Conferências da XXVI Semana IPPUR 2021
Boletim IPPUR, n°56 – 16 de dezembro de 2021
Por Matheus Mendonça, João Daniel Ferreira, Tainá Farias e Isaque Stéfano
Diante dos avanços dos projetos antidemocráticos, do aprofundamento da agenda neoliberal e da potencialização das desigualdades sociais decorrentes da pandemia, a XXVI Semana IPPUR teve como objetivo estimular reflexões em torno das implicações da crise multidimensional sobre o desenvolvimento das cidades e das regiões. O evento abre as comemorações dos 50 anos do IPPUR renovando seu compromisso acadêmico e político de refletir criticamente sobre a realidade brasileira e de contribuir para transformá-la. O Boletim IPPUR nº 56 traz os principais temas abordados pelos convidados das Conferências ao longo da XXVI Semana IPPUR 2021. Confira a seguir.
A trajetória do Planejamento Urbano e Regional no Brasil
A primeira Mesa de Abertura, intitulada A trajetória do Planejamento Urbano e Regional no Brasil, ocorreu no dia 29 de novembro 2021, com a participação dos Professores Tânia Bacelar (UFPE), Roberto Monte-Mór (UFMG) e Ermínia Maricato (USP), importantes intelectuais do campo de PUR, além da mediação do Professor Orlando Santos Jr., diretor do IPPUR/UFRJ.
Apoiada em estudos que trazem o histórico do Planejamento Urbano e Regional no Brasil, com ênfase no livro publicado pelo IPEA, de autoria de Simone Afonso da Silva e Rodrigo Portugal, a professora Tânia Bacelar destacou a importância de se pensar o futuro da área de Planejamento Urbano e Regional.
Segundo Tânia Bacelar, olhando em retrospectiva, é evidente que fomos capazes de formular, construir e implementar iniciativas consistentes de políticas regionais, sintonizadas quase sempre com visões contemporâneas presentes no ambiente internacional. Evidencia-se, portanto, que temos acúmulo, inclusive no que se refere a reflexões sobre erros e insuficiências. Os tempos de neoliberalismo são de desmonte, desconstrução e negação de problemas e do papel estratégico de políticas públicas, incluindo as regionais. O retrocesso se expressa no Decreto 9.759/19, que extingue todos os colegiados da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. No entanto, há resistências, como a criação de consórcios regionais, como o do Nordeste, exemplo de um novo tipo de governança e organização dos protagonistas estaduais. Com isso, o Brasil segue olhando para frente, para novos desafios e potencialidades para enfrentá-los.
Em seguida, o Professor Roberto Monte-Mór ressaltou a centralidade da tecnocracia no período da Ditadura Militar. Diferente de hoje, a tecnocracia era muito valorizada, com o fortalecimento do Estado. Além disso, contou sobre sua trajetória no estudo do campo do Planejamento Urbano e Regional, inclusive sua passagem pelo IPPUR, enfatizando a importância da interdisciplinaridade na organização das disciplinas e no impacto na organização dos alunos. Por outro lado, a vertente principal de planejamento era de um viés tecnocrático e centrado no Estado. É nesse contexto a criação, em nível federal, da Comissão Nacional de Política Urbana.
A Professora Ermínia Maricato, por sua vez, trouxe uma abordagem sobre a trajetória do planejamento urbano e regional brasileiro durante o último ciclo democrático (1985- 2016). Para tal, enfatizou a crise global, abarcando diversos âmbitos, como o sanitário, o político, o social, o ambiental, entre outros, além de citar a Revolução Tecnológica, que transforma as relações de produção e trabalho, resultando em uma nova classe trabalhadora. Ressaltou a intensificação da industrialização e da urbanização na sociedade brasileira, entre 1940-1980, rompendo com o caráter predominantemente rural que marca o Brasil até meados do século XX. Ermínia Maricato também abordou a desigualdade social no país, com ênfase na problemática da propriedade da terra, incapaz de ser enfrentada pelas Reformas Agrária e Urbana. Com isso, urge a luta social por cidades mais democráticas e por políticas habitacionais para que haja a melhoria do estoque existente e produção de novas moradias.
Inserção internacional do Brasil e crise econômica
A segunda mesa da XXVI Semana IPPUR, no dia 30 de novembro de 2021, reuniu os Professores Carlos Eduardo Martins (IRID/UFRJ) e Leda Paulani (FEA/USP) em um debate sobre a “Inserção internacional do Brasil e crise econômica”, mediado pelo Professor Marcelo Ribeiro (IPPUR/UFRJ). As exposições enfatizaram a situação do país em relação à crise econômica mundial, em curso nos últimos anos e aprofundada em 2020, com a pandemia da Covid-19.
Dados e indicadores dos últimos anos revelam uma crise no padrão de acumulação da globalização neoliberal. O decrescimento do comércio internacional e a desaceleração dos fluxos internacionais de capital seriam expoentes da crise. Como referencial teórico, a teoria da dependência foi evocada para ilustrar como o recrudescimento do modelo de neoliberalização de bens e ativos, a partir dos anos 1980, não contribuiu para romper com a hierarquia pressuposta no capitalismo global, e como este padrão se mantém e reorganiza.
Foram citados os constrangimentos impostos às economias periféricas, sobretudo em relação à política macroeconômica, bem como discutido o modelo chinês como uma das formas de se contornar a crise no padrão de acumulação. Por fim, foi citado o brutal aumento da desigualdade e as possíveis alternativas às atuais relações de dependência.
A crise social e sanitária e as cidades
Na quarta-feira, 1º de dezembro de 2021, ocorreu a terceira mesa da XXVI Semana IPPUR, com o tema “A crise social e sanitária e as cidades”. Com a mediação do professor Renato Emerson dos Santos (IPPUR/UFRJ), a conferência contou com a participação das professoras Raquel Rolnik (LabCidade /FAU-USP) e Ligia Bahia (UFRJ), que trouxeram importantes apontamentos sobre a relação entre serviços públicos e o espaço urbano diante do atual contexto de aprofundamento da crise social e sanitária nos municípios brasileiros.
A questão da desigualdade na territorialização de políticas públicas permeou a apresentação das convidadas e suscitou um rico debate sobre o impacto da pandemia nos territórios populares e a necessidade de se repensar a lógica do planejamento urbano a partir de dinâmicas mais humanas, inclusivas e coletivas. Nas palavras da Professora Raquel Rolnik: “A saída está pelo território, a partir do território e a partir da experiência de vida concreta desses que ali habitam”.
A conferência ainda destacou que a saída da crise, a reconstrução do país no pós-pandemia, precisa abranger uma discussão sobre a agenda neoliberal e os seus impactos nas políticas públicas, em especial nas políticas de saúde. A pandemia do coronavírus não apenas exacerbou as crises instauradas no país, como descortinou um cenário de desequilíbrio provocado por narrativas e estratégias políticas que fortaleceram a saúde privada em detrimento da saúde pública. Em sua fala, a Professora Ligia Bahia pontuou que a situação brasileira é preocupante. O uso do fundo público para o setor privado de saúde está criando um abismo de desigualdades que se manifesta em um Brasil que “está saindo da pandemia com menos SUS e mais privado”.
De modo geral, os debates da terceira mesa da XXVI Semana IPPUR 2021 abriram espaço para pensarmos sobre o futuro do planejamento urbano e da gestão pública, e provocaram uma reflexão indispensável a respeito do futuro da transformação social.
A conferência do dia 02 de dezembro de 2021 com o tema “Pandemia e Crise Democrática” teve como mediadora a Professora Maria Walkiria Cabral e as participações das Professoras Esther Solano (UNIFESP) e Loiane Verbicaro (UFPA).
Com base em sua pesquisa sobre os efeitos da pandemia na vida dos brasileiros, a Professora Esther Solano ressalta que, além das perdas humanas e financeiras, a falta de amparo governamental foi um dos principais pontos destacados na pesquisa, revelando um estado de desamparo que atinge a sociedade brasileira. Outro aspecto que se destaca na pesquisa foi a politização da pandemia, expressa nas disputas políticas entre o Governo Federal e os entes subnacionais, a exemplo das rivalidades entre São Paulo e o Governo Federal em torno da vacinação, o que fragilizou a união do país em torno do combate ao vírus. A Professora enfatiza ainda que grande parte da população ficou descontente com a gestão do Presidente em dar assistência à população, além da má condução da economia, levando ao desemprego e à inflação. Já a instabilidade democrática causada pelo bolsonarismo levou não só à crise econômica e democrática, como também gerou na população brasileira um sentimento antipolítica e anti-estado, deixando claro o descontentamento com os políticos e também com os serviços públicos.
Por sua vez, a Professora Loiane Verbicaro ressalta o fenômeno do neoliberalismo nas democracias contemporâneas, tema de suas pesquisas. Em contexto de pandemia, foi destacado o fortalecimento da ideia de autoritarismo em detrimento da democracia, com crescente criminalização do Estado por parte da população e a defesa do neoliberalismo como solução para os problemas de gestão dos serviços do estado. Em uma democracia com profundas desigualdades, como de raça, de gênero e classe social, surgem várias narrativas de combate às desigualdades, mas que muitas das vezes servem apenas para mascarar a real intenção de um sistema autoritário. Olhando para a esfera global, segundo a professora, testemunha-se o encolhimento da democracia pelo mundo, em que cada vez mais países deixam de ser democracias e passam a experimentar formas autocráticas de governança. Para combater a onda de autoritarismo, Loiane Verbicaro ressalta a necessidade de se discutir as desigualdades presentes no modelo democrático. Com relação ao neoliberalismo no Brasil, a Professora afirma que o atual governo tem usado o modelo para reiterar as desigualdades já existentes, promover o discurso anti estado e esconder ações e omissões do governo.
