Digitais a todo custo: as contradições e riscos dos sistemas online

Boletim nº 18 – 30 de abril de 2020

 

Por Fabíola Neves¹ e Rafael Barbosa²

 

Desde o processo eleitoral de 2019, temos visto o elemento técnico assumir certa centralidade nos discursos da elaboração de novas políticas públicas e no presente contexto, o caráter técnico está diretamente associado à capacidade de coletar, filtrar e analisar dados em grande quantidade através de dispositivos eletrônicos. Assim, o que aqui queremos apresentar é uma breve reflexão sobre o modo como a coleta e o uso de dados tem aparecido dentro do desenvolvimento de políticas públicas de controle da pandemia do COVID -19. Para tal, levamos em consideração interesses do mercado, dos governos estaduais e federal e a contribuição, não consentida, da população para desenvolver a discussão.

A partir do arsenal tecnológico disponível para o combate mais efetivo da pandemia do COVID-19, verificamos que há um leque muito amplo e atraente de possibilidades adotadas a partir da utilização de planos tecnológicos, que podem ser exemplificados desde a telemedicina para diagnósticos utilizada pelo SUS à previsão e monitoramento de risco de contágio. Através da utilização de grande quantidade de dados, é possível idealizar uma gestão pública inteligente, porém no que diz respeito às Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC’s), existem sempre muitos interesses em jogo.

No trabalho de controle da pandemia via dados, mais da metade dos Estados Brasileiros – 14 dos 27 – aderiram ao uso de ferramentas de geolocalização criadas pelas operadoras de telefonia e/ou por startups de tecnologia como alternativa para a gestão da crise. A geolocalização está sendo realizada através de uma ferramenta muito poderosa e cheia de possibilidades que está nas mãos de bilhões de pessoas ao redor do mundo, os smartphones. Segundo estudos publicados pela FGV, considerando a possibilidade do uso de mais de um celular por habitante, são mais de 220 milhões em uso no Brasil, porém somente cerca de 92% da população está conectada. O smartphone se destaca por sua capacidade de monitoramento, localização e conexão remota com diversos aplicativos instantaneamente, possibilitando a coleta de milhares de dados pessoais.

No que diz respeito ao setor público, o discurso vigente é o de que acessar dados significaria melhor conhecer os cidadãos e consequentemente produzir políticas públicas mais assertivas. Dados doados por (ou roubados de) nós acerca de nossos deslocamentos na cidade, comportamentos de compra nos mercados e interesses de aprendizagem, poderiam ser usados pelas prefeituras para ofertar mais cursos em áreas  nas quais mais pessoas se interessam, mas também servem para identificar protestos e bloquear as vias antes que os manifestantes possam reivindicar qualquer questão. A pergunta inicial que aqui nos cabe é, você sabia disto?

Talvez não. Mas, seu “não conhecimento” não o torna imune. Governos de diversos países estão adotando medidas tecnológicas baseadas em dados no trabalho de pandemia, no entanto, parece não haver qualquer tipo de excitação ou muita preocupação em como tal uso se dá em termos de seguridade ao direito à privacidade. No Brasil, quatro empresas de telecomunicação (Claro, Vivo, Oi e Tim) formalizaram um convênio com os governos estaduais para distribuição de dados de geolocalização sob a justificativa de que tais informações corroborariam com as medidas de isolamento social. Através destes, seria possível identificar e dissipar aglomerações de pessoas, um dos comportamentos de risco que aumenta as possibilidades contaminação por coronavírus.

No entanto, o processo de transferência dos dados aos Estados e sua utilização não são suficientemente transparentes e não garantem a proteção da identidade dos cidadãos. Segundo publicação recente do Estadão, apesar de todas as medidas de proteção à privacidade, especialistas dizem que não há garantia total do anonimato. A Data Privacy Brasil adotou o termo “pseudo anonimização” para descrever a situação e toda sua complexidade, que de forma alguma é mero clichê. Os dados coletados e utilizados podem facilmente serem cruzados com outras informações e atingirem camadas mais “íntimas” da vida das pessoas.

A Coréia do Sul, a Rússia, o Chile e outros países estão utilizando a mesma estratégia tecnológica para o combate à transmissão do COVID-19 e já existem relatos sobre a violação da privacidade em prol de estratégias de ação por parte de gestores públicos e governos. Ao olharmos pela lógica do governo sul-coreano, quando alguém é diagnosticado com o vírus, a vida inteira da pessoa é investigada. O governo utiliza da tecnologia de geolocalização para ter acesso a outras ações particulares do indivíduo, como histórico de uso do cartão de crédito para saber os locais visitados pela pessoa. Pelo GPS do celular, realizam uma linha do tempo indicando todos os lugares pelos quais a pessoa andou, revelando que de fato é possível passar do anonimato à exposição.

O Chile, por sua vez, sendo um país situado em um dos continentes mais desiguais do planeta, lançou o CoronApp, um aplicativo estatal com utilidade limitada e grande coleta de dados. Apenas para o cadastro inicial, o utilitário deve informar dados pessoais proibidos de serem acessados sem consentimento devido à regulação de proteção de dados vigente no país. São, portanto, informações muito valiosas pois com elas é possível traçar perfis dos hábitos de todos os usuários através da compilação de dados como o número de praticamente todos os documentos, estado de saúde, locais visitados e ambiente de relacionamento.

Não há como afirmar que o anonimato dos dados será garantido e por isso a transparência e o direito à privacidade devem ser respeitados e inseridos como necessidade nos planos de ação realizados pelos governos ou até mesmo pelas próprias empresas que fornecem os dados. Caso a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) já estivesse em vigência, teríamos um parâmetro de garantia à proteção dos dados e dos direitos fundamentais dos utilitários de celulares móveis no Brasil. A vigência da LGPD teria início em agosto de 2020, porém sua implementação poderá ser adiada, neste momento tão oportuno aos cidadãos, para janeiro de 2021. Desta forma, com toda a população focada nos riscos de contaminação e instabilidade política nas instâncias federais e estaduais, um grande volume de dados tem sido utilizado e muitos outros coletados. Existira um limite de extração e utilização destas informações?

É importante ressaltar que é a iniciativa privada que condensa a maior parte desses dados. Em outubro de 2015, a empresa Facebook lançou um projeto de fornecer internet para alguns países do continente africano, porém, o que a empresa chamou de fornecer internet se efetivou como oferecer acesso à sua rede social. O que o Facebook ganhou com esse projeto milionário? Dados! Informações em grande escala sobre um mercado consumidor pouco explorado pelas gigantes da tecnologia do Vale do Silício.

A filósofa norte americana Shoshana Zuboff (2015) discorre acerca de uma nova variante do sistema vigente chamada Capitalismo de Vigilância, no qual a mercadoria mais valiosa são os dados. Através do monitoramento dos comportamentos dos indivíduos, dados são colhidos e vendidos de modo que seja possível, após análise, gerar a melhor descrição possível de quem é cada consumidor e quais mercadorias o interessariam. Em outras palavras, a Netflix não “nos conhece milagrosamente” quando nos indica um filme que parece ter sido feito para nós, eles têm nossos dados.

Sem alimentar nenhuma espécie de teoria conspiratória, mas apontando o quanto os dados são valiosos no mercado mundial, grandes empresas de tecnologia estão à procura deles e já condensam grande volume de informações. Exemplo claro é o modo como muitas delas têm fornecido informações em larga escala no período da pandemia. Além do governo de São Paulo que vem monitorando o comportamento dos paulistanos através do uso dos dados das empresas de telecom, a Secretária de Educação do Estado do Rio usa o Google Classroom como sua plataforma de Ensino à Distância (EaD) do período de pandemia.

O contexto de pandemia é extremo, nem sempre se têm tempo de criar uma plataforma própria de ensino, por exemplo. Porém, o lugar que as gigantes da tecnologia tem ganhado na gestão pública não pode ser tomado tendo como parâmetro somente o contexto de expansão do COVID-19 porque faz parte de um pacote maior inserido no universo das Cidades Inteligentes. Onde a conexão é tida como um bem em si, a possibilidades de gerar dados sobre vários comportamentos é valiosa e num período histórico onde uma grande parcela da população mundial vive nas cidades, as Smart Cities passam a ser o projeto com maior valor de troca no mercado de cidades. A contrapartida desse processo, no entanto, é uma relação de interdependência entre as esferas públicas e privadas na tomada de decisões de cunho público.

Neste sentido, Morozov (2018) vai dizer que o “Solucionismo Digital” adotado por vários dos governos das cidades e Estados brasileiros, é um conto de fadas à medida que não dissolve as contradições do sistema, mas amplia as desigualdades. No Estado do Rio, por exemplo, após instauração do Google Classroom como plataforma a ser utilizada para rede estadual de ensino, várias questões emergiram como a principal delas que é o fato de que o uso da plataforma possui um condicionante: o acesso à internet. Comprar o direito de acesso à plataforma não é a solução haja vista que o ensino online é para alguns, para todos aqueles que têm dispositivos eletrônicos e acesso à internet.

À medida que os gestores públicos incorporam o conto da democracia digital, empresas ganham um vasto campo de coleta de dados e qualquer sinal de algum parâmetro democrático nem é visto. A fim de dissolver o conflito, o governo do Estado do Rio anunciou a distribuição de 750 mil chips para os estudantes da rede estadual acessarem a plataforma de seus smartphones, isto porque é plenamente presumível que todos os estudantes possuem um. Em outras palavras, o fator conectividade pode ser utilizado para maquiar as desigualdades pré existentes como, por exemplo, a ausência de infraestrutura básica para o sistema EaD online: os dispositivos eletrônicos.

A lógica de mercado permite definir o público para uma determinada mercadoria, não há qualquer necessidade de generalizações ou total abrangência. O Estado, em contrapartida, deve levar em consideração todos os seus residentes, expandir as fronteiras da região metropolitana e chegar às zonas rurais mais distantes. Mas a falha brutal do governo do Estado do Rio é perfeitamente compreensível quando a Governo Federal, diante de incertezas gigantescas quanto ao acesso aos conteúdos por parte dos estudantes da rede pública em meio a pandemia, confirma a realização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e anuncia o teste da versão digital da prova.

Não ficam fora desta discussão as unidades de ensino superior. A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em nota¹¹, se posicionou quanto ao modelo EaD deliberando que as disciplinas que já faziam usos de meios digitais, poderiam continuar com suas atividades. Apesar de não citar quais plataformas tais disciplinas utilizam, a UFRJ não possui um sistema digital composto com salas de aula virtuais, por exemplo, o que nos leva a concluir que tais plataformas são oriundas da iniciativa privada

É necessário ressaltar que as atividades de uma universidade pública não se resumem as aulas, mas grande parte das principais pesquisas do país são realizadas por instituições como a UFRJ. Em última instância, sob a perspectiva da coleta de dados em grande escala, fazer uso de plataformas como o Google Classroom pode significar ceder dados de pesquisa ainda em andamento, conhecimento de interesse e domínio público sendo acessados por setores que visam lucro.

Digitais a todo custo, ainda que isto nos custe o agravamento de nossas desigualdades sociais ou a violação de nosso direito à privacidade? Não somos tecnofóbicos, nem consideramos ser possível rejeitar completamente o uso de dados na gestão pública. Antes, consideramos que o discurso de proteção e prevenção no período de pandemia via utilização de grande quantidade de dados precisa encarar a complexidade que este formato impõe. A regularização e fiscalização do uso dos dados pessoais, para sua limitação e proteção, aumentariam a efetividade das políticas públicas, porém, como primeiro passo, a transparência deve ser uma espécie de princípio quando lidamos com Tecnologias da Informação e da Comunicação.

Segundo Nick Bostrom e Eliezer Yudkowsk (2011), transparência nas informações não é a única característica desejável na utilização de tecnologia, principalmente por órgãos públicos. Também é importante que os algoritmos utilizados nos programas desenvolvidos sejam previsíveis àqueles que os governam e que esses saibam o destino inicial e final dos dados utilizados para que não sejam suscetíveis a manipulação e vigilância. No Brasil, há pouca transparência sobre os termos do convênio entre o governo federal e as quatro empresas de telecomunicações citadas anteriormente e até a redação deste artigo, havia apenas declarações contraditórias da Anatel.

Sem uma regulação, sem a vigência de uma lei forte de proteção de dados e da privacidade, as ferramentas tecnológicas utilizadas pelos governos podem se voltar contra os cidadãos e contra as políticas públicas. As escolhas de como esses sistemas e programas serão utilizados precisam de muito cuidado, assumindo um comprometimento com a ética e a privacidade de dados da população, além de exigir a inclusão dos gestores públicos como parte do processo de criação dos códigos de programação. Isto porque, percebendo a quantidade de dados que têm sido coletados durante a pandemia, é possível supor um agravamento da dependência de certas políticas públicas dos interesses da iniciativa privada.

Qual valor nossos dados terão no mercado, pós pandemia?

 

 

¹Doutoranda do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/UFRJ

²Graduando do curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ

 

 

Referências:

Bostrom, N. e Yudkowsky, E., The ethics of artificial intelligence. In Cambridge Handbook of Artificial Intelligence (org. Keith Frankish and William Ramsey). New York: Cambridge University Press, 2011.

MOROZOV, Evgeny. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018.

ZUBOFF, S. Big other:Surveillance capitalism and the prospects v.30, n.1, p.75–89, 2015.

 

 

Notas:

1. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-04/covid-19-iniciativas-usam-monitoramento-e-geram-preocupacoes?fbclid=IwAR0SyTwnf8WFOTXCi5dYa6D7XeUPEDm7v3MUa82N2QPNHao5_o7kit4JPGw Acesso 20 de janeiro de 2020.

2. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral/covid-19-leva-maioria-dos-estados-a-vigiar-celulares,70003276037?fbclid=IwAR1Mp5gxGNybaTyBmVi3fLlOpM98g_yt97E5aRvSgvROdo0AtfooihZ6BeA> Acesso em 19 de abril de 2020.

3. Disponível em: https://exame.abril.com.br/tecnologia/covid-19-leva-a-maioria-dos-estados-a-vigiar-celulares/> Acesso em 22 de abril de 2020.

4. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-04/covid-19-iniciativas-usam-monitoramento-e-geram-preocupacoes> Acesso em 20 de abril de 2020.

5. Disponível em: https://olhardigital.com.br/coronavirus/noticia/como-governos-estao-usando-dados-de-localizacao-dos-celulares-no-combate-a-covid-19/98690> Acesso em 20 de abril de 2020.

6. Disponível em: https://www.derechosdigitales.org/14387/coronapp-la-inutilidad-del-atajo-tecnologico-desplegado-por-el-gobierno-y-sus-riesgos/> Acessado em 22 de abril de 2020.

7. Disponível em: <https://www.euractiv.com/section/science-policymaking/news/facebook-and-eu-satellite-operator-team-up-to-deliver-broadband-to-africa/> Acesso em 20 de janeiro de 2020.

8. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/03/30/alunos-da-rede-estadual-podem-acessar-plataforma-on-line-com-conteudo-de-aulas-a-partir-desta-segunda-feira.ghtml> Acesso em 20 de abril de 2020.

9. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/04/20/alunos-da-rede-estadual-de-ensino-do-rj-vao-receber-chip-para-acesso-a-internet.ghtml> Acesso em 20 de janeiro de 2020.

10. Disponível em: <http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/edital/2020/edital_enem2020_digital.pdf> Acesso em 20 de janeiro de 2020.
11. Disponível em: <https://ufrj.br/noticia/2020/03/22/coronavirus-reitoria-da-ufrj-faz-esclarecimento-sobre-ead?fbclid=IwAR3RvHFQSJDtsIzpGp15ZVtAkMi6SN0ITeDZYEyesBlCb-3ar21XKZDdO7Q> Acesso em 29 de janeiro de 2020.