Abalando imaginários urbano-tecnológicos: Tecnofantasia e tecnobrechas na luta pela justiça espacial na Pedra de Xangô
Boletim nº 84, 10 de dezembro de 2024
Flávio Carvalho Silva
Arquiteto e Mestre em Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membros do grupo Rastro. E-mail: carvalhos.flavio@gmail.com. https://orcid.org/0009-0003-6650-3946
Lalita Kraus
Professora Adjunta do Programa de Graduação e Pós-Graduação do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR). Coordenadora do grupo Rastro. E-mail: krauslalita@gmail.com. https://orcid.org/0000-0003-2888–9457
Embora a modernidade tenha criado divisões entre razão e mito, marginalizando e desqualificando o não racional (FELINTO, 2003), os ideários de cidades tecnológicas e robóticas continuam conquistando a imaginação social (VANOLO, 2014). Na contemporaneidade, a utopia tecnológica, ou tecnofantasia, também permeia o urbanismo e o planejamento urbano, influenciando a construção de políticas, planos, projetos, programas urbano tecnológicos, como no caso das cidades inteligentes (smart cities). Fortemente impulsionada por agências internacionais, provedores de tecnologias e, cada vez mais, por gestores públicos, a agenda smart, com suas “soluções” tecnológicas, ocupa de forma crescente o debate acerca do futuro das cidades (KRAUS, 2022a).
As smart cities, frequentemente vinculadas a uma visão high-tech do urbanismo empreendedor, reforçam e reconfiguram a crise histórica de identidade e legitimidade do planejamento urbano, frequentemente orientado pelos interesses do setor privado. Esse alinhamento tem alimentado e exacerbado um processo de urbanização caracterizado por profundas desigualdades socioespaciais, com um papel ambíguo do Estado e a deslegitimação da produção do espaço por parte de grupos sociais excluídos da lógica normativa do planejamento (MARICATO, 2015). Bairros planejados, condomínios fechados, empreendimentos voltados para megaeventos, e mais recentemente, iniciativas de cidades inteligentes estão frequentemente associados a consequências socioespaciais negativas como remoções, gentrificação, fragmentação, tragédias ambientais, apropriação privada dos recursos públicos e acentuação de desigualdades urbanas (ARANTES; MARICATO; VAINER, 2013; BRIA; MOROZOV, 2020; KITCHIN, 2015; KRIVÝ, 2018).
Nesse cenário, a tecnofantasia solucionista, sustentada por promessas de eficiência, progresso e bem-estar, atua como um mecanismo de legitimação das práticas corporativas de urbanismo que perpetuam injustiças espaciais (KRAUS, 2022b). Essa dinâmica se manifesta por meio de práticas de discriminação locacional baseadas em privilégios e vantagens, além da negação, destruição e apagamento de identidades e formas alternativas de interação com o espaço. Mas, estarão as tecnologias fadadas a reproduzir processos desiguais, concentradores, devastadores e excludentes de desenvolvimento? Para responder a essa indagação, a experiência do movimento em defesa da Pedra de Xângo, em Salvador, Bahia, aponta para a contestação do sentido único de tecnologia e visibiliza experiências alternativas em que conjunturas sociotécnicas específicas são capazes de gerar tecnologias urbanísticas contestatórias em defesa da justiça espacial.
A Pedra de Xangô é um sítio natural sagrado afro-brasileiro, cuja defesa e preservação são questões de grande relevância social, ambiental, racial, religiosa e histórica. Localizada no complexo de Cajazeiras, na periferia de Salvador, Bahia (figura 1). O monumento sagrado ganhou popularidade em 2005, quando o governo do Estado da Bahia, através do projeto Pró-Sanear, planejou a construção da Avenida Vale do Assis Valente e a Pedra tornou-se um obstáculo para a execução do projeto. A Pedra, rodeada por matas em uma área de difícil acesso, passou a enfrentar o risco de ser implodida, configurando uma injustiça material de elevado valor simbólico. Tal ação desrespeita o direito de culto das religiões de matriz africana e exclui a comunidade das decisões sobre intervenções urbanísticas e transformações espaciais em um território de profundo significado cultural.
O episódio desencadeou um movimento de resistência social em defesa do reconhecimento e da proteção do sítio natural sagrado afro-brasileiro (SILVA, 2017). Embora tenha conseguido evitar a implosão da Pedra, o movimento não conseguiu impedir a construção e a inauguração da avenida (figura 2). Nesse processo de resistência desencadeado pela urbanística dominante, uma ampla gama de práticas e tecnologias foi mobilizada para garantir a resistência e o reconhecimento do território. Especificamente, ao adotar uma perspectiva ampliada de tecnologia baseada no conceito de cosmotécnicas, compreendemos as práticas culturais e religiosas negras como ferramentas, não só de resistência, mas também de transformação urbanística.
Tal prática urbanística insurgente mobilizou um conjunto de tecnologias para a defesa do monumento sagrado e a preservação das características do território negro. Primeiro, identificamos tecnologias ligadas à religiosidade e tradições negras, como o xirê, a capoeira, o ebó e o plantio de espécies sagradas. O Amalá de Xangô (Figura 3) é a iguaria oferecida para o orixá a cada quarta-feira. Através do alimento — “um campo de energia carregado de significados, onde cada quiabo cortado, temperado com cebolas raladas, camarão seco, sal e azeite de dendê, é um portal para a intensidade da conexão espiritual” — o povo se liga espiritualmente ao orixá (SILVA, 2023, p. 200).
O Xirê (Figura 4) é uma ciranda sagrada realizada para homenagear o orixá e promover a união em defesa da preservação do espaço sagrado. Trata-se de práticas que, apesar de sua efemeridade, produzem o espaço urbano e demarcam os limites de um território marcado pela cultura e religiosidade afro-diaspórica.
O ojá é outra tecnologia representada por um tecido litúrgico que sacraliza e protege uma variedade de corpos no candomblé: humanos, divindades, tambores, árvores (BRANDÃO; SANTOS, 2021). Os ojás foram também utilizados em uma ação, em novembro de 2018, para demarcar as árvores sagradas que deveriam ser respeitadas durante a elaboração do projeto e a execução da obra do Parque Pedra de Xangô. Outra tecnologia, o plantio de árvores sagradas, além de atender às demandas do axé, servem como demarcação do território sagrado (Figura 5). Tais práticas relacionadas com o sagrado precisam do espaço, moldam a paisagem através de suas grafias espaciais e constituem território, figurando como ferramentas de transformação fundamentais para as disputas sobre a conservação e reconhecimento da Pedra de Xangô.
Além das tecnologias “inventadas” pela cosmovisão afro-brasileira, identificamos uma série de apropriações tecnológicas fundamentais, provenientes da comunidade e apoiadas por assessorias técnicas, como as contracartografias, projetos e estudos urbanos. A apropriação cidadã e popular de tecnologias urbanísticas tradicionais possibilitou que o movimento em defesa da Pedra elaborasse uma proposta popular de conservação e intervenção na área do entorno da Pedra de Xângo (Figura 6), estudos e contracartografias, como a cartografia dos pontos sagrados (figura 7) e um estudo que foi utilizado para a criação da Área de Preservação Ambiental (APA) na região. Cada uma dessas conquistas revela a natureza política, contestatória e comunitária que subverte o protagonismo dos planejadores profissionais, promovendo práticas capazes de realizar transformações socioespaciais abrangentes.
O caso apresentado revela, portanto, tecnologias urbanísticas tradicionais — como o planejamento urbano, leis e normas urbanas, projetos urbanísticos, cartografias e laudos técnicos — que são frequentemente usadas para validar práticas de espoliação e segregação racial. No entanto, a Pedra de Xangô tem resistido a essa dominação, empregando uma variedade de tecnologias derivadas das formas de agir e conhecer próprias da comunidade negra. Além disso, a comunidade tem se apropriado, ainda que de maneira transitória, dos mesmos instrumentos que anteriormente serviam para sua espoliação. A experiência da Pedra de Xângo desafia, portanto, o imaginário tecnofantasioso por meio de experiências que apresentam alternativas voltadas para a justiça espacial. Redefine o papel da tecnologia e do urbanismo, criando tecnobrechas que ofereçam alternativas emancipatórias ao estereotipado ideário do desenvolvimento.
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