Como contribuição da mesa, ressaltam-se a necessidade de enfrentar as desigualdades, estabelecer novas formas de diálogo com as diferentes parcelas da população e fortalecer meios de promover de forma ampla a assistência social, de modo a ouvir e amparar a população, de maneira a superar o sentimento de desilusão com a política e com o Estado. Os desafios passam pela necessidade de se compreender o recrudescimento das ideias autoritárias e pela busca por formas de combatê-las para que tais ideias não fragilizem a democracia, sobretudo em anos eleitorais.
Desigualdades, espaço e resistência
A mesa de encerramento do dia 03 de dezembro de 2021 convida a reflexões sobre os impactos da pandemia sobre as cidades, as regiões e a gestão pública no Brasil, a partir de um debate sobre “Desigualdades, espaço e resistência”. A mesa, mediada pela professora Renata Bastos (IPPUR/UFRJ), contou com a presença de Preto Zezé (CUFA), Marília Budó (InfoVírus), Samara Pataxó (APIB) e Marcelo Edmundo (FNRU), que trouxeram importantes reflexões com base em suas experiências de resistência e luta pela transformação social.
A convidada Marília Budó, referência no campo de estudos da criminologia crítica brasileira, expôs a realidade vivenciada nas prisões brasileiras durante a pandemia da COVID-19. Em sua fala, a pesquisadora do InfoVírus destacou a importante atuação dos grupos e coletivos de familiares de pessoas privadas de liberdade, formado em sua maioria por mulheres, que tornaram-se uma das principais fontes de questionamento e denúncias sobre a situação calamitosa das prisões durante a crise do coronavírus. A superlotação dos presídios brasileiros, as péssimas condições de higiene, a falta de acesso a itens essenciais e escassez de água e alimentos foram apenas alguns dos problemas enfrentados dentro das prisões desde o início da pandemia. No entanto, Marília lembrou que esse quadro de abandono não foi uma prerrogativa da crise sanitária que se alastrou no país, mas, sim reflexo de uma prática sistemática e rotineira de um sistema punitivo que reproduz e acentua desigualdades sociais.
Preto Zezé, presidente da Central Única de Favelas (CUFA), chamou a atenção para o papel das lideranças femininas na organização de ações emergenciais e na construção de redes de engajamento e solidariedade no contexto da pandemia. O ativista, também ressaltou o fato de que as desigualdades presentes na realidade brasileira foram agravadas pelo advento da pandemia da COVID-19 e pontuou a necessidade de se desenvolver alternativas e soluções contínuas que transcendam o atual cenário de crise sanitária, social, econômica, política, de múltiplas dimensões.
Seguindo na mesma linha, Samara Pataxó, coordenadora jurídica da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), destacou os problemas estruturais que perpassam o longo processo histórico de apagamentos, silenciamentos e violações de direitos vivenciados pelos povos originários, e que foram exacerbados no contexto da pandemia. O histórico de vulnerabilidade na saúde dos povos indígenas, por exemplo, trouxe como consequência um índice de letalidade por COVID-19 superior em comparação aos grupos sociais não-indígenas. Samara Pataxó enfatizou também a questão do espaço, ao apresentar “que a pandemia se revela não apenas como uma luta contra um vírus, mas também como uma luta e uma disputa por espacialidades”.
Marcelo Edmundo, educador popular e coordenador da Central dos Movimentos Populares, acrescentou ao debate a perspectiva do direito às cidades e a luta por moradia. Marcelo Edmundo lembrou que as políticas elementares de combate à pandemia, como as medidas de isolamento social e políticas de higienização das mãos, não puderam ser realizadas por grande parte das camadas populares brasileiras, onde o acesso básico à água, esgoto, e a condições de habitação que permitam uma quarentena adequada, são escassos. Em seus apontamentos, Marcelo reforçou as falas dos demais convidados de que a pandemia contribuiu para o aprofundamento de uma situação de vulnerabilidade e invisibilidade.
Ao longo da última conferência da semana IPPUR 2021 foi possível perceber que as desigualdades permeiam múltiplas instâncias sociais e que foram explicitadas e intensificadas pela pandemia da COVID-19. Não obstante, como destacado na fala de cada convidado, os enfrentamentos, as lutas e as resistências de comunidades, organizações e grupos sociais são componentes elementares para pensarmos o Planejamento urbano e regional e a gestão pública em tempos de crise.
Diante das excelentes contribuições trazidas pelos convidados das Conferências na XXVI Semana IPPUR 2021, ressalta-se que o evento cumpriu o seu objetivo e reiterou a importância do pensamento crítico, marca do IPPUR, para o enfrentamento dos desafios da contemporaneidade.