Política Pública e Território: Onze estudos Latino-Americanos
Boletim nº 17 – 23 de abril de 2020
Por Fania Fridman¹
Esta coletânea reúne trabalhos de acadêmicos e especialistas componentes do Grupo de Trabalho “Políticas públicas y territorios” do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO). Apresentam-se aqui os resultados de nove pesquisas acerca de experiências de políticas públicas em distintos recortes temporais e seus impactos territoriais e duas contribuições teóricas. Investigar e refletir em torno das políticas públicas implica em aproximar-se do “Estado em ação” ou dos modos que as ações dos governos foram e são levadas a cabo. Significa igualmente considerar que as esferas do Estado (municipal, metropolitano, estadual/provincial, nacional/federal) encontram-se em constante mutação. Neste sentido, historicizar as políticas públicas adquire relevância porque permite estabelecer suas continuidades e descontinuidades como também revelar os projetos políticos que as conceberam. As políticas (policies) — instrumentos de governo que classificam os indivíduos e as populações coletivizando modos de ação e formas de expressão — podem resultar na via de acesso a estudos comparativos entre os diversos Estados latino-americanos. A perspectiva de organização deste livro surgiu também a partir das mudanças de paradigmas nas Ciências Sociais que convidam à busca de nexos e vínculos para compreender o urbano e o regional na trama das relações sociais e territoriais.
Originadas de diferentes áreas e campos disciplinares, as balizas analíticas e os conceitos envolvidos neste livro enquadram múltiplas entradas. Partimos da perspectiva da política pública (nos séculos XX e XXI sob a forma de planejamento urbano e regional ou planificação) como estratégia de supremacia e de submissão, vislumbrando a configuração de redes urbanas — compostas por povoados, vilas ou cidades — e de regionalizações como formas de expropriação e como bases do exercício da ordem, da arrecadação tributária e da “civilidade”. São, portanto, “instituições” de controle dos recursos territoriais e dos sujeitos do espaço. O território torna-se o conceito operativo referido às diretrizes de planejamento que surgem desde os contextos locais-espaciais como os de desenvolvimento endógeno. Na epistemologia latino-americana o território aglutina as noções de espaço, de comando e de poder, permitindo assim entender como os diversos atores (multiescalares) entram em colaboração e em disputas por reivindicações sobre o espaço ocasionando uma constante reconfiguração do mesmo.
Desta maneira, as políticas públicas aplicadas nos territórios da América Latina há mais de cinco séculos também podem contribuir para o debate no marco das teorias de governança e de planejamento territorial. Por outro lado, as políticas públicas em sentido amplo devem levar em conta os movimentos sociais em suas múltiplas formas de organização e articulação a fim de estimularem efetivas bases de participação popular, cujos exemplos o contexto latino-americano é rico, e servindo, muitas vezes, de referência para o debate político em nível global. O reconhecimento da mobilização política “de baixo para cima” implica rever pressupostos teóricos na medida em que os conceitos não devem ser vistos apenas como categorias analíticas, mas também como categorias da prática, ou seja, incorporados à própria ação de luta.
O livro encontra-se dividido em três partes definidas a partir dos eixos analíticos constitutivos do Grupo de Trabalho. Na Parte 1 estão presentes a memória de intervenções dos períodos colonial e imperial; os planos territoriais republicanos; a historicidade dos espaços urbano e rural; os códigos normativos e os vestígios morfológicos nos territórios através dos artigos de María Rosa Carbonari; Valter Luiz de Macedo, Luciana Alem Gennari e de Cleandro Krause.
O texto “La urbanidad en la frontera: Una villa en los bordes (temporal y espacial) del imperio colonial” analisa a conformação de assentamentos em espaços fronteiriços durante o século XVIII através do exemplo da Villa de la Concepción del Río Cuarto. Tal projeto de urbanização, cancelado no período revolucionário da independência, foi parte da política do império espanhol na América cujo objetivo era assegurar maior controle sobre a população e o território.
“Uma geografia histórica urbano-regional da província fluminense” discute a relação entre cidade e região no processo de domínio político-administrativo da província do Rio de Janeiro. O projeto nacional pretendido para o país independente era aquele que, na base territorial, tomava o espaço citadino como mecanismo articulador de esferas regionais, tornando o fato urbano-regional um instrumento efetivo de controle.
O artigo “O controle da cidade? Notas sobre a gênese da gestão urbana das construções particulares na cidade do Rio de Janeiro, 1828- 1930” demonstra que a orientação das obras públicas e particulares é de responsabilidade do município carioca desde 1828. Nos períodos imperial e republicano, mudanças na maneira de se produzir o espaço urbano tornaram-se coincidentes com os novos arranjos sociais, aos interesses do capital internacional e ao “liberalismo excessivo”.
“Os melhoramentos urbanos e os dois urbanismos no extremo sul do Brasil (1918-1937)”, realizando um inventário das ocorrências da palavra urbanismo no jornal A Federação, órgão representativo do Partido Republicano Rio-Grandense no período de 1918 a 1937, verifica dois sentidos: sua associação a ideologias anti-urbanas e, por outro, a constituição de um novo campo profissional na administração pública de elaboração de projetos de remodelação das cidades.
Na Parte 2 são examinados instrumentos e marcos legais; o processo de formulação dos planos no âmbito da política metropolitana; o planejamento regional e os sistemas nacionais de planejamento nos textos de Fania Fridman; Camila Lima e Silva de Carvalho; Luisa Iñíguez Rojas; Sonia Vidal-Koppmann e de Joaquín Perren, em coautoria com Laura Lamfre e Germán Pérez.
Em “Notas sobre o planejamento no período João Goulart” encontra-se um conjunto de observações acerca do planejamento durante o curto termo da presidência de João Goulart. As medidas de caráter desenvolvimentista são analisadas no contexto de radicalização das forças políticas e dos movimentos sociais no país; da situação internacional; e do fortalecimento das concepções de planejamento, de democracia e de justiça social das esquerdas brasileiras.
O artigo “As favelas brasileiras no contexto Lula (2003-2010): o que mudou na primeira década do século XXI?” ao reconhecer uma lacuna sobre as mudanças ocorridas nas áreas mais pobres das cidades, compara, utilizando dados censitários, as condições socioeconômicas e de infraestrutura de favelas localizadas em cinco regiões metropolitanas brasileiras. Revela ainda a melhoria que as políticas públicas implementadas pelo governo federal ocasionaram.
O trabalho “Territorios y políticas: ¿Qué permanece y qué muda en Cuba?” trata das dificuldades do Estado na manutenção das políticas de redução das desigualdades sociais a partir da crise econômica e da desintegração do campo socialista. Analisa em três escalas as novas reconfigurações territoriais que resultaram das orientações de ajuste das políticas públicas para a recuperação econômica e bem estar social.
“Centralidades y movilidad: Un desafío para el ordenamiento territorial de la Región Metropolitana de Buenos Aires” evidencia um novo paradigma caracterizado pela fragmentação sócio-territorial: o desenvolvimento urbano desigual das periferias e a aparição de centralidades. A metropolização, fruto do capitalismo global e vinculada à atuação do mercado imobiliário e à constituição de eixos de transporte interurbanos, revela a ineficácia do ordenamento executado.
O texto “Diferenciación socio-territorial en la conurbación de Neuquén hacia comienzos del siglo XXI. Un aporte para el estudio de áreas metropolitanas de rango medio” aborda a segregação social e espacial fruto da fusão de áreas urbanas de porte médio. Desde suas origens vinculadas à atividade fruticultora até o presente associado à exploração de recursos energéticos, a diferenciação socioespacial é analisada através de informações sociodemográficas fornecidas pelo Censo de população e moradia.
Fechando o livro, da Parte 3 constam temáticas como reavaliação da polaridade urbano-rural; mutações na centralidade urbana; desigualdade e movimentos sociais em diferentes escalas nos aportes teóricos de Sandra Lencioni e de Rogério Haesbaert.
O artigo “Totalidade e tríades: Compreendendo o pensamento de Lefebvre” ao destacar o método dialético e a ênfase que este autor dá à noção de totalidade, enfatiza seu pensamento triádico inserido na tradição fundada em Joaquim de Fiore, um filósofo do século XII. Discute as tríades “forma, função e estrutura” e “homogêneo, fragmentado e hierarquizado”, consideradas particularmente potentes e instrumentais para a análise do espaço.
“De categoria de análise a categoria da prática: A multiplicidade do território numa perspectiva latino-americana” questiona o conceito “território” a partir de suas múltiplas manifestações tanto como categoria de análise, intelectual, quanto de categoria da prática e normativa. Através da ligação do território como ferramenta de luta dos movimentos sociais latino-americanos, são apreciados autores como Milton Santos e Carlos Walter Porto-Gonçalves.
Nos tempos atuais em que a alteridade nos marcos da governança se precipita sobre processos democráticos, torna-se necessário revisitar o tema das políticas públicas. As contribuições do Grupo de Trabalho nestes onze estudos latino-americanos revelam os desafios teóricos e da prática do objeto.
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¹Professora Titular do IPPUR/UFRJ.