O trauma do tronco: a filosofia míope no espelho

Boletim nº 19 – 07 de maio de 2020

 

Por Wallace Lopes Silva¹ e Gabriel Lopes Figueiredo²

 

Resumo: 

O que move este ensaio de pensamento é a tentativa de repensar as feridas estruturais na constituição do imaginário do medo projetado na instauração animalizada do constructo do corpo negro escravizado por teorias raciais e racializantes. Tal questão ensaística, focará o racismo na condição espacial enquanto conduta pedagógica e reprodutora do psiquismo histórico do trauma do pós-abolição em curso. Haja vista; que nossa sociedade moderna –colonial , racial e racializante articulou razão e raça como modelo epistêmico no processo de desafricanização dos atores-negros na cidade . O trauma do tronco é uma estrutura condicional das formas espaciais cicatrizadas no texto-corpo ratificado pela interdição do protagonismo negro do pensar filosofia no Brasil. Assim; o corpo negro espacializado no Brasil foi entendido como animal, coisa, objetos e mercadoria sendo espacializados de modo condicional da ausência de existência limitada nas sombras do ocidente racial-racializante do racismo estrutural no espaço urbano.

Palavras chaves: Cidade, espaço, corpo, medo, território e trauma do tronco.

O olhar de pedra de um senhor calou por séculos as possibilidades de liberdade diante de um regime estrutural da escravidão, ratificado no corpo coletivo da sociedade por diversas gerações cegas no diante do espelho filosófico. Mais do que rememorar um passado espelhado no drama do holocausto judaico ocidental, sobretudo no caso brasileiro, nunca refletimos de modo geracional os impactos da escravidão em nossa (de) formação enquanto categoria societária; ou seja, de algum modo às inibimos a partir de uma cidadania lúdica, despossuída de uma análise geracional e por ausência de políticas públicas que entendessem o psiquismo destes seres animalizados e derivados numa dimensão coisificada e bestializada. Por conta disso, é relevante evidenciar o signo permanente da escravidão por ter produzido um Estado que nasce sem sociedade, sem povo e sendo o playground de suas elites tacanhas, oportunistas e trapaceiras. Assim, cabe apontar que tais espectros da imagem do tronco se atualizaram na agenda política dos livros didáticos do país, no que tange nosso imaginário educacional enquanto registro tempo-espacial e corpóreo. Vale ressaltar que todo pensar é perigoso, no qual se faz preciso desparafusar narrativas totalitárias, como nos alerta a filósofa de tempos sombrios, Hannah Arendt. O que mais interessa nesta passagem é compreender como a memória traumática do corpo negro e seus efeitos foram traduzidos e transmitidos por uma existência perigosa e interditada. O corpo é texto, camadas de tempo-espaço, tecido descritivo e afetivo de formas subjetivas da violência. Por esta razão, indo na via desta perspectiva, é necessário examinar a natureza do trauma do tronco como regimento de violência na ação da existência de não sujeitos, que foram coisificados por somas de opressão. Caso pareça evidente, o trauma do tronco no Brasil é e foi um mecanismo psíquico da violência do Estado brasileiro e inibiu qualquer possibilidade de existência e de ações pela liberdade do povo preto. Com isto, o exibicionismo por meio do uso da violência pública, tornou-se espetáculo pedagógico do horror dos corpos pretos açoitados no pau de arara, configurando um currículo pedagógico abusivo do uso da violência enquanto ditame simbólico do poder branco sobre esses corpos interditados.

Assim, esse corpo negro assumiu caráter de somas de opressão, interditando medidas de humanização diante da condição de coisa/mercadoria e do estado animalesco da população negra na sociedade. Essa dimensão simbólica foi preservada pela classe média escravocrata, que se tornou guardiã do espírito escravocrata do capitalismo colonial-moderno-racional e racializado.

Nos dias contemporâneos, entende-se o trauma do tronco como condição psicológica que nega qualquer possibilidade corpórea e libertária do corpo negro enquanto produtor de espaço, espacialidade e memória. Antigamente, porém, o trauma referiu-se à ferida infligida ao corpo negro interditado de existência e deslocado pelo uso da força e atributo animal docilizado. O trauma se faz a partir de mecanismos do uso da violência no território educacional do corpo animalizado ao longo de séculos.  A palavra ‘trauma’ é relacionada ao verbo grego τιτρώσκω (titrṓskō), ferir. O trauma — um acontecimento chocante que assola a consciência, impedindo a capacidade de processar e assimilar a experiência — permanece não resolvido no estado de coisas e coisificado. Acontecimentos traumáticos, segundo Herman (1992, p. 44), “enfrentam os seres humanos com a extremidade de indefesa e terror”, conduzindo a uma fragmentação na percepção do self, da realidade, das emoções e das memórias. Para Herman (1992, p. 34), este tipo de fragmentação “rasga um complexo sistema de auto-proteção que normalmente funciona de maneira integrada”. A teórica do trauma Cathy Caruth (1996, p. 4) explica que um acontecimento traumático pode causar uma ruptura na “experiência de tempo, self e mundo” da vítima. Para ela, o primeiro sintoma de trauma é o atraso cognitivo como efeito da produção espacial-temporal e corpórea:

A memória traumática da escravidão no corpo em curso, na sua aparência atrasada, não pode ser relacionada unicamente àquilo que é conhecido, mas também àquilo que permanece não conhecido nas nossas ações e na nossa linguagem corpórea e social, ou seja, interditados de existência e limitados ao sistema de coisas e objetos.

Portanto, é importante destacar que o trauma do tronco, por causa da latência inerente na sua estrutura, aparece somente em outro lugar, em outro momento. Ele é a repetição do uso totalizado da violência atualizadas no modelo educativo de sociedades hierarquizadas pelo uso domestico do corpo.  Frequentemente, a memória traumática tem sua origem e permanece inscrita no corpo; corpo este apresentado como um arquivo e testemunha ativa, prova única e obstinada dos horrores do passado reforçados pelo espetáculo da violência pública. O corpo é figurado como um lugar pós-traumático, animalizado e com somas de opressão. O corpo, numa cultura pós-escravista, é sempre marcado pela violência e pelo pânico coletivo. A experiência traumática pode ser armazenada no corpo sem mediação ou consciência e volta como flashbacks ou pela compulsão de repetir flashbacks que reivindicam a experiência não-reivindicada do passado. Isto explica o valor supremo do corpo como um espaço desmemoriado, tanto como fonte quanto como lugar desta identidade pós-traumática. A alusão da imagem do trauma do tronco é sempre o efeito de uma história, mesmo que esta história não seja acessível à memória de um modo simples e direto, mas somente por meio do trabalho pela herança escravocrata (punição pública e a domesticação dos limites do uso da liberdade). O trauma do tronco tem como mito de fundação uma busca circular e retrospectiva pelo passado (impulso de repetição), “a consciência” e redenção da culpa pelo esforço animal do corpo no exercício de lapidação da virtude. O corpo negro só poderia alcançar vias da virtude intelectual e platônica a partir do condicionamento físico e brutal para se tornar domesticado e dócil. Esta dimensão corporal e dócil gera atribuições comerciais diante da estrutura de valor justificada pelos interesses de consumo das elites em diversas escalas de ação da existência:

O trauma cultural, segundo Jeffrey Alexander (2011), é provocado quando os membros de uma comunidade sentem que foram submetidos a um evento terrível, que deixa traços indeléveis em sua consciência coletiva, marcando às suas memórias para sempre, transformando a sua identidade cultural de forma fundamental e irrevogável. Para esse autor, o trauma cultural é um conceito científico, que pode ser verificado empiricamente, e que sugere novos relacionamentos significativos e as relações causais entre eventos, estruturas, percepções e ações anteriormente não relacionadas.

A percepção do sofrimento provocada por traumas culturais é comum a vários grupos sociais, em diversos contextos e sociedades, e, às vezes, até mesmo em civilizações completas, que não apenas identificam cognitivamente a existência e a fonte desses sofrimentos humanos, mas também assumem uma responsabilidade moral importante sobre ele:

Na medida em que identificam a causa do trauma e, por conseguinte, assumem a responsabilidade moral, os membros da comunidade definem as suas relações de apoio de modo a que, em princípio, os permitem partilhar os sofrimentos dos outros. O sofrimento do outro é nosso próprio sofrimento? Pensando que, de fato, poderia ser, sociedades expandem o círculo do que eles querem dizer com “Nós”. No mesmo sentido, os grupos sociais podem recusar, e muitas vezes eles fazem, para reconhecer a existência do trauma dos outros e porque esta recusa, os outros não podem obter uma posição moral. Ao negar a realidade do sofrimento dos outros, não só dissolver sua própria responsabilidade em relação a esse sofrimento, mas muitas vezes imputada a responsabilidade pelo seu próprio sofrimento aos outros. (ALEXANDER, 2001, p. 126)

Diante deste cenário do pós-abolição em curso no Brasil, tomamos como acontecimento traumático a escravidão enquanto estrutura geracional e condicionadora da falta de existência pelo racismo-total, assim como no caso dos Estados Unidos, como demonstra Ron Eyermann no livro Trauma Cultural: Escravidão e a Formação da identidade Afro-americana. Para Eyermann, a escravidão não deve ser encarada como uma instituição ou como experiência pessoal, mas como memória coletiva: uma lembrança penetrante encravada no sentimento que um povo tem de si.

No caso brasileiro, é de conhecimento geral que a escravidão, e posteriormente a abolição em curso, com o surgimento de novas relações sociais e de trabalho, os negros foram submetidos a sofrimentos constantes devido ao processo de adaptação do ex-cativo negro e mulato às novas circunstâncias para as quais foram empurrados e excluídos diante da forma de trabalho agora contemplados por direitos e cidadania. Entretanto, ao invés de destacar os aspectos identitários, culturais e sociais desencadeados pelo trauma do tronco, o pós-abolição em curso desencadeou ao longo do tempo-espaço aspectos psicológicos provocados ao corpo e à mente desses homens e mulheres descendentes de escravizados, que sofrem até hoje com as consequências da desigualdade racial e da segregação racial e espacial do racismo-total enquanto forma condicional e de interdição da existência do extermínio da alteridade.

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¹Espaçólogo. Doutor pelo IPPUR/UFRJ. Pós-doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).  E-mail: wartelopes@yahoo.com.br

²Graduando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). E-mail: gabrielfigueiredo.l@hotmail.com