Sobre Banco Imobiliário e afins: um manifesto infantil, assim como deve ser

Boletim nº 36 – 30 de setembro de 2020

 

Por Jéssica Rossone¹

 

Neste ano tão conturbado, muitas famílias brasileiras – entendidas aqui no sentido ampliado do termo – tem se reunido por mais tempo do que o comum. Com isso, uma prática que já era frequente no convívio de algumas delas se tornou ainda mais costumeira. Trata-se da jogatina. A pluralidade de jogos é proporcional à criatividade: jogam desde os tradicionais jogos de cartas aos mais variados jogos de adivinhação, passando por mímica, “Qual é a música” e o famoso “Desafio da farinha”. Dentre todos os jogos, me proponho a tratar daqueles de tabuleiro, mais especificamente, do Banco Imobiliário e jogos afins.

Poderia ser complexo e incerto escrever sobre jogos de tabuleiro que eu nunca joguei. No entanto, Banco Imobiliário e jogos afins ilustram de tal modo as condições materiais da existência humana na atualidade, que até mesmo alguém que ignora tais jogos poderia fazer a analogia com os “jogos reais”, caso ficasse a par de suas regras e objetivos gerais. Por um lado, estes jogos parecem inocentes e até mesmo divertidos, assim como nossa própria existência. Mas por outro, estes mesmos jogos estão imbuídos em um discurso perverso, que pode ser divertidamente e disfarçadamente inculcado em nossas mentes.

Nessa perspectiva, jogos como Banco Imobiliário e afins podem ser uma forma lúdica de transmissão ideológica, voltada àqueles que estão desiludidos com a razão do capitalismo contemporâneo nos moldes de Dardot e Laval (2016), ou ainda não sabem muito bem qual e como é esta tal razão, ou ainda resistem a ela e precisam de motivos para acreditar e confiar, naturalizando-a, por fim. Dado o seu caráter pedagógico, este tipo de brincadeira pode amparar ideologias historicamente orgânicas, pensadas por Gramsci (1978, p. 66) como “ideologias necessárias a uma certa estrutura, que possuem uma validade ‘psicológica’, organizam as massas humanas, formam o terreno que os homens se movem, adquirem consciência da sua posição e lutam”.

Para prosseguir com a crítica que se coloca sobre estes jogos, vejamos um pouco sobre eles.

 

Bancos Imobiliários e afins

O Banco Imobiliário é um tradicional jogo de tabuleiro, um dos mais populares desde o século passado. O brinquedo foi lançado nos Estados Unidos pela empresa Harsbro, em 1935, com o nome Monopoly, e recebeu o nome Banco Imobiliário quando foi lançada a sua primeira versão no Brasil, em 1944, pela empresa Estrela. Posteriormente, a própria Harsbro lançou a versão original no Brasil. A estimativa da Hasbro é que mais de 275 milhões de unidades do jogo já tenham sido vendidas em mais de 100 países mundo afora, sendo que pelo menos 30 milhões foram vendidas somente no Brasil [1]. Na atualidade, coexistem diversas versões. No Brasil, além da versão tradicional, são célebres as versões Banco Imobiliário Júnior e suas variadas edições, Super Banco Imobiliário, Banco Imobiliário Brasil, Banco Imobiliário Sustentável, Banco Imobiliário Luxo e Banco Imobiliário Mundo. Existem ainda versões digitais, e sobretudo online.

Monopoly surgiu como um desdobramento pontual do colapso da bolsa novaiorquina no final dos anos 1920. Em seu princípio, o brinquedo foi uma ideia apropriada e articulada por Charles Darrow, que perdera seu emprego justamente por causa da depressão. Darrow e sua família se encontravam em uma situação crítica e desfavorável na época [2]. Entretanto, em pouco tempo, Darrow se tornou milionário por conta do jogo. É pertinente notar que o sucesso de Banco Imobiliário se deu logo nos anos que compreendem a depressão, quando os trabalhadores estadunidenses ainda enfrentavam as mais variadas mazelas. Baseado no jogo The Landlord’s Game [O Jogo do Senhorio], brinquedo que se apresentava como uma crítica ferrenha ao capitalismo ao demonstrar que monopólios são fontes de desigualdades e pobreza, Monopoly inverte a crítica e instaura um jogo no qual qualquer pessoa pode tornar-se um “senhor”, um “magnata”, estimulando assim a lógica do capital. No contexto de crise no qual foi criado, certamente este jogo serviu como uma distração interessante, principalmente se observada a ascenção social real de Darrow.

De modo geral, Banco Imobiliário está baseado no princípio da propriedade privada e se aplica especialmente no seu viés fundiário e imobiliário, a partir do qual o jogador deve acumular a maior fortuna possível e levar seu(s) adversário(s) à falência. Entre algumas descrições nos sites de venda constam como objetivos “conseguir cuidar bem do seu dinheiro e dos investimentos e ser o último jogador a falir”.

Desde a sua criação, a lógica não mudou, mas as suas diferentes versões trazem particularidades que se adaptam a diferentes realidades [3]. A versão original do jogo no Brasil, por exemplo, apresenta um percurso no qual o jogador pode comprar propriedades em duas das cidades mais ricas – porém desiguais – do país, Rio de Janeiro e São Paulo. No tabuleiro estão célebres avenidas e bairros de elite, companhias de viação, navegação e aviação, que no geral são vistas simplesmente pelo seu valor de mercado. Há ainda as casas “prisão/detenção”, “imposto de renda” e sorte/revés. Este jogo é recomendado para crianças a partir dos 8 anos de idade, tanto na versão da Harsbro como na versão da Estrela. Já algumas versões do Banco Imobiliário Júnior, que apresentam uma dinâmica mais simples em relação à original, são indicados para crianças a partir de 5 e 6 anos.

Na versão Banco Imobiliário Brasil, o jogador pode acumular sua fortuna comprando pontos turísticos brasileiros, como o Cristo Redentor, o Pantanal, o Pão de Açúcar, o Pelourinho, o Patrimônio Histórico de Ouro Preto, entre outros. Esta é uma versão semelhante ao Banco Imobiliário Mundo, na qual o jogador compra os lugares que são os principais cartões postais do planeta, como a Torre Eiffel, a casa da Ópera de Sydney, ou o Big Ben, por exemplo. Nestas versões, observa-se que o aspecto da mercantilização estende-se aos patrimônios culturais e naturais, de modo que o jogador tende a vê-los apenas ou principalmente como pontos turísticos, através dos quais se pode extrair algum valor monetário, desconsiderando uma sorte de outros valores contidos e suscitados nestes lugares reais.

Já na versão sustentável do jogo, Banco Imobiliário Sustentável, além do tabuleiro ser todo feito com material reciclável, de cana de açúcar, as possibilidades de jogada possuem um caráter reformista diante do capitalismo. Nesta versão “ecologicamente correta”, as cartas de revés podem ser multas por poluição em excesso, enquanto as de sorte são bonificações por combate ao desmatamento. Estas últimas podem ainda redirecionar o jogador ao faturamento com turismo ecológico. É possível ainda comprar créditos de carbono e companhias de reciclagem, além da possibilidade de “construir reservas naturais”. Como seria mesmo construir uma reserva natural?

No Super Banco Imobiliário há um sistema de cartão de crédito e débito, com maquininha semelhante às que usamos na vida real, enquantos nas outras versões só existe dinheiro em espécie, em notas. Nesta versão, é possível comprar e vender hoteis, indústrias e concessionárias de serviços públicos. Por fim, no Banco Imobiliário Luxo, ao invés de casas e prédios, o jogador compra mansões e arranha-céus.

A Harsbro tem investido nos últimos anos em edições inspiradas em algumas tendências. Dentre elas, estão as edições inspiradas no mundo virtual, nas quais as peças clássicas são substituídas por hashtags e emojis. Há também as inspiradas em produções audiovisuais, como as edições Stranger Things, Frozen, Star Wars, Princesas da Disney, Game of Thrones e Marvel. A faixa etária indicada nestas versões varia, sendo algumas exclusivas para adultos, como a Game of Thrones. Em algumas delas nota-se que apesar do princípio de propriedade privada ser mantido, ele já não se aplica somente com o viés imobiliário, como por exemplo na edição Princesas da Disney. Nesta edição do jogo Monopoly, cada jogador é uma princesa, que além de poder construir reinos mágicos ao percorrer o tabuleiro e comprar propriedades, como a Escola Shan-Yu da Mulan e o Tapete Mágico da Jasmine, podem comprar também conhecimento, como as aulas de arco e flecha da Merida.

 

O ponto de vista de alguém que sempre esteve fora dos jogos

Além de conhecer os jogos, é útil observar como se encadeiam. Então vejamos brevemente como se joga, embora seja a partir do olhar de alguém que sempre esteve formalmente fora dos jogos. Ignoremos aqui os pensamentos que nos trazem à vida real. São apenas jogos, não é mesmo?

A lógica do Banco Imobiliário e das demais versões, que remetem à original, sempre me deixaram desconfiada e desconfortável. Nas reuniões de família ou de amigos, nas comemorações ou até mesmo em viagens, sempre tinha um sujeito que aparecia com aquelas caixas e com um sorriso interessado no rosto. Enquanto montavam os tabuleiros, eu sempre arrumava uma desculpa para não jogar – “estou cansada”, “estou ocupada”, ou “não sei jogar”. Com o tempo, eu descobri que esta última desculpa não funcionava muito bem, pois sempre tinha alguém muito solícito, disposto a ensinar como se joga. E então eu dizia resignada: “ok, então eu fico assistindo e na próxima eu jogo”. Nem preciso dizer que “a próxima” nunca existiu. O mais perto que eu cheguei de jogos que combinavam dinheiro e banco foi um tabuleiro que simulava uma feira de alimentos, que ganhamos em um bingo, e lembro que eu ficava indignada com o preço de algumas frutas.

Das impressões de criança até a atualidade, o cenário e os personagens foram se modificando, mas a cena sui generis se repete. Mudaram as músicas de fundo, as conversas entre uma jogada e outra, os petiscos… mas é impressionante como a própria lógica dos jogos condiciona o comportamento dos jogadores a nunca mudar. Por outro lado, observo que conforme as pessoas adquirem experiência, tanto no jogo quanto na vida, mais intensa e aprimorada tende a ser a brincadeira, não se limitando mais a impressões ingênuas sobre o funcionamento do mercado. De fato, montado o tabuleiro, o olhar do “peão” que vislumbra o poder – a fortuna, o território – se torna audacioso e extremamente competitivo, ainda que este poder esteja restrito a um mero tabuleiro. Ressalto que “peão” aqui é uma apenas uma referência às peças que simbolizam os sujeitos jogadores, que tem limite de quantidade variado dependendo de qual versão se joga. Na vida real, sim, poderia ser uma outra referência.

Um dos jogadores é então escolhido para ser o banqueiro, que vai ser responsável pelas transações entre jogadores e o banco. Geralmente, o escolhido é aquele que lida melhor com as contas, ou o mais experiente no jogo. É do banqueiro a função de distribuír o dinheiro aos “peões” antes do início do jogo. Nas instruções estão indicadas quais e quantas notas devem ser distribuídas, e ao que parece existe um consenso de que a distribuição deve ser igualitária. Nunca presenciei um jogo no qual os participantes começaram com quantias diferentes. Outro ponto a ressaltar é que apesar de sua função, o banqueiro também pode jogar, assim como os demais, porém não deve misturar o seu próprio dinheiro com aquele do banco. Este é um outro ponto que nos faz recordar como tais relações se dão na vida real.

Ainda que os peões comecem com quantias iguais de dinheiro, há uma jogada fundamental para que o quadro de concorrência seja instaurado: para iniciar o jogo, os participantes jogam os dados, e quem sai na frente é aquele que obtém – na sorte – o maior número nessa jogada. Desse modo, fica instituída a assim chamada acumulação primitiva da jogatina. Ora, se o jogador tirou um número maior nos dados, foi porque ele mereceu!

Noto que, iniciado o jogo, quem joga não compete apenas com os outros, mas compete igualmente consigo mesmo. Nesse perspectiva, o jogador quer vencer seus oponentes, levando-os à beira da falência, e ainda quer melhorar a sua performance no que se refere aos jogos anteriores, aperfeiçoando e complexificando as jogadas, visando acumular cada vez mais fortuna e procurando abreviar o tempo despendido até a jogada final, que o torna vencedor: o grande e único acumulador de fortunas e imóveis.

 

O que se apreende jogando Banco Imobiliário e afins

Nota-se que embora eu nunca tenha jogado Banco Imobiliário sempre fui uma observadora atenta dos jogos e de quem joga. Por isso, reconheço que é possível desenvolver capacidades de memória e raciocínio, tática, estratégia e matemática, através destes jogos. Um outro aspecto a ser evidenciado é a interação social que é incentivada – neste caso particularmente naqueles de tabuleiro material, pois sabe-se que existem também diversas versões digitais e online. Nesse sentido, apesar de muitos em frente as suas telas acreditarem ser satisfatória a sociabilidade suscitada nas redes virtuais, sabe-se que na atualidade estamos cada vez mais antissociais e isso tem tido consequências muito sérias em nossas vidas.

Por outro lado, deve-se reconhecer que este tipo de jogo estimula uma lógica de concorrência, de competição, de disputa que, caso seja trazida para a vida real, não é saudável, nem justa. É claro que existe uma sorte de outras brincadeiras competitivas como, por exemplo, xadrez, queimada, futebol, etc. Porém, apesar de serem competitivas, tais brincadeiras e suas semelhantes não encontram respaldo no composto de desigualdades da vida concreta assim como o Banco Imobiliário e afins. E ainda que alguém vislumbre possibilidades reais de ascenção social jogando xadrez ou futebol, por exemplo, tal ascenção jamais significará o falimento dos demais que competem na mesma atividade. Tal exemplo pode até refletir ingenuidade, mas é proposital. Há um abismo entre estimular a competição e inspirar competências. Este tipo específico de jogo que envolve a disputa territorial com o fim único de acumulação de fortunas – o Banco Imobiliário – que naturaliza e justifica a propriedade privada da terra, tem servido como um meio de disseminação e legitimação de todo um modo de produção das condições materiais e suas imbricadas relações desiguais.

Nesse ínterim, as crianças tem sido as mais afetadas. Enquanto os adultos se divertem e se distraem jogando, na maior parte das vezes distinguindo bem a diferença entre brincadeira e realidade, as crianças apreendem todo um modo de ver e viver a vida, o naturalizam e internalizam através deste tipo de brincadeira. A internet está cheia de sites e plataformas voltadas para a educação mencionando este tipo de jogo – quando não o jogo em si – como uma ferramenta pedagógica que “possibilita o desenvolvimento de liderança”, “possui dicas de educação financeira”, “é uma forma muito interessante de aprender a investir desde cedo”, “forma um profissional melhor”. Além disso, também existem vídeos de crianças abordando os jogos.

Por outro lado, circula na internet um experimento feito pela associação francesa Observatoire des Inegalités, no qual crianças foram convidadas a brincar com uma versão diferente do jogo Banco Imobiliário. Na ocasião foram subvertidas as regras clássicas, que garantem que todos os jogadores comecem com a mesma quantidade de dinheiro e que sofram os mesmos tipos de penalidades, e tal como acontece na vida real, mulheres, minorias étnicas e deficientes passaram a ter desvantagens previstas pelas “novas regras” do jogo. Como consequência da subversão, as crianças denunciaram veementemente estas novas regras como injustiças [4]. Por um lado, esta reação das crianças indica uma certa percepção em relação às desigualdades sociais. Por outro, esta mesma reação confirma a visão naturalizada destas crianças no que se refere as regras clássicas do jogo. Nesse sentido, as crianças parecem perceber as regras clássicas como justas e pertinentes, chegando até mesmo a defendê-las, mesmo que se trazidas para a vida real, estas mesmas regras demonstrem as mais torpes desigualdades e estejam intrinsecamente relacionadas com as injustiças apontadas pelas próprias crianças diante das “novas regras”.

É bem verdade que as brincadeiras, os jogos, sejam eles de tabuleiro ou não, tem mesmo o intuito de instruir, de instigar, de desenvolver as pessoas modo divertido e lúdico, de acordo com as particularidades de cada um. Desse ponto de vista, as brincadeiras se transformam em ferramentas pedagógicas, especialmente voltadas para as crianças, no sentido de mostrar a elas como o mundo funciona. Contudo, as brincadeiras podem não apenas mostrar como o mundo funciona, mas sobretudo, mostrar como ele deve funcionar. Nesse sentido, as experiências vividas nos jogos aqui abordados não são apenas divertimento ou distração para as crianças, mas se tornam verdadeiras referências em suas vidas, antes mesmo que lhes sejam mostradas outras possibilidades de existência justas e dignas para todos, principalmente a partir da faixa etária que convencionou-se chamar de segunda infância.

Conforme a indicação etária dos próprios jogos, a partir de 5, 6 e 8 anos, a depender da versão, além de desenvolverem a memória, o raciocínio e aspectos de interação social, é possível que as crianças apreendam e consolidem ideias e hábitos, a depender de como e por quem a brincadeira é conduzida. Há a possibilidade da apreensão de um senso de organização social, ainda que primitivo e fundamentado no capital, haja vista o formato do jogo em tabuleiro e suas próprias regras e objetivos.

É possível também que através do jogo, as crianças conheçam certos lugares do Brasil e do mundo, ainda que através de meras imagens ilustrativas ou menção às nomenclaturas. Entretanto, a ideia que o jogo passa sobre estes lugares é essencialmente mercadológica, como já foi apontado anteriormente, e corre-se o risco de o infante consolidá-la como a única possível, passando a ver edifícios, avenidas, bairros, cidades e patrimônios culturais e naturais apenas pelo viés de mercado e por um dado valor monetário.

Outra possibilidade é que as crianças explorem vocabulários diferentes, palavras e significados que ainda não tinham tido acesso em seu cotidiano e que lhes podem ser úteis para o entendimento do mundo. As palavras encontradas nos jogos, em geral, se concentram na esfera da economia ou então do direito e da jurisdição, como “título de posse”, “fortuna”, “milionário”, “dinheiro”, “detenção”, “imposto”, etc, e os nomes dos jogos adjetivados de “luxo”, “super” dizem muito sobre as ideias ao redor das quais giram em torno as diferentes versões de Banco Imobiliário.

Nestes casos, o aproveitamento das informações contidas nos jogos vai depender de quem conduz a brincadeira. Caso seja um adulto, este pode fornecer oportunidades de crítica e explicações às crianças. Caso sejam as próprias crianças as condutoras, é possível que algumas oportunidades de crítica e aprendizado sejam perdidas, dependendo da faixa etária de quem joga e do grau de autonomia do sujeito. De modo geral, é de suma importância que haja a consciência de que a organização e o vocabulário que a criança apreende no jogo, apesar de refletir em muitos aspectos a realidade, é desigual e contraditória, e portanto, não deveria ser reproduzida. Entretanto, esta consciência não parece estar sendo devidamente transmitida às crianças, haja vista que tais jogos tem sido usados para ensinar “dicas de educação financeira”, como “investir desde cedo”, etc. Isto mostra, sobretudo, que mesmo aos adultos este tipo de jogo já é parte de um consenso assim como o próprio modo no qual vivem as suas vidas.

A partir desta ótica, é possível depreender que jogos como Banco Imobiliário e afins tem servido como ferramentas pedagógicas e ideológicas dentro de instituições como a escola e a própria família, que através da educação contribuem para a manutenção de um consenso em prol da hegemonia do capital e de todas as desigualdades que o acompanham, principalmente em sua versão neoliberalizada. É como disse Doreen Massey (2015, p. 25), “o vocabulário que nós usamos, para falar sobre economia em particular, tem sido crucial para o estabelecimento da hegemonia neoliberal” [5], e como pensava Gramsci (1999, p. 399), “toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica”. Nesse sentido, a perpetuação de uma hegemonia está diretamente relacionada à transmissão de uma determinada concepção de mundo, de um conjunto de valores e tradições, que efetiva-se em uma relação pedagógica ampla no âmbito da reprodução das condições materiais.

 

Radicalidade na crítica?

À princípio, pode parecer radical a crítica sobre estes tipos de jogos, e até mesmo presunçosa a afirmação de que eles possam ser tão significativos em nossas vidas. Entretanto, até pouco tempo atrás, também parecia um exagero questionar porque meninas deveriam brincar apenas com bonecas e panelinhas e meninos com carrinhos e arminhas, por exemplo, ou questionar o porquê de haver majoritariamente bonecos e bonecas brancos, loiros e de olhos claros nas prateleiras das lojas brasileiras. Deve-se ressaltar que o fato de haver o questionamento e a crítica não quer dizer que os problemas tenham sido resolvidos, pelo contrário. Haja vista o quadro de injustiças que temos na atualidade envolvendo raça, gênero e sexualidade, percebe-se que ainda há muito o que se questionar e criticar.

Se existe algum motivo para tratar esta crítica como desproporcional, este motivo está relacionado com o próprio capitalismo. Cada unidade do jogo Banco Imobiliário custa, em média, entre cem e duzentos reais no Brasil, a depender da versão e de onde é vendido. É sabido que uma parte pequena da população brasileira pode pagar tranquilamente este valor em um brinquedo. Infere-se, portanto, que o jogo já é exclusivo por si só, e por conta disso, tende a limitar-se aos círculos daqueles que possuