O corpo feminino na cidade: uma perspectiva geral do debate
Boletim nº 82, 04 de outubro de 2024
Yara Coelho Neves
Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional – PPGPUR/UFRJ
A cidade é um lugar físico dos acontecimentos e relações sociais. Em sua tese, Terezinha Gonzaga define-a como um lugar de fazer social, onde se dão encontros, comemorações, consumo, trabalho, ócio e lutas sociais (GONZAGA, 2004, p.17). A cidade seria um resultado fluido de eventos e ações humanas acumuladas ao longo do tempo que fazem com que seja impossível dissociar espaço e sociedade (CARLOS, 2007, p.20).
Nesta visão, podemos dizer que nossas cidades contemporâneas também refletem, não só as questões referentes às práticas sociais atuais, como uma série de camadas históricas, constituídas desde seu surgimento até hoje, são o lugar de materialização das ideologias (GONZAGA, 2004, p.18). Caracterizada pelo capitalismo, nossa sociedade reflete no solo urbano a exploração e o privilégio dos interesses financeiros e, portanto, enxerga a cidade como mercadoria (MARICATO, 2015, p. 11-22). Dessa forma, elas carregam as marcas das estratificações das classes sociais e os diversos usos do solo são altamente desiguais, uma vez que se sustenta em um sistema regido e estruturado por uma grande desigualdade, determinada pela existência de inúmeros estratos de dispostas de poder onde vibram o dissenso e a exploração. Vemos, então, no solo urbano os efeitos de uma sociedade estruturada através do patriarcado e do machismo, entre outros estratos de disputa, uma vez que as cidades são condicionadas pelas questões sociais. Porém, elas são também condicionantes destas questões, fazendo com que as afetações retornem ao ser humano que a habita (CORRÊA, 1989, p. 8-9). Neste sentido, podemos dizer que a experiência de estar na cidade é apreendida de maneira diferente de acordo com a vivência de cada corpo. Há toda essa gama de marcadores (raça, classe, gênero etc.) que impactam na forma como os espaços urbanos são experienciados e apreendidos pelas pessoas. Lígia Maria Casimiro (2017) aponta que as cidades têm uma relação muito clara com a exclusão do corpo feminino. Para ela, a forma como os espaços da cidade funcionam, tem muito a ver com o uso que o corpo masculino faz deles. Dentro da lógica dos papéis masculinos e femininos histórica e socialmente construídos pela nossa sociedade, vemos que a grande responsável pela cadeia do cuidado ainda é a mulher, que acumula inúmeras funções. Tais funções, são executadas em diferentes lugares, o que solicita uma certa mobilidade e acessibilidade que vai envolver a segurança e a possibilidade de a mulher transitar para o trabalho, para acessar serviços públicos, privados, lazer e cultura (CASIMIRO, 2017). Entretanto, quando olhamos para a realidade prática do dia a dia nas nossas cidades, observamos que, em sua maioria, elas não acolhem esse movimentar da mulher, não estão preparadas para facilitar este acúmulo de funções e muito menos são seguras para a maior parte das vivências femininas. Mesmo ao considerarmos a complexidade que envolve a mulher, em todas suas subjetividades, que não podem ser apreendidas nem reduzidas a uma identidade única pois compreende inúmeras camadas, é possível perceber que as cidades vão apresentar alguma hostilidade em relação a alguma camada deste feminino.
a cidade não se configura como um espaço neutro, mas como elemento de ordenamento das experiências urbanas a partir da lógica de dominação masculina e das desigualdades estruturantes do sistema, sejam de gênero, raça ou classe social (LYRA, 2020). De acordo com essa perspectiva, as lógicas patriarcais atravessam o espaço urbano e criam dicotomias que servem de reforço para os papéis socialmente estereotipados quanto ao feminino e ao masculino (SILVA; DANTAS; DIMENSTEIN, 2020, p. 117)
Como retrato disso, esses espaços urbanos vêm se tornando cada vez mais violentos e perigosos para o corpo feminino, impregnados de intolerância e insegurança, fisicamente deficientes e com mobilidade insuficiente (FERREIRA; SILVA, 2017). Diante deste cenário, coloca-se a reflexão de onde estão, então, os corpos femininos nas cidades e, ainda mais, como estão se movimentando frente a demandas tão complexas e dificuldades tão latentes?
É importante destacar – principalmente no âmbito de uma pesquisa que se apoia nas teorias feministas – que as subjetividades das mulheres são muitas e que cada corpo feminino tem sua própria história e vivência nos lugares que ocupam. Não cabe aqui, a partir deste texto, uma generalização da experiência urbana da mulher. Mas é necessário que coloquemos luz em questões do complexo uso das cidades pelas mulheres, em toda sua diversidade. Esse debate vem crescendo e ganhando espaço nas últimas décadas, mas ainda está longe de soluções satisfatórias e amplo alcance.
Situar a realidade socioeconômica da mulher brasileira é importante para situar o seu lugar na cidade. Terezinha Gonzaga (2004, p.16) se apoia em um relatório de desenvolvimento publicado pela Organização das Nações Unidas, em 1998, que aponta que as mulheres seriam o seguimento mais empobrecido do planeta, isso ainda sendo “agravado pelo componente estrutural de cunho ideológico que permeia o preconceito contra as mulheres, impedindo-as de usufruir e apropriar-se do espaço construído, público e privado e até mesmo de seus próprios corpos.” (GONZAGA, 2004, p. 16). Vinte e cinco anos passados da publicação deste relatório, a realidade não parece ter se modificado. Segundo um Boletim especial do dia 8 de março, publicado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) em 2023, baseado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a menor renda per capita estaria localizada nos lares chefiados por mulheres. Além disso, o boletim aponta que as organizações familiares tradicionais brasileiras sofreram uma substancial modificação ao longo dos últimos anos. Os modelos familiares compostos por casais sem filhos, núcleos unipessoais e famílias monoparentais cresceu consideravelmente. Neste contexto, os núcleos familiares chefiados por mulheres passaram a ser muito expressivos e podemos considerar que a maioria dos domicílios brasileiros é chefiada por mulheres.
Assim, podemos observar que as mulheres compõem expressivamente a parcela da população com maior vulnerabilidade social e econômica. A hipótese de que existe uma “manutenção da pobreza” feminina vem sendo investigada já a algumas décadas. Foi a partir desta ideia que a socióloga estadunidense Diane Pierce cunhou o termo “feminização da pobreza”. De acordo com Novellino (2004), em resumo, o termo “feminização da pobreza” representaria uma noção de que, ao longo dos anos, as mulheres vêm se tornando cada vez mais pobres do que os homens. Este fenômeno estaria ligado diretamente à forma de participação da mulher no mercado de trabalho e como isto impacta a sua renda, uma vez que, segundo a autora, há uma grande quantidade de mulheres ocupando cargos temporários ou em tempo parcial; há uma discrepância salarial muito grande; há uma concentração grande de mulheres em ocupações que exigem menor qualificação e, portanto, pagam menos; também se concentram nos baixos níveis da economia informal. Novellino se baseia na teoria de Diane Pierce, que afirmou que “a pobreza está se tornando um problema feminino” (PIERCE, 1978 apud NOVELLINO, 2004). Segundo ela, o fenômeno de empobrecimento das mulheres estaria associado ao aumento de famílias chefiadas por mulheres, por isso sua análise se dá a partir das “que são pobres porque são mulheres” (1978, p.28 apud NOVELLINO, 2004, p. 03), apesar de ela não desconsiderar o fato de que existem mulheres pobres em famílias chefiadas por homens.
Pensar essa condição socioeconômica feminina, é fundamental para entendermos o lugar que as mulheres ocupam na cidade e como ocupam. Segundo Lacerda, Guerreiro e Santoro (2021), apesar da estabilidade nos dados mais gerais do déficit habitacional, divulgados pela Fundação João Pinheiro (FJP) no período relativo entre 2016 e 2019, alguns indicadores muito relevantes se modificaram e apontaram para transformações muito importantes nas dinâmicas urbanas e habitacionais brasileiras. As autoras chamam atenção para uma “feminização do déficit habitacional”. De acordo com a análise feita por elas, em 2019, 60% das pessoas que viviam em condições inadequadas de moradia eram mulheres.
Quando comparamos, os dados analisados pelas autoras (que se referem ao período de 2016 a 2019), com os dados divulgados recentemente, em maio de 2024, referentes à PnadC 2022, essa realidade se mantém. A porcentagem de mulheres chefes de família em déficit habitacional cresceu de 60% para 62%. Segundo a FJP (2024, p. 32),
a distribuição do déficit habitacional por sexo do responsável pelo domicílio mostra o predomínio em todos os componentes e em todas as regiões dos domicílios com a mulher como responsável pelo domicílio (exceto coabitação na região Sul). Assim, o indicador geral tem 3,89 milhões de domicílios onde uma mulher é responsável (62,6%) e 2,31 milhões onde o responsável é um homem (37,2%).
Quando se fala sobre acesso à moradia, leva-se em consideração questões que perpassam a estabilidade arquitetônica da edificação em si, o acesso mínimo a estruturas e serviços, onde esta edificação se implementa, a segurança da posse, etc. Ou seja, uma condição mínima de existência humana numa realidade de dignidade. O impacto da falta de acesso a este mínimo já vem sendo discutido por urbanistas, geógrafos, sociólogos, há muitas décadas e compõem intermináveis estudos neste campo do saber. Entretanto, o que se acrescenta agora à discussão é como o impacto é diferente (e pior, mais massacrante) para o corpo feminino e ainda pior para o corpo feminino preto.
Betânia Alfonsin (2006) fala sobre como a qualidade da casa, o lugar da cidade em que ela se localiza, a possibilidade de se acessar serviços básicos como equipamentos de saúde, educação lazer, pavimentação adequada, água encanada, luz elétrica, saneamento básico, transporte coletivo, influencia na forma como as mulheres vivenciam as suas jornadas duplas (triplas, quádruplas…).
Todas essas questões pontuadas impactam diretamente no grau de dificuldade para se realizar o trabalho reprodutivo, fazendo com que a mulher viva em uma eterna “corrida contra o relógio” (CALIÓ, 1993 apud GONZAGA, 2004, p.188) para conciliar as demandas referentes ao trabalho produtivo e reprodutivo. A exemplo, a mulher se levanta cedo, prepara o café de todos, cuida das crianças, confere os compromissos médicos dos idosos da casa, se arruma e sai. Ela não irá direto para seu trabalho, precisa deixar o mais novo na creche, o mais velho na escola de ensino fundamental, para aí sim pegar seu ônibus, se deslocar até o trabalho. No fim do dia, faz o caminho inverso, após encarar um transporte precário, pega o mais novo na creche (quem buscou o mais velho?), passa no postinho, consulta a criança, ou leva pra casa, traz o idoso pra consultar, no fim da noite coloca os uniformes para lavar, prepara a refeição de todos, prepara as marmitas, gerencia a higiene da família, para ir então se deitar finalmente (GONZAGA, 2004, p. 188).
A descrição desta dinâmica familiar é hipotética, mas sabemos bem que ela representa a realidade de muitos lares que conhecemos, e é aí que podemos perceber como a forma e o local em que se habita impacta no cotidiano feminino. Ainda de acordo com Gonzaga (2004, p.188), a cidade reproduz em seu espaço físico a opressão e diferença sofrida pelo corpo feminino, além de que a maneira como a cidade se estrutura, vai afetar diretamentamente a administração do tempo desta mulher, uma vez que “o importante fator da definição dos locais de moradia, dos equipamentos, do trabalho é o que determina seus trajetos e se eles serão desgastantes ou gerarão contatos enriquecedores com a paisagem urbana”.
Esse cotidiano de cuidado familiar exige da mulher um movimento complexo nas cidades que, como vem nos mostrando as pesquisas sobre mobilidade que partem da ótica do gênero, não estão preparadas para acolhê-lo. Isso se dá porque as cidades não são pensadas a partir do gênero, como categoria fundamental, levando em consideração as diferenças nas formas como homens e mulheres circulam e acessam recursos de mobilidade, levando a diferenças significativas nos padrões de viagens e nas experiências e vivências (SILVA; DANTAS; DIMENSTEIN, 2020, p. 117). “Homens e mulheres circulam na cidade de maneira distinta em função das desigualdades de gênero histórica e socialmente produzidas” (SILVA; DANTAS; DIMENSTEIN, 2020, p.116).
Dizer que o transporte coletivo não abarca a complexidade do trabalho de cuidado relegado à mulher, já é redundante, mas para além da dificuldade de mulheres circularem nas cidades para atender suas demandas cotidianas, outras questões vêm a cargo de suas viagens que se tornam mais longas, após esperarem por mais horas e ainda tendo que utilizar mais de um modal de transporte. Há um impacto financeiro, um impacto no tempo “livre” (que, no caso da mulher, nunca é livre), um impacto nas pequenas e ínfimas possibilidades que poderiam representar uma melhora na vida das mulheres (ALBUQUERQUE, 2019, p.17). Tudo isso, inclusive, impacta não somente na mulher, mas também em toda família que é dependente de seus cuidados e de sua renda. Além disso, há o impacto na segurança pessoal deste corpo feminino, exposto na cidade sem seus direitos. Essa exposição deixa o corpo feminino vulnerável a diversos tipos de violências e assédios vinculados à questão de gênero.
O assédio no meio urbano e a sensação de insegurança são questões muito latentes e importantes para este debate. Uma pesquisa sobre “desigualdades” realizada em 2022 pelo Instituto Cidades Sustentáveis, em parceria com o IPEC (Inteligência em Pesquisa e Consultoria), que ouviu 1.062 mulheres com idade acima de 16 anos de todas as regiões do país, divulgou que cerca de 47% das brasileiras já sofreram assédio em espaços públicos. Segundo essa pesquisa, os locais em que o assédio é mais frequente são a rua, os espaços públicos e o transporte coletivo. A permanência desse corpo feminino sozinho em ambientes como praças e parques se torna, então, muito difícil e perigosa. A sensação de insegurança é uma constante. Frente à uma realidade cotidiana tão instável e vulnerável ao se deslocarem nas cidades, muitas vezes, as mulheres acabam necessitando pensar alternativas para mitigar essas questões e tornar as experiências nos seus trajetos menos perigosas, exaustivas e longas. Essas práticas podem ter a proporção de ações cotidianas pequenas, de redes de ajuda mútua ou podem ganhar a proporção de mobilização social.
O fechamento deste texto não aponta para soluções das questões debatidas nele. Na verdade, a conclusão aqui proposta vem em um tom de provocação a nós, planejadores urbanos, que seguimos em um debate a partir de um lugar de neutralidade que não se efetiva. Podemos discutir direito à cidade sem pensar que as vivências na cidade não são uniformes? É impossível que a discussão máxima do planejamento urbano, que vem embasando teorias importantes ao longo dos anos nesse campo de estudos, não leve em consideração as diversas camadas existentes. Sabe-se que falar sobre direito à cidade não tangencia apenas o acesso a recursos urbanos, ou seja, demandar infraestrutura, equipamentos e serviços urbanos, habitação ou mobilidade de uma maneira direta e prática. Trata-se de compreender a cidade como um bem comum, admitindo que as desigualdades e opressões são forças determinantes na produção do espaço urbano e que suas complexas camadas precisam ser consideradas. Enquanto nos colocarmos no lugar da “neutralidade científica” estaremos reproduzindo discursos opressivos e excluindo debates que já passam da hora de se concretizarem em ações práticas.
¹ Pearce, Diane (1978).The feminization of poverty: women, work and welfare. Urban and Social Change Review, p.28-36
REFERÊNCIAS
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