Amazônia, soberania e interesses

Boletim nº 4 – 22 de outubro de 2019

 

Neste artigo, o profº Henri Acselrad aponta que com a vitória das forças do liberal-autoritarismo nas eleições de 2018, instaurou-se no Brasil um processo de “desambientalização” do Estado brasileiro, ou seja, a convergência, dentro do governo, entre um antiambientalismo liberal e um antiambientalismo autoritário. O primeiro busca desconstituir a questão pública do meio ambiente; já o segundo busca justificar a expropriação de povos indígenas e quilombolas, para que se faça uma espécie de privatização de fato do uso dos espaços comuns das águas, do ar e dos sistemas vivos, em favor das grandes corporações e em detrimentos dos mais despossuídos.

Henri Acselrad (IPPUR/UFR) é doutor em Planejamento, Economia Pública e Organização do Território pela Université Paris 1 (Sorbonne). Atua analisando temas como planejamento e meio ambiente, transformações do processo de trabalho e relações sociais.

Vem escrevendo, nos últimos anos, sobre as Políticas Públicas para o Meio Ambiente e o papel da Ciência para evitar tragédias ambientais.

O Boletim IPPUR divulga o artigo do proº Henri Acselrad apresentado na mesa “UFRJ pela Amazônia e causas indígenas”, na 16ª. Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (SNCT/UFRJ) e 10ª Semana de Integração Acadêmica – SIAc, Rio de Janeiro, 21/10/2019.

O texto traz uma reflexão fundamental sobre os rumos da política ambiental no país sob a tutela do Governo Bolsonaro, e como o antiambientalismo autoritário do atual presidente ganha a forma de um “racismo ambiental” que condena povos indígenas e tradicionais por ocuparem espaços ambientalmente preservados que estão sendo requeridos pelo agronegócio e pela mineração para expandir seus lucros.

 

Por Henri Acselrad¹

 

Tem-se falado muito sobre a Amazônia em sua dimensão ambiental, seu papel fundamental na regularização de chuvas para a agricultura em outras áreas do país, sua função no combate às mudanças climáticas e na sua influência na qualidade do ar das grandes cidades. Não se tem, porém, falado suficientemente dos povos indígenas que preservaram essa floresta e lutaram para protegê-la com seus conhecimentos e sua cultura – esses povos cujos direitos estão sendo ameaçados, hoje, a partir da própria máquina do Estado brasileiro.

A diversidade biológica, cultivada ao longo do tempo por povos indígenas e tradicionais, sempre foi vista pelos grandes fazendeiros como um empecilho à expansão da agricultura capitalista. A monocultura de exportação ocupa a terra em grandes extensões com poucas espécies homogêneas tratadas com química e transgenia. Quando o capitalismo mundial despertou para as possibilidades da biotecnologia, a diversidade biológica mudou de nome e passou a ser vista como fonte de riqueza – a “biodiversidade”. No Brasil atual, nem essa riqueza potencial é valorizada, pois os governantes dizem pretender retirar terras aos indígenas e reduzir o espaço ocupado por unidades de conservação.

Voltemos um pouco no tempo. No debate amazônico, nos anos 1980, com a possibilidade de um debate público mais amplo, havia uma combinação, nas forças então no poder, entre dois tipos de discurso: um que evocava a soberania (por parte de setores militares) e um discurso do interesse econômico (por parte oligarquias regionais e das grandes corporações). Em

nome da soberania, alegava-se a necessidade de ocupar os territórios supostamente vazios e ameaçados por forças estrangeiras. Pouco antes, o projeto da Ditadura havia tentado reduzir os conflitos por terra no Nordeste, atraindo trabalhadores rurais para projetos de colonização na Amazônia. Hoje sabemos que isto foi feito às custas do enorme sacrifício dos trabalhadores para lá atraídos e do genocídio de povos indígenas.

O discurso da soberania preocupava-se em controlar territórios e fronteiras. Mas para as grandes corporações multinacionais e oligarquias regionais não importava a soberania, mas o interesse que tinham em transformar rios, matas e subsolo – ecossistemas e paisagens amazônicos – em fonte de lucros.

Hoje, a noção de soberania virou um mero recurso retórico para justificar a exploração da Amazônia a todo custo, o descontrole do desmatamento e das queimadas. O que dizem os atuais governantes é que não importa o indígena, nem a árvore; só o minério. Tudo agora se resume a interesse econômico das grandes corporações.

Como explicar esse esvaziamento do discurso da soberania e a priorização, na Amazônia, do grande negócio da mineração, do agronegócio e do hidro negócio, em detrimento dos territórios dos povos indígenas e comunidades tradicionais?

É sabido que, ao longo dos anos 1970, verificou-se um processo de “ambientalização” dos Estados: criaram-se instituições de controle e pretendeu-se gerar alguma regulação ambiental para evitar, por exemplo, que o rompimento de uma barragem contaminasse uma bacia, comprometesse a pesca e o abastecimento de água das cidades; ou que as matas fossem derrubadas alterando o regime de chuvas e a vitalidade dos rios.

Só que as reformas neoliberais, iniciadas nos anos 1980, passaram, em paralelo, a desfazer as regulações que haviam sido criadas como uma Tapeçaria de Penélope: o que se fazia de dia se desfazia de noite. No caso brasileiro, houve um processo de “ambientalização truncada” do Estado, ou seja, “uma ação que foi interrompida, deixada incompleta ou impedida de ser levada a cabo”. Logo após a criação de instituições de controle ambiental, passaram a prevalecer pressões econômicas por flexibilização de leis e normas (vide novos Códigos Florestal e Mineral).

Com a vitória das forças do liberal-autoritarismo nas eleições de 2018, instaurou-se no Brasil o que poderíamos chamar de umaTapeçaria de Penélope à própria luz do dia:o que se fez de dia se desfaz de dia mesmo. O que eram pressões de bastidores por flexibilização de leis, liberação de práticas de degradação de ecossistemas e expropriação dos pequenos produtores, comunidades indígenas e quilombolas, tornou-se discurso explícito. O que temos visto nesse processo de “desambientalização” do Estado brasileiro é a convergência, dentro do governo, entre um antiambientalismo liberal e um antiambientalismo autoritário.

O antiambientalismo liberal é aquele que sustenta que quanto mais liberdade houver para as corporações, mais dinheiro elas ganharão e mais recursos restarão, supostamente, para a proteção ambiental. O antiambientalismo de corte liberal originado nos EUA em torno ao chamado Wise-Use Movement sempre propugnou a remoção das regulações de proteção ao meio ambiente, sugerindo que os produtos naturais são mais perigosos que os produtos industrializados, que a reciclagem obrigatória de certos produtos leva a que se consuma mais recursos do que se poupa e que o corte intensivo de árvores favorece o crescimento das florestas (sic).

Este antiambientalismo liberal, que procura hoje, entre nós, desconstituir a questão pública do meio ambiente, articula-se a um antiambientalismo autoritário eracializado que busca justificar a expropriação de povos indígenas e quilombolas, para que se faça  uma espécie de privatização de fato do uso dos espaços comuns das águas, do ar e dos sistemas vivos, em favor das grandes corporações e em detrimentos dos mais despossuídos. Vide extinção Comitê de suporte ao Plano Nacional de Contingências para Incidentes de Poluição por óleo em Água, perseguição aos funcionários que fiscalizam e aplicam leis contra a degradação da floresta e invasão de terras indígenas.

Para a lógica neoliberal, as formas de produção não especificamente capitalistas – de povos e comunidades tradicionais – tenderiam a desaparecer desde que os governos favorecessem o acesso das grandes corporações a espaços territoriais ampliados. Alegavam os economistas liberais que a competição tenderia a eliminar as formas de produção destes povos tradicionais, de uso comum de recursos ou de produção agrícola em pequena escala, não dependentes de insumos químicos e mecânicos.

Entretanto, na perspectiva do liberalismo autoritário que hoje paira sobre nós, elas não estariam sendo eliminadas conforme o esperado por vias apenas econômicas: a disposição e a ação dos povos e comunidades tradicionais, em luta por assegurar suas conquistas no reconhecimento de seus direitos territoriais, são vistas por representantes do agronegócio como um problema. Porta-vozes do ruralismo conservador passaram a adotar um discurso abertamente discriminatório: os povos indígenas e tradicionais seriam “improdutivos e indolentes”.

O antiambientalismo assume, assim, a forma de um “racismo ambiental” que, até então, havia se limitado aos bastidores da política. Esta modalidade de ideologia colonial não é de todo nova; ela já foi adotada, no passado por agentes engajados na penetração dos interesses da agricultura comercial em áreas ocupadas por povos nativos e caboclos. São inúmeros os documentos históricos que ilustram a leitura que faziam estes agentes históricos quando identificavam as dificuldades de introduzir a agricultura em grande escala em áreas onde vigorava a abundância produzida pelos sujeitos do cultivo da diversidade biológica – pequenos produtores, comunidades ou povos tradicionais. Estes relatórios eram explícitos: a autossuficiência camponesa e de comunidades tradicionais eram seu principal obstáculo. Estes observadores viam no “conforto” e na “fartura” (termos por eles mesmos utilizados) em que viviam os caboclos do sertão do país – ao contrário, pois, da suposta miséria hoje alardeada por ideólogos anti-indígenas – o sinal da indisposição que esses grupos demonstravam ao assalariamento na grande fazenda.

Com a eleição de 2018, ganharam força, no Brasil, as propostas de suspensão do reconhecimento de terras indígenas e quilombolas como parte do projeto mais amplo de desregula a exploração econômica, minerária em particular, da Amazônia. Fiscalização da grilagem e do desmatamento ilegal são ações vistas como parte de uma conspiração ambientalista. Proteção do meio ambiente e reconhecimento de direitos territoriais de povos indígenas e tradicionais são postos na condição de inimigos do progresso e do bem-estar da nação brasileira.

O antiambientalismo racializado recupera, assim, a ideologia colonial anti-indígena, configurando uma forma abrasileirada de discriminação do tipo da que é há tempos denunciada por movimentos negros e dos direitos civis norte-americanos. Lá, o racismo é denunciado pelo fato de autoridades e empresas penalizarem as comunidades negras de baixa renda, decidindo localizar, em suas áreas de residência, os resíduos danosos da acumulação de riqueza, cujos benefícios são, por sua vez, destinados a brancos e ricos. Aqui, vemos o racismo aplicar-se à condenação de povos indígenas e tradicionais por ocuparem espaços ambientalmente preservados que estão sendo requeridos pelo agronegócio e pela mineração para expandir seus lucros. Este antiambientalismo racializado converge, assim, com o antiambientalismo liberal e antiregulatório, promovendo uma versão tropicalizada do racismo ambiental do tipo daquele originalmente denunciado pelos movimentos negros e de justiça ambiental dos EUA, pretendendo colocar, aqui, o direto à propriedade privada acima de tudo e de todos.

Termino citando o que disse um representante de povos e comunidades tradicionais na V Conferência Geraizeira, realizada em 2018: “Muitos discutem hoje o mundo do bem viver. Nós, povos indígenas e comunidades tradicionais, temos isso nas mãos. O que vale não é o amor ao dinheiro; o que vale somos nós que impedimos que os rios sequem e podemos dormir de janela aberta, discutindo nossa organização social”. O que podemos apreender com os povos indígenas é que seus modos de vida foram muito bem inventados. E que, portanto, inversamente, o atual modo de vida dominante, baseado na desigualdade social, de raça e gênero, assim como no consumismo, pode, parodiando a canção de Chico Buarque, ser “desinventado”.

 

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¹Professor Titular do IPPUR/UFRJ.

²Texto apresentado na mesa “UFRJ pela Amazônia e causas indígenas”, 16ª. Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (SNCT/UFRJ) e 10ª. Semana de Integração Acadêmica – SIAc, Rio de Janeiro, 21/10/2019.

³Vimos recentemente como a crise das queimadas estimulada pela desmonte das instituições de controle ambiental pelo governo federal chegou até a escurecer o céu de São Paulo.

4Na mitologia grega, mulher de Ulisses, que, enquanto o aguardava sem notícias, dizia que só aceitaria se casar de novo quando terminasse de tecer um tapete, que, à noite, desfazia às escondidas.

5Dayrell, C.A., De Nativos e de caboclos: reconfiguração do poder de representação de comunidades que lutam pelo lugar, Tese Doutoramento, PPGDS, UNIMONTES, Montes Claros, 2019. p. 392

6“Você que inventou a tristeza ora tenha a fineza de ´desinventar`”, Chico Buarque, Apesar de Você.