O CicloRio e a desigualdade urbana: Desafios na implementação de políticas cicloviárias no Rio de Janeiro

Boletim nº 84, 10 de dezembro de 2024

Gabriel Ferreira Fernandes

Arquiteto e urbanista (FAU/UFRJ)

Mestre em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ)

Doutorando em Engenharia de Transportes (PET/COPPE/UFRJ)

A busca pela sustentabilidade nas cidades contemporâneas tem se tornado um tema central nas agendas de planejamento urbano, especialmente devido às crescentes questões relacionadas à mobilidade nas grandes metrópoles. As cidades estão, cada vez mais, sendo pressionadas a repensar a forma como se organizam e se estruturam para garantir que a mobilidade urbana seja eficiente, acessível e, sobretudo, sustentável. Esse desafio é ainda mais urgente em contextos onde a infraestrutura urbana tem se mostrado inadequada para atender às demandas de uma população crescente e diversificada, com desigualdades socioeconômicas evidentes. A mobilidade urbana, quando mal planejada, tem gerado não apenas congestionamentos e sobrecarga nos sistemas de transporte, mas também tem contribuído significativamente para a desumanização dos espaços urbanos, com um impacto direto na qualidade de vida das pessoas que vivem nas cidades.

No Brasil, e em muitos outros países com um modelo capitalista de desenvolvimento, o uso do automóvel particular tem sido incentivado como uma solução para os problemas de transporte. Entretanto, essa abordagem tem gerado uma série de consequências negativas, como congestionamentos, a privatização do espaço público, a concentração da mobilidade urbana nas áreas mais centrais e sérios impactos ambientais. O aumento no uso de veículos particulares tem levado à degradação do ambiente urbano, promovendo um modelo de cidade que não favorece a inclusão, mas sim a segregação. A ideia de que o automóvel é a principal solução para a mobilidade tem sido, ao longo do tempo, consolidada e naturalizada em diversas sociedades, o que torna ainda mais difícil imaginar alternativas viáveis. O urbanista e pesquisador Lenner (2012) faz uma interessante comparação ao dizer que “o carro é o cigarro do futuro”, evidenciando como, assim como o tabagismo, o uso indiscriminado do automóvel é prejudicial à saúde urbana e ambiental, mas ainda assim amplamente aceito.

Dentro desse contexto, a mobilidade ativa, que inclui o deslocamento a pé e o uso de bicicletas, surge como uma alternativa de grande relevância para repensar o modelo de transporte nas cidades. A mobilidade ativa não só diminui a quantidade de veículos nas ruas, mas também tem implicações significativas para a melhoria da qualidade do ar, a redução da poluição e o aumento da salubridade dos centros urbanos. Além disso, ela contribui para a promoção de uma vida mais saudável, uma vez que estimula a prática de exercícios físicos regulares, como caminhar e pedalar, ao invés de depender exclusivamente de transportes motorizados. No entanto, a adoção de soluções voltadas para a mobilidade ativa exige a implementação de novos paradigmas urbanos, incluindo mudanças nos hábitos da população, a superação de privilégios relacionados ao uso do automóvel, e um esforço contínuo de adaptação aos novos tempos.

Nesse cenário, a bicicleta surge como um importante catalisador da mudança, não apenas pela sua baixa emissão de poluentes, mas também por sua capacidade de conectar pessoas e atividades econômicas. Nas áreas periféricas das grandes cidades, onde a população de baixa renda tem acesso limitado aos meios de transporte convencionais, a bicicleta representa uma alternativa acessível e eficiente, podendo contribuir para a redução das desigualdades sociais e econômicas. O uso da bicicleta como meio de transporte é especialmente relevante nas regiões periféricas, onde a falta de infraestrutura de transporte público adequado e o alto custo do transporte motorizado dificultam o acesso das populações mais pobres a oportunidades de emprego, educação e outros serviços essenciais.

De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), as pessoas de baixa renda são as que mais se beneficiam das políticas de incentivo ao transporte ativo, como a bicicleta (Pereira. et al 2011). Esses dados revelam que o custo elevado do transporte motorizado limita as opções de mobilidade para essa parcela da população, além de restringir o acesso a oportunidades de emprego e contribuir para a exclusão social. Em cidades como São Paulo, onde uma grande parte das viagens relacionadas ao trabalho é feita a pé ou de bicicleta, o transporte ativo tem sido a solução encontrada por muitas pessoas devido à sua limitação financeira. Segundo a Pesquisa Origem-Destino 20171, cerca de 16% das viagens feitas para buscar emprego na Região Metropolitana de São Paulo foram realizadas a pé ou de bicicleta, sendo que uma grande parte dessas viagens foi motivada pela restrição financeira, evidenciando como o alto custo do transporte motorizado impacta diretamente a vida das pessoas.

No campo das políticas públicas, a promoção do uso da bicicleta como meio de transporte sustentável tem gerado resultados positivos em várias cidades ao redor do mundo. Um estudo comparativo realizado por Calil e Pereira (2018) analisou as políticas públicas de incentivo ao uso da bicicleta em três grandes cidades: Nova York, Cidade do México e São Paulo. Os resultados mostraram que a criação de infraestrutura cicloviária e a implementação de políticas públicas voltadas para o uso da bicicleta contribuíram para o aumento do número de ciclistas e, simultaneamente, para a redução das mortes no trânsito. Esses dados reforçam a importância de se adotar políticas públicas que incentivem o uso de modos de transporte mais sustentáveis, como a bicicleta, especialmente em cidades com grandes desafios de mobilidade.

O desenvolvimento dessa pesquisa visa contribuir para o entendimento da relação entre a mobilidade ativa e o planejamento urbano, especialmente nas áreas periféricas das grandes cidades. A proposta é analisar como o planejamento urbano pode ser mais inclusivo e democrático, garantindo que as populações mais vulneráveis tenham acesso a uma infraestrutura de transporte sustentável, eficiente e acessível. Além disso, a pesquisa busca entender como a implementação de políticas públicas voltadas para a mobilidade ativa pode ajudar a reduzir as desigualdades sociais e econômicas nas cidades, com destaque para o caso do Plano de Expansão Cicloviária do Rio de Janeiro, o CicloRio.

O CicloRio é um plano estratégico para a promoção da mobilidade cicloviária na cidade do Rio de Janeiro, que visa incentivar o uso da bicicleta como meio de transporte sustentável e interligar as diversas regiões da cidade por meio de uma rede de ciclovias. O plano, assinado pelo prefeito Eduardo Paes, foi desenvolvido a partir de uma série de iniciativas e políticas públicas voltadas para a mobilidade sustentável, com o objetivo de criar uma infraestrutura cicloviária que atenda às necessidades da população e promova a democratização do uso do espaço público. O plano tem como meta a criação de 442 novas ligações cicloviárias até 2033, ampliando a rede existente e conectando os bairros da cidade de forma mais eficiente.2

No entanto, apesar das boas intenções do CicloRio, a pesquisa realizada indicou que o plano ainda apresenta lacunas e desafios para ser efetivamente implementado de forma equitativa. A análise do plano sob a ótica da justiça socioespacial revelou que, embora o plano tenha uma abordagem macro, com foco na cidade como um todo, ele ainda carece de uma atenção mais detalhada às realidades específicas de cada bairro, especialmente nas áreas periféricas. No estudo de caso do bairro de Curicica, no Rio de Janeiro, foi possível perceber que o plano não leva em consideração as particularidades da região, o que resulta em um descompasso entre o diagnóstico feito pelo plano e as necessidades reais da população local. Além disso, a pesquisa evidenciou que o plano não aborda adequadamente a intermodalidade, ou seja, a integração entre a bicicleta e outros modais de transporte, como o transporte público, o que compromete a eficácia da proposta.

O estudo revelou, portanto, que o CicloRio ainda precisa ser aprimorado para atender de forma mais eficaz às necessidades da população, especialmente nas áreas mais carentes da cidade. A análise das escalas de projeto, tanto na cidade como no bairro e na rua, mostrou que é fundamental compreender as especificidades de cada localidade e garantir que a implementação do plano seja feita de forma democrática e inclusiva. Somente com uma abordagem mais detalhada e sensível às realidades locais será possível garantir que o plano de expansão cicloviária tenha um impacto positivo na mobilidade urbana e contribua para a promoção da justiça social e da sustentabilidade nas cidades.

Em resumo, esta pesquisa integra componentes sociológicos a uma abordagem de arquiteto urbanista do pesquisador, ressaltando tanto as fragilidades quanto às potencialidades dos projetos de intervenção urbana. O objetivo central é fomentar novas reflexões interdisciplinares, especialmente no que se refere à mobilidade urbana, visando responder a questões e promover debates em diversas áreas do conhecimento, em especial no planejamento territorial.

NOTAS

1 Documento da Pesquisa: <https://setrerj.org.br/wp-content/uploads/2017/07/175_pdtu.pdf.> 

2 Revista Veja (2023): < https://vejario.abril.com.br/cidade/plano-expansao-ciclovias-rio.>  

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALLIL, V.; PEREIRA, D. C. DE A. Análise Comparativa De Políticas Públicas Para Bicicleta: Nova York, Cidade do México e São Paulo. Revista de Políticas Públicas, v. 21, n. 2, p. 915, 16 jan. 2018. 

FERNANDES, Gabriel Ferreira. Infraestrutura cicloviária e desigualdades urbanas: uma perspectiva multiescalar sobre o Plano Cicloviário do Rio de Janeiro – CicloRio. 2024. 101 f. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2024.

PEREIRA, R. H. M. et al. Tendências e desigualdades da mobilidade urbana no Brasil I: O uso do transporte coletivo e individual. Texto para Discussão 2871. IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.