Trajetórias Profissionais Multidisciplinares no Campo de Públicas: Entrevista com Renata Bichir
Boletim nº 78, 03 de maio de 2024
Maria Aparecida (IPPUR): Renata, faço parte do corpo docente do curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (Gpdes) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e conversar com você é muito interessante não apenas para mim, que sou sua colega, mas também para xs discentes do curso. Acredito que o resultado desta entrevista pode ajudá-lxs a compreender o que significa a gestão pública e o que estão estudando e pesquisando, para se tornarem os profissionais formados no Campo de Públicas.
Fui sua colega em algumas aulas e cruzamos algumas vezes em nossa vida profissional. Certa vez você me disse algo que chamou minha atenção. Nessa conversa, no passado, você disse que estava estudando políticas públicas, no campo da Ciência Política, mas que você poderia estar em outras áreas das Ciências Sociais, dada a diversidade de tipos de métodos que você utilizava. Naquele momento, perguntei se você estava usando o R, e você me disse que utilizava estatística descritiva e inferencial, mas sem usar o R, e que você poderia estar em qualquer área das Ciências Sociais. Dito isso, queria conversar com você como alguém que está na área de Ciência Política, nas suas intersecções com o Campo de Públicas, e que tem sua experiência no tema das políticas públicas. A partir dessas observações, passo a seguir o roteiro enviado a você.
Maria Aparecida (IPPUR): Você poderia falar um pouco de sua trajetória como professora, pesquisadora e profissional atuante no campo das políticas públicas?
Renata Bichir: Penso que é importante destacar que minha experiência com políticas públicas começa na pesquisa de iniciação científica. O primeiro ponto que considero importante diz respeito à formação metodológica: como a gente pensa a relação entre pergunta de pesquisa, lacunas na literatura, uma boa revisão de literatura e um desenho de pesquisa que fique de pé. Isso foi algo que eu aprendi na iniciação científica, fazendo pesquisa com o Eduardo Marques, relacionada à Secretaria Municipal de Vias Públicas e sobre obras viárias. Não foi algo que eu aprendi no curso de metodologia. Então, mais do que pensar qual é o método antes da pergunta, pensar quais são as minhas inquietações, qual o dado disponível, quais dados eu preciso coletar. E o que significa pensar as políticas públicas na Ciência Política? Penso que o que me agrega, analiticamente, é pensar a relação entre politics e policy, ou seja, como a gente pensa as dinâmicas políticas que atravessam as políticas públicas. Então, para além de manuais muito simplistas da administração pública, que pararam no ciclo de políticas públicas, como se cada gestão começasse com uma folha em branco e agora eu pensasse qual o problema, quais são as prioridades, como se elas estivessem ordenadas desde as eleições; e daí a gente elege prioridades, aloca o orçamento e os recursos humanos. Penso que a ciência política ajuda a desmistificar essa linearidade e essa visão, muitas vezes ingênua, de que a gente sempre começa tudo do zero. Há muitas sobreposições, continuidades e descontinuidades, e há disputas que não se encerram no período eleitoral. Então, toda a discussão sobre coalizões de apoio, coalizões de defesa, quais são os grupos contrários ou favoráveis, aquela ideia basilar: quem vê o que, por que, que diferença faz? A gente, com essas perguntas, está definindo atores ganhadores e perdedores, seja em políticas redistributivas, seja em políticas regulatórias. Fui aprendendo a fazer tais perguntas nas disciplinas e na iniciação científica. Então, iniciei pesquisando políticas viárias, fiz meu mestrado para entender a relação entre espaço e política pública, mergulhei no tema da segregação residencial e como ela afeta as políticas públicas, então a relação entre onde as pessoas moram no território e a geração de barreiras e facilita acessos. Essa pesquisa foi feita com os dados da minha iniciação científica, mas já com outro olhar, na fronteira entre sociologia política e estudos urbanos; nunca me encaixei muito bem dentro da Ciência Política, dos estudos clássicos, como relação entre executivo e legislativo e sistema partidário. Depois, no doutorado, fiz uma migração para as políticas sociais. Sempre tive como grande tema as desigualdades: primeiro pensei nas desigualdades nas cidades e nas políticas do urbano; no doutorado, pensei as desigualdades nas políticas sociais. Penso que a possibilidade de estudar políticas variadas, com desenhos variados e que afetam de maneiras distintas grupos diferentes da população ajuda a gente a ganhar musculatura analítica. Penso que este é um grande desafio em política pública: que explicação é simplesmente uma boa narrativa para um caso e que explicação é, de fato, uma explicação com capacidade de generalização analítica, ainda que não estatística.
Maria Aparecida (IPPUR): Você mencionou um ponto que eu não esperava e que é de muito interesse para o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), onde eu dou aula: você começou com estudos a partir do urbano e depois foi para as políticas sociais. Como a questão do território foi trazida para tuas pesquisas e reflexões posteriores? Não a vejo como central no seu trabalho, mas talvez a dimensão do território tenha dado uma riqueza para o seu trabalho, cuja causalidade eu não conseguia enxergar, analisando sua trajetória.
Renata Bichir: Interessante sua pergunta. Fui treinada nas políticas públicas, começando pelas políticas urbanas e pensando que o espaço¹ é uma das dimensões que afeta a pobreza, a desigualdade e o acesso às políticas públicas. Essa é uma dimensão que continua na minha cabeça. Então, eu posso pensar, por exemplo, nos equipamentos públicos das políticas sociais, qual a territorialidade desses equipamentos. Onde os CRAS e os CREAS, equipamentos da Assistência Social, estão localizados no território. Posso pensar isso numa outra escala. Quando eu me tornei gestora no MDS (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome), tive que pensar na escala Brasil e ali eu estudo implementação de políticas públicas. Não dá para apenas pensar que, na implementação, cada caso é um caso. Então, o que significa dizer que contexto importa? Eu preciso lidar com os dados do Censo e de outras bases para pensar que tipos de território e de implementação: faz diferença um município maior ou menor? Faz diferença implementar uma política em Salvador ou no Vale do Jequitinhonha? Quais as informações que eu tenho sobre o PIB per capita naquele território e este é urbano ou rural? Então, eu fui aprendendo a pensar também a pensar em termos de tipos de território para pensar em escala nacional e mesmo na minha pesquisa, hoje, sobre assistência social, este aspecto é levado em consideração. Com relação a perfis de município, capacidade de arrecadação e capacidades estatais para formular e implementar políticas públicas. Essa dimensão da territorialidade e como o espaço organiza espaços e processos certamente continuou comigo de alguma maneira.
Maria Aparecida (IPPUR): Nessa trajetória, você poderia falar um pouco mais detalhadamente sobre quais escolhas e decisões você considera, hoje, terem sido as mais importantes?
Renata Bichir: Penso que a primeira decisão importante foi mergulhar cedo no mundo da pesquisa. Então, tenho uma graduação em Ciências Sociais, que pode ser um curso bem abstrato, baseado em exegese – leitura e interpretação de textos – e no início do curso de graduação já dá um pouco de aflição, porque você faz um curso desse, que ensina chaves de leitura, mas não necessariamente te ensina a pensar caminhos pragmáticos de resolução de problemas. Fazer iniciação científica, para mim, foi uma decisão divisora de águas, principalmente pela formação metodológica, mas também pela possibilidade de adensar uma pergunta de pesquisa como fio da meada que conduzisse as leituras, diferentemente de um panorama formativo maior, que é o perfil das ciências sociais. Tem-se a divisão em três áreas: sociologia, ciência política e antropologia, mas é tudo muito disperso, e a iniciação me ajudou a treinar o olhar para pensar o que é uma boa pergunta de pesquisa, como a gente desenha uma pesquisa, e nunca mais saí. Tanto que na graduação achei que um dia eu voltaria a estudar possibilidades de individuação da mulher na contemporaneidade, ia voltar para o Foucault, e aí, por efeitos de dependência da trajetória, acabei entrando cada vez mais nas políticas públicas e esse foi um grande marcador. Também diria que a formação metodológica ampla – qualitativa e quantitativa; aprender a fazer pesquisa de n pequeno e n grande: que desenho de pesquisa faz mais sentido, em cada momento. Isso lá na frente foi definidor para minha vaga no MDS. Não fui parar no MDS porque eu fiz um doutorado sobre Bolsa Família. Fui parar no MDS porque eu tinha um bom treinamento metodológico, que de alguma maneira foi percebido pela minha futura chefe. Então, acho que esses foram os momentos mais marcantes: a iniciação científica e a formação em metodologia.
Maria Aparecida (IPPUR): Em sua produção acadêmica, tanto por meio de publicações, quanto de orientações, um leque amplo de políticas é abordado. Contudo, é possível identificar dois eixos principais: a de políticas públicas multinível e a de políticas sociais de assistência. Você poderia falar um pouco se há uma diferença na perspectiva de abordagem em cada um desses eixos? Você já acenou, nas respostas anteriores, para o aspecto metodológico. Seria interessante você colocar a perspectiva do olhar de alguém que é pesquisadora e, de alguma forma, quer transformar o cenário das políticas públicas.
Renata Bichir: Vou tentar te responder cronologicamente, inclusive. Como eu chego na agenda multinível? Chego nessa agenda pela discussão da coordenação federativa dos programas de transferência de renda. Então, no meu doutorado, fui entender a coordenação federativa do Bolsa Família. E a grande questão era entender como as decisões tomadas em Brasília se chegavam a espaços distintos como São Paulo e Salvador. Tinha uma questão metropolitana: como se lida com a grande escala, com o desafio de pensar a mobilidade e a pobreza em grande escala, e isso vem lá dos estudos urbanos e como esse jogo entre União, estados e municípios se desenrola?; o que acontece na ponta? Essa é uma agenda que vem dos estudos de Marta Arretche, Celina Souza, Eduardo Marques e vários pensadores importantes no Brasil, em várias instituições, que estudam essa relação entre vários efeitos centrífugos, que conseguem ou não gerar coordenação federativa. Só que eu vou percebendo ao longo do tempo que (i) não dá para estudar apenas transferência de renda, porque há uma relação importante entre transferência e assistência social; (ii) não dá para desconsiderar que a implementação de uma política pública também é um processo pleno de decisões; (iii) a produção das políticas públicas vai além do “Estado em ação”, ou seja, envolve a interação entre atores estatais e não estatais. Nesse processo de reflexão analítica depois do doutorado, desloco minha agenda na direção do estudo dos serviços socioassistenciais, que são relativamente menos estudados do que programas como o Bolsa Família, e começo a adotar as lentes da governança multinível. Este referencial busca justamente integrar o eixo vertical, das relações entre múltiplos níveis de autoridade (no caso da federação brasileira, as relações entre União, estados e municípios na produção de políticas públicas), e o eixo horizontal das relações entre diversos tipos de atores, em arenas formais e informais. Penso que o avanço das análises de políticas públicas, com seus mais diversos recortes analíticos e metodológicos, podem ajudar a fertilizar, mesmo que indiretamente, o terreno da produção de políticas públicas, ao indicar fatores determinantes, potenciais causas de fenômenos relevantes, como a desigualdade, bem como indicar, por exemplo, quais arranjos de implementação podem ser mais vantajosos.
Maria Aparecida (IPPUR): Você atua em uma graduação e dois programas de pós-graduação. Você poderia nos contar um pouco sobre sua atuação em cada um desses programas e apontar quais os desafios da docência em cada um deles?
Renata Bichir: No programa de graduação em Gestão de Políticas Públicas na USP Leste eu atuo desde 2013, ministrando disciplinas formativas que são obrigatórias, em especial sobre modelos de análise de políticas públicas e sobre avaliação de políticas públicas. Neste caso, o principal desafio é traduzir conceitos que por vezes são abstratos para a realidade de futuros gestores públicos, destacando a importância de considerar que a produção de políticas públicas é um processo técnico-político, e não puramente “gerencial” – ou seja, não basta pensar, ingenuamente, que é possível seguir o ciclo de políticas públicas como se as decisões fossem tomadas de modo claramente delimitado, em sequência, e de modo isolado das dinâmicas políticas. Na pós-graduação o desafio é outro, formar pesquisadores. No PPG-GPP atuo desde 2014, e estou como coordenadora do programa desde 2020; trata-se de um programa novo, criado em 2012, e com um perfil de alunos que atuam diretamente na administração pública, ou em organismos do terceiro setor, e que desenham pesquisas visando, muitas vezes, solucionar diferentes tipos de problemas. Por outro lado, no Depto de Ciência Política, onde atuo na pós-graduação desde 2018, encontro um outro cenário: trata-se de um programa tradicional, com mais de 50 anos de existência, e com nota máxima na Capes. O perfil dos alunos é bastante diferente, muito mais voltado à pesquisa acadêmica, a responder “puzzles” colocados pelo debate teórico de ponta, mesmo quando o substrato empírico das pesquisas são as políticas públicas. De todo modo, transitar entre esses ambientes é sempre enriquecedor do ponto de vista da docência e da gestão, mesmo com os eventuais percalços.
Maria Aparecida (IPPUR): Agora, vamos falar um pouco sobre como você vê o pertencimento de sua pesquisa aos campos de conhecimento que se constituem no Brasil. O estudo sobre as políticas públicas está na intersecção entre a Ciência Política e o Campo de Públicas, que vem se constituindo recentemente, como campo inter e multidisciplinar. Você tem participado tanto de encontros acadêmicos da Ciência Política como do Campo de Públicas. Você vê alguma diferenciação na sua contribuição para os dois campos?
Renata Bichir: Diria que, de fato, o campo de análise de políticas públicas é multidisciplinar, como bem discutido no livro organizado por Eduardo Marques e Carlos Aurélio P. de Faria – A política pública como campo multidisciplinar2. Mas, na Ciência Política brasileira, por muito tempo, a análise de políticas públicas foi um campo considerado “menor”, sendo as políticas públicas abordadas como subproduto quase natural das dinâmicas partidárias e das suas disputas nas relações entre Executivo e Legislativo. Desde a redemocratização, este é um campo de análise que cresce imensamente, justamente tentando entender as dinâmicas da produção das políticas para além de “outputs” do sistema político, com a consideração da reforma do Estado, o papel das relações federativas, das burocracias, de atores estatais e não estatais. Nos encontros da área de ciência política, como a ABCP e mesmo na Anpocs, no GT de Políticas Públicas, esta é a área temática que mais cresce em termos de submissão de trabalhos. Se, nos anos 90, este era um campo ainda fragmentado e marcado pelo predomínio de estudos de caso, cada vez mais refinam-se as lentes analíticas, avançam as pesquisas comparativas (ainda que os estudos de caso nunca saiam da moda no campo…) em busca da compreensão do “policy process“, para além da visão simplista do ciclo de políticas públicas. Este crescimento do campo incorpora também muitos estudos advindos da administração pública e da sociologia, e este movimento está relacionado à consolidação do “campo de públicas”, isto é, a multiplicação de cursos de graduação e pós-graduação voltados para a análise e gestão de políticas públicas, em perspectivas disciplinares múltiplas que transitam entre a formação para intervenção – no setor público estatal ou no terceiro setor – e a formação mais analítica.
Maria Aparecida (IPPUR): Em relação ao estudo das políticas públicas, o que você considera que diferencia o Campo de Públicas em relação aos campos já constituídos da Administração Pública e da Ciência Política?
Renata Bichir: O olhar para as políticas públicas como um objeto dotado de sua própria complexidade, seja em modelos analíticos que tomam a explicação da política como objeto de análise, seja em explicações sobre o efeito independente das políticas públicas sobre outros fenômenos sociais. Tomar as políticas públicas como objeto privilegiado permite refinar metodologias e esquemas explicativos que derivam das ciências sociais e das ciências sociais aplicadas, como também há o potencial terreno de “fertilização cruzada” entre análise e avaliação de políticas. O que eu quero dizer com isso: mesmo estudos não avaliativos sobre políticas públicas, desde que baseados em claros referenciais teóricos e em perguntas de pesquisa clara, podem ser tornar repositórios de aprendizado para policy makers. Se uma parte dos analistas lamenta o “magnetismo” exercido pelos processos decisórios e pela agenda governamental ajudando a pautar a agenda de pesquisa, o lado positivo dessas práticas é conseguir produzir reflexões potencialmente críticas sobre os processos de produção de políticas, e, eventualmente, a definir potenciais soluções que derivam de estudos não aplicados.
Maria Aparecida (IPPUR): No estudo das políticas públicas, quais habilidades você identificaria como imprescindíveis para a pessoa que vai se dedicar a esse tema? Quais as habilidades desejáveis e quais as que podem se tornar um diferencial nos próximos anos?
Renata Bichir: Difícil responder a essa pergunta, uma vez que há múltiplas possibilidades de inserção profissional no setor público, no terceiro setor e mesmo no setor privado. Mas, a partir da minha própria experiência profissional, diria que é fundamental ter curiosidade, pensar comparativamente – para além do fascínio com processos, decisões ou políticas específicas – e investir numa boa formação metodológica. O “Fla X Flu” entre métodos qualitativos e quantitativos está (ou deveria estar) superado: precisamos de bons estudos de caso teoricamente orientados e metodologicamente sólidos, baseados em uma lógica indutiva, mas também precisamos testar hipóteses em estudos de N grande, que permitam encontrar regularidades e padrões, ainda que não uma teoria geral. Avançar no mapeamento e na compreensão da “ecologia de atores” envolvidos nos complexos padrões de produção de políticas públicas é outro bom desafio: para além de estudos impregnados de normatividade genérica, de “ismos”, entender processos interativos, suas disputas e resultados – no final, a velha máxima de Laswell – compreender políticas públicas tem a ver com entender quem ganha o quê, por quê e que diferença faz – continua sendo muito atual.
¹ Nesta entrevista, território e espaço foram utilizados como sinônimos.
² Livro disponível em: https://www.researchgate.net/publication/303807833_A_Politica_Publica_como_campo_multidisciplinar