Novos ventos estruturalistas sopram do sul: os primeiros 100 dias do governo peronista da Argentina e o papel do Estado
Boletim nº 12 – 17 de março de 2020
Por Ariel García¹
Na Argentina, para qualquer observador preocupado, o debate sobre o papel do Estado é histórico e, até certo ponto, empolgante. E isso é possível devido ao legado estruturalista latino-americano, que pode ser encontrado em qualquer conversa de café, em churrascos com a família, em táxis e em escritórios e fábricas. A questão é aparentemente simples: quem deve pagar impostos e quais serviços devemos receber das instituições estatais?
E é precisamente essa questão que envolve uma discussão não resolvida nesse País da América do Sul: de quem é a renda agrícola extraordinária da pampa? Uma pergunta que leva mais de 200 anos de debate e que tem dois segmentos sociais bem diferenciados em disputa. Esquematicamente: por um lado, encontramos a oligarquia diversificada (com empresas e interesses na agricultura, telecomunicações e setor financeiro) e os adotantes de tecnologia importada (beneficiados pelos saltos de produtividade possíveis devido às revoluções verdes e biotecnológicas). Seus protagonistas detestam o Estado, apesar de tenderem a usá-lo para seu enriquecimento pessoal, formam partidos e fundações políticas que, paradoxalmente, se declaram e exercem a antipolítica. Em termos culturais e econômicos, essa oligarquia diversificada representa os interesses coloniais dos países centrais e de suas empresas transnacionais. Seus atores secundários são, geralmente, as classes médias aspiracionais, com tendências cosmopolitas e guiadas pelo individualismo.
Por outro lado, temos as Micro, Pequenas e Médias Empresas (MPME) industriais, trabalhadores, grupos sociais, cooperativas, sindicatos. Trata-se de uma disputa não resolvida entre uma elite dominante, mas nunca líder, que se contenta em ser parasitária em contratos de obras públicas e patrimonialista de terras urbanas e rurais, e um conjunto de segmentos sociais que emergiu com a imigração do século XX, no calor da industrialização por substituição de importações, de uma sindicalização massiva (no início do século XXI, cerca de 40% da população ativa é sindicalizada) e influenciada pela oferta de serviços sociais públicos pelo Estado Nacional – destacam-se a educação e a saúde, gratuitas e de qualidade, além do Sistema de seguridade social, com ótima cobertura. Em seus 75 anos de história, o peronismo é que melhor interpreta as demandas do povo, especialmente por sua capacidade de entender o momento histórico e estabelecer acordos temporários com a oligarquia diversificada para dotar de governabilidade o conflito entre os segmentos de classe. Um elemento adicional é que, além de uma significativa contribuição migratória européia, a industrialização foi nutrida por migrantes do norte da Argentina e países vizinhos (Uruguai, Paraguai, Bolivia, Perú, Chile). Esses grupos sociais são, tradicionalmente, a base eleitoral do peronismo.
Essas são duas maneiras de conceber o destino de um país: é um laço hegemônico em que os minutos de extensão da partida não servem para definir um vencedor claro, onde a estabilidade começa a ser a alternância no governo de uma ou outra facção. Essa luta não ocorre no vácuo, mas sobre uma estrutura produtiva desequilibrada, que se traduz em uma escassez crônica de dólares para garantir a industrialização, apoiar a autonomia política e fortalecer a capacidade do Estado de intervir em favor da equalização de direitos.
Desde dezembro de 2019, essa disputa sobre a questão é clara: quem deve pagar impostos e quais serviços devemos receber das instituições estatais? O governo peronista de Alberto Fernández e Cristina Kirchner recebeu de seu antecessor (o governo neoliberal de Mauricio Macri, do período 2015-2019) uma crise econômica de profundidade inimaginável, que possui três pilares.
Primeiro, um crescimento exponencial da dívida externa.
No período 2015-2019, a dívida do estado federal cresceu de 52,6% para 91,6% do PIB, de acordo com o Ministério da Economia. Em apenas quatro anos, dos US $ 187 bilhões contratados pelo governo Macri, 36% (US $ 68 bilhões) saíram pela porta giratória da fuga de capitais e da dolarização. Apenas metade do passivo assumido foi para cobrir o vermelho das contas públicas. Uma parte significativa da fuga de moeda estrangeira foi para paraísos fiscais, destinada a empresas offshore que cobrem a propriedade de segmentos da elite econômica. Um fator agravante: dos US $ 187 bilhões, US $ 44 bilhões correspondem aos empréstimos do Fundo Monetário Internacional, implicando a política econômica com as condições usuais.
Esse mecanismo de dívida e fuga teve a novidade de que o governo Macri foi o que mais endividou o País em apenas quatro anos, aproveitando o conhecimento de seus funcionários, muitos dos quais eram CEOs de bancos e fundos de investimento. Eles usaram a revolução nas tecnologias de comunicação e informação para acelerar o processo.
Segundo, inflação de preços intensificada, em termos históricos e regionais. No período de novembro de 2015 a dezembro de 2019, a inflação acumulada no varejo foi de 302%. Essa inflação teve três causas principais: devido à estrutura concentrada e estrangeira de uma parte significativa do aparato produtivo argentino, qualquer desvalorização do peso foi transferida quase automaticamente para o aumento dos preços. E, no período indicado, o Banco Central flutuou a moeda nacional “naturalmente”: a desvalorização foi de quase 540%. A segunda causa consistiu no aumento chocante do preço dos serviços públicos (eletricidade, água, gás, combustíveis), nos quais Macri e parceiros têm interesses específicos. Esses preços aumentaram com autorização e forte iniciativa do governo. Resultado combinado das duas causas, a terceira é a reedição do processo conhecido na ditadura de 1976-1983: o conflito pela renda nacional entre formadores de preços (grandes empresas) e trabalhadores sindicalizados. E, uma vez que esse conflito foi ganho pelos formadores de preços, houve outras disputas entre as diferentes facções de capital (por exemplo, empresas agro-alimentares, serviços financeiros etc.), motivo adicional para nova determinação de alta de preços. A consequência mais evidente foi a elevação significativa da pobreza (passou de 29 para 35% da população) e da taxa de desemprego (passou de 6% para 10% da população economicamente ativa), de acordo com estatísticas oficiais.
Terceiro, como corolário dos pilares anteriores (fuga de dólares e inflação alta com perda de poder de compra): recessão de profundidade e amplitude históricas. Declínios na atividade econômica foram registrados nos três anos do governo neoliberal: de acordo com a série estatística oficial, ocorreu uma redução acumulada de 6,7% em relação a novembro de 2015.
Em resumo, um país mais endividado, mais pobre e com menos riquezas para distribuir.
O governo peronista de Alberto Fernández e Cristina Kirchner enfrenta um trilema: negociar a dívida externa (não pagável nos termos e valores atuais), controlar a inflação (com um estado que deve ser reconstruído para monitorar preços e orientar incentivos econômicos para os principais atores econômicos) e revitalizar a economia (com um comércio internacional em queda livre e com muitas demandas sociais acumuladas). Qualquer passo em falso da resolução do trilema pode terminar em suspensão de pagamentos ou hiperinflação.
Nos primeiros 100 dias do governo peronista, sopram novos ventos que retomam o aprendizado do legado estruturalista. Nesse sentido, o CELAG (Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica) compilou as principais intervenções:
I) Política Tributária, aumento tributário para segmentos capitalizados; a) Atualização dos coeficientes dos direitos de exportação para a agronegócio, até recuperar o valor cessante estabelecido pelo governo (a sua cobrança é segmentada de acordo com a escala de produção); b) Imposto sobre o dólar e limite para a compra de US $ 200 por pessoa por mês (consumo em moeda estrangeira e aquisição de moeda estrangeira para estocagem, com imposto de 30% sobre o preço oficial do dólar); c) Acordo com os governadores para a suspensão do consenso fiscal de 2017, que buscava a eliminação dos impostos provinciais; d) Imposto sobre a riqueza pessoal: regime de alíquota progressiva para bens pessoais, entre 0,5% e 1,25%. Os ativos financeiros localizados no exterior podem ter uma alíquota que pode dobrar as alíquotas definidas para ativos localizados no território nacional.
II) Preços, arbitragem estadual da oferta distributiva: a) o estado recupera o poder regulador sobre as empresas de distribuição de gás e eletricidade, congelando tarifas por 180 dias; b) os aumentos de combustível são suspensos do poder de mercado detido pela estatal YPF; c) A redução de 8% no preço dos medicamentos foi acordada com as empresas farmacêuticas e seu congelamento até 1º de fevereiro; restabeleceu-se, ademais, uma formulação de 170 medicamentos gratuitos para aposentados; d) manutenção do preço dos pedágios e serviços públicos de transporte de passageiros por ferrovia automotiva, urbana, suburbana e ferroviária, metropolitana, regional e de longa distância, da jurisdição nacional por 120 dias até a revisão do sistema de subsídios; e) aumento salarial de funcionários públicos e privados de menor renda; f) restabelecimento do programa “Preços Cuidados” (preços de referência para necessidades básicas), composto por 310 produtos, com redução média de 8% no preço e um aplicativo massivo para o controle do cidadão; g) aumento dos ativos previdenciários e discussão de um novo regime de mobilidade de renda (na Argentina, o sistema previdenciário é público); h) Cartão de alimentos: mães e pais de beneficiários da AUH (“Asignación universal por hijo”, transferência direta de renda, semelhante ao Programa Bolsa Família) com idade até 6 anos, gestantes a partir de 3 meses e pessoas com deficiência (beneficiárias da AUH) recebem um cartão com valores entre 280 e 425 reais por mês (conforme número de filhos), para a compra de alimentos em supermercados e armazéns.
III) Política monetária e pagamento da dívida: a) redução da taxa de juros de 63% para 38% ao ano (a taxa é o mecanismo preferido pelos governos neoliberais para permitir a avaliação financeira); b) o governo foi autorizado a pagar dívida externa com reservas do Banco Central e foram iniciadas as negociações da dívida contratada com o FMI e os fundos de investimento, com o objetivo de obter uma retirada de capital e juros, bem como uma extensão dos termos a pagar.
Em suma, o governo peronista tenta resolver o trilema imposto pela governança neoliberal com outras regras do jogo. Os desafios são múltiplos, como conter demandas populares, especialmente respondendo a alegações genuínas de segmentos autônomos não politizados, geralmente capturados pela lógica neoliberal e propensos a serem colonizados pelas supostas soluções mágicas de “pregadores” aconselhados pelo marketing político.
Além dos sucessos e erros, na América do Sul, temos um novo governo que aceita os melhores legados do estruturalismo latino-americano. É uma chama viva que sopra do sul e pode ser capturada pelo Brasil. Argentina e Brasil não têm apenas um passado comum, mas também um destino. Construir um caminho conjunto para suas forças populares não é apenas um imperativo moral, mas também uma necessidade para a felicidade de nossos povos.
¹Pesquisador adjunto do CONICET no CEUR, onde dirige o Grupo de Economias Regionais. Ele também trabalha como professor de Economia Política (Faculdade de Ciências Sociais-FSOC-UBA, 2008) e Geografia Econômica (FFyL UBA, 2015). Leciona cursos de pós-graduação em várias universidades da Argentina (UNSam, UNER, UNLam, FADU-UBA, FCE-UBA, FSOC-UBA, FA-UBA, UNaM). Possui doutorado em Geografia (Faculdade de Filosofia e Letras -FFyL-UBA, 2011), mestrado em Estudos Sociais Agrários (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais -FLACSO- Sede Argentina, 2009) e diploma em Geografia (FFyL-UBA, 2004).
²A “pampa” é uma planície de aproximadamente 600 mil km2, situada no centro-leste da Argentina. Com o meio-oeste americano, é a maior planície fértil do planeta.
³O peronismo é um movimento político nacional e popular policlassista, que integra diferentes ideologias. Defende a industrialização, o controle comércio exterior e o estado regulador, bem como a saúde e educação públicas, subsídios sociais, neutralidade internacional e integração política e comercial sul-americana. É um movimento populista, pois a figura do líder e a construção do povo (não como massa, mas como protagonista) são centrais para melhorar as condições da vida social em contextos de ausência ou restrição de divisas.