lugar mais distante da realidade que pretende representar.
Ora, se entre cientistas sociais esse olhar mais crítico sobre as quantificações da realidade não é novidade, o mesmo não se pode dizer para outros âmbitos ou para o senso comum, e talvez seja o caso de reforçar essa reflexão, justamente pela excessiva presença dessas representações nas publicações cotidianas, em que parece quase que os órgãos midiáticos estejam em competição para apresentar o gráfico mais inédito, a comparação mais detalhada, a previsão mais certeira. Ainda mais considerando que muitos dos dados sobre o coronavírus contêm uma margem de erro considerável, de modo que as análises oferecem números dos quais só sabemos que se distanciam bastante da realidade, porém, sem saber o teor dessa distância. Retomando a analogia com a fotografia, quando a câmara é defeituosa e nem consegue focar de modo apropriado, a interferência da subjetividade do fotógrafo acaba por ser secundária, e a dificuldade em ter uma reprodução fidedigna da realidade deveria emergir mesmo para os mais firmes admiradores da objetividade nas representações.
O primeiro dos dados dubitáveis é o número dos contágios que, como é sabido, depende da disponibilidade de cada país em termos de quantidade de kits para testes e dos laboratórios para produzir resultados, bem como das relativas políticas de contenção, entre outros fatores. Mais do que revelar a presença do vírus em certa área ou país, o número dos contágios parece refletir, de modo mais apropriado, a disposição e a capacidade estrutural de cada país em detectá-la, pois sabemos que o número real pode ser de duas até quinze vezes maior do que os testes revelam. Ou mais, dependendo do país em questão ou do especialista que faz a estimativa[2].
Um outro dado que tem se tornado gradualmente mais questionável com o passar das semanas, é o número de óbitos relativos ao coronavírus. Vários especialistas, inicialmente, acreditavam que o número dos óbitos registrados por cada país, de modo geral, fosse um dado confiável (ou com uma margem de erro irrelevante), e que duvidar do registro oficial das mortes fizesse sentido só ao falar do contexto chinês, sobretudo a partir da publicação da revista chinesa Caixin[3], a qual já em março levantou suspeitas cruzando dados oficiais com a entrega das cinzas aos familiares das vítimas. Com o aumento progressivo das vítimas nos vários países europeus começou a ficar sempre mais claro que os óbitos registrados também são um dado incerto, se bem que nesse caso, a margem de erro seja bem menor, se comparada aos números dos contágios. As primeiras dúvidas surgiram em função da falta de um protocolo padrão nos critérios de registro entre os vários países europeus. Mencionando só alguns exemplos, nas primeiras semanas após o surto, alguns países europeus (e também os Estados Unidos) não contabilizaram os óbitos que ocorriam nas casas de repouso[4], enquanto em outros, como no Reino Unido, só eram contabilizados os que ocorriam nos hospitais[5]; em algumas áreas, como Hamburgo, a autoridade de saúde local recomendou para os relativos profissionais de incluir na contagem só os falecidos por Covid-19, deixando por fora da conta as pessoas infectadas cuja causa principal do óbito foi outra[6]; alguns países realizaram mais testes post-mortem (independente do falecido ter apresentado ou não sintomas de Covid-19), e outros menos, como é o caso da Alemanha[7].
Assim, ficou claro que havia uma certa subestimação dos números, e justamente por isso, a partir de estudos recentes[8] que cruzaram dados relativos aos históricos de mortalidade (comparando o valor médio dos óbitos dos anos anteriores com o valor do 2020) em várias áreas/ países e considerando o período de surto do vírus, emergiu um aumento considerável na mortalidade, do qual os números oficiais de mortes por Covid-19 nos demais governos não dão conta. Um gap que deixa por fora dezenas de milhares de óbitos no mundo, levantando dúvidas ainda maiores sobre as contas oficiais. Uma publicação[9], analisando diferentes gaps em alguns países europeus em períodos diferentes e parciais (isto é, levando em conta só uma fase da propagação do vírus, e não o período inteiro), de acordo com a disponibilidade dos institutos estatísticos nacionais, mostrou que, por exemplo, os óbitos em excesso no Reino Unido passam de 8000, na Espanha são mais de 7000 e na Itália mais de 5000 (na Holanda o excesso chega a aumentar o valor oficial do 104%). Dinâmicas análogas começaram também a emergir no Brasil, a partir do cruzamento entre números oficias relativos ao coronavírus e, por exemplo, internações hospitalares por doenças respiratórias, ou aumento nos enterros, ou ainda registro nos cartórios[10]. Através desses números excedentes no contexto europeu como no brasileiro, não se pretende aqui afirmar algum tipo de causalidade, até porque seria superficial pensar que esse gap represente inteiramente pessoas que contraíram o vírus, pois pode (ou não) incluir um aumento devido aos reflexos do diferente atendimento hospitalar subsequente à situação emergencial relativa ao coronavírus. Como pode ser que seja por outros fatores, que por enquanto podem ser avançados só em forma de hipótese. Mas são números que, se pensados juntamente à diferença, discutida acima, na contabilização dos óbitos nos vários países, indicam que a subestimação dos registros oficiais de óbitos é, com toda probabilidade, bem maior do que se pensava. Nesse aspecto, produziram uma melhor informação as poucas publicações mais cautelosas em fornecer estudos e opiniões dos especialistas que consideravam esses dados como indiscutíveis.
Temos então, por um lado, dados oficiais relativos aos contágios que podem ser N vezes menores que o real e, por outro, números de óbitos que também são distantes da realidade. Ora, nos últimos dois meses, os demais órgãos midiáticos têm avançado inúmeras elaborações gráficas e estatísticas extraídas a partir desses dois dados. A mais nebulosa talvez seja a taxa de letalidade, um valor percentual que resulta justamente da relação entre o número dos contágios e dos óbitos (e que é diferente da mortalidade, o denominador do qual representa o número da população de referência, e não dos contágios, ainda que letalidade e mortalidade sejam com frequência confundidas nas matérias de jornal). Assim, sabemos que para deduzir a taxa de letalidade temos um numerador X que, porém, pode ser subestimado do 10%, do 50% ou mais ao real; e um denominador Y que pode ser de cinco até vinte ou mais vezes inferior ao real. E considerando a grande margem de erro presente tanto em X como em Y, é curioso como essa taxa deveria expressar (com precisão decimal) números que, paradoxalmente, sabemos estar alterados de unidades ou dezenas, sem poder quantificar o teor dessa alteração.
Outros recursos publicados exaustivamente são as comparações entre países expressadas em valores quantificados (rankings dos países com mais contágios no mundo, dos óbitos, curvas epidêmicas, etc.). Mesmo supondo que tivéssemos números confiáveis nos registros oficiais, produzir comparações apropriadas entre países é uma tarefa altamente complexa, pelas numerosas variáveis (algumas mais facilmente mensuráveis, outras menos) e fatores que tornam um contexto diferente do outro[11]. São análises que precisam de interpretações e aprofundamentos detalhados, e que dificilmente podem ser explicados de modo satisfatório em uma meia página de jornal (pena: a inconsistência). Algumas são mais superficiais, outras menos, e se por um lado há matérias que têm o cuidado de informar os limites dessas comparações e aprofundam detalhadamente, tem muitas outras que o fazem de maneira menor, quando o fazem. Porém, sendo que os números não são confiáveis, como visto, o problema maior não está somente na qualidade dos termos das comparações divulgadas e na presença (ou não) das explicações relacionadas, mas na própria significação desses termos, que oferecem assim elaborações abstratas, muitas das quais podem subverter a ordem real dos demais rankings (aliás, dos países), das curvas epidêmicas, etc. Algumas dessas elaborações[12], inclusive, acrescentaram um outro dado: o dia do primeiro contágio relevado (ou do primeiro óbito), a partir do qual começaria uma contagem temporal para comparar dois países naquele vigésimo dia, trigésimo dia, etc. Mas, sendo que é improvável que o dia do primeiro contágio ou óbito seja realmente o primeiro, a contagem temporal representa mais um elemento incerto que se soma aos outros.
Em suma, há mais que dois meses temos recebido cotidianamente notícias que, com toda a precisão objetiva que as demais quantificações e projeções gráficas deveriam (supostamente) representar, nos fornecem dados distantes da realidade, a incerteza dos quais é a única certeza. O leitor ingênuo das demais quantificações cotidianas em tempos de coronavírus, que assimila de modo acrítico qualquer informação que lê nos jornais, poderia ser comparado a uma pessoa que, preocupada com a probabilidade de chuva no domingo seguinte, quer saber se há possibilidade de ter sol e, uma vez ter ouvido as demais previsões e recebido as respectivas informações, entendeu que: provavelmente vai chover, mas pode ter sol, com eventualidade de neve, caso o céu não estiver nublado; a temperatura será de 14,58° C, mas não é excluído que chegue perto de 5 ou acima dos 30,2° C, sempre se não tiver vento; e pode ser que, inclusive, essa previsão não seja realmente para domingo, mas para sábado ou segunda-feira.
O exemplo, irônico e provocador, não entende menosprezar o fundamental papel do jornalismo em tempos emergenciais como esses. Como escrito no início do texto, as críticas são justamente a certo tipo de abordagens, as quais confundem e empobrecem o debate, e sendo que tem outras publicações que reproduzem análises mais corretas e apropriadas (algumas das quais, inclusive, mencionei no presente texto), seria melhor valorizar as do segundo tipo para ter uma melhor informação. De maneira análoga, relativamente à presença exagerada de quantificações na cobertura jornalística, a critica leva em consideração sobretudo aquelas superficiais, não acompanhadas com os aprofundamentos, as relativizações e considerações necessárias. Até porque, essa atenção mais escrupulosa com os dados e as informações é mais característica do conhecimento científico, e as ciências também realizam materiais que serão selecionados ou ignorados pelos jornais. Mas ciências e jornalismo respondem a diferentes necessidades, têm seus distintos ritmos para produzir resultados, suas próprias formas de lidar com as incertezas da realidade e, como discutido na parte inicial desse texto, apresentar ao leitor uma ideia de certeza em tempos de coronavírus pode representar um diferencial que aumenta as probabilidades que a matéria seja lida. E não é por acaso se, observando as matérias jornalísticas retrospectivamente nos últimos dois meses, fica claro que o jornalismo que menos errou (em termos de narrar a realidade ou fazer previsões) foi o que deu espaço aos estudos mais aprofundados, cautelosos em dar respostas precipitadas quando não há respostas certas para as perguntas, e sem reservas em dar espaço às devidas incertezas sobre os dados fornecidos, quando necessário. Ao contrário, o jornalismo que ofereceu publicações inclinadas em assegurar fáceis previsões, comparações simplificadas, gráficos superficiais ou explicações monocausais, foi o jornalismo que propôs uma informação mais discrepante da realidade. E se, de vez em quando, análises desse último tipo adivinharam alguma estimativa, é provável que seja pelo mesmo motivo que faz um relógio travado marcar a hora certa duas vezes por dia. Mas que continua, todavia, não funcionando.
Notas:
1. HALL, Stuart; CRITCHER, Chas; JEFFERSON, Tony; CLARKE, John; ROBERTS, Brian. Policing the Crisis: Mugging, the State and law and order. Houndmills: Palgrave Macmillan, 1978.
2. Seguem os link de quatro exemplos de matérias de jornal italiana, estadunidense e duas brasileira, nas quais aparecem diferentes estimativas sobre o número real dos contágios nas diferentes áreas: https://www.ilfattoquotidiano.it/2020/04/16/coronavirus-lo-studio-gli-italiani-contagiati-sono-circa-25-milioni-sicilia-e-basilicata-tasso-di-infezione-dello-035-lombardia-133/5772118/ ;
https://www.businessinsider.com/real-number-of-coronavirus-cases-underreported-us-china-italy-2020-4 ;
https://noticias.r7.com/saude/covid-19-casos-oficiais-representam-8-de-numero-real-diz-estudo-13042020 ; https://theintercept.com/2020/03/31/entrevista-sanitarista-faltam-testes-coronavirus/
3. Segue o link da matéria: https://www.open.online/2020/03/28/coronavirus-le-morti-a-wuhan-potrebbero-essere-piu-di-dieci-volte-maggiori-delle-stime-ufficiali/
4. Segue primeiro o link da matéria relativa aos casos europeus, em seguida o link dos casos no EUA: https://english.elpais.com/society/2020-03-30/tracking-the-coronavirus-why-does-each-country-count-deaths-differently.html ;
https://www.nytimes.com/2020/04/05/us/coronavirus-deaths-undercount.html
5. Segue o link da matéria: https://edition.cnn.com/2020/04/07/uk/coronavirus-uk-deaths-intl-gbr/index.html
6. Segue o link da matéria: https://www.panorama.it/news/cronaca/covid-conteggio-morti-europa
7. Seguem dois links das matérias: https://www.cnbc.com/2020/04/06/germany-is-still-at-the-beginning-of-the-epidemic-health-body.html ;
https://www.theguardian.com/world/2020/mar/22/germany-low-coronavirus-mortality-rate-puzzles-experts
8. Seguem os link de duas matérias: https://www.nytimes.com/interactive/2020/04/21/world/coronavirus-missing-deaths.html ;
https://www.ft.com/content/6bd88b7d-3386-4543-b2e9-0d5c6fac846c
9. Segue o link da matéria: https://www.corriere.it/dataroom-milena-gabanelli/morti-covid-tutte-bugie-dell-europa-ecco-dati-reali/1c28ca00-88b3-11ea-96e3-c7b28bb4a705-va.shtml
10. Segue o link de três matérias relativas à subnotificação nas contas oficias no contexto brasileiro: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/29/subnotificacao-4-indicadores-de-que-ha-mais-casos-de-covid-19-no-brasil-do-que-o-governo-divulga.ghtml;
11. Segue o link da matéria: https://www.bbc.com/news/52311014
12. Por exemplo, seguem três matérias que dão relevância à contagem dos dias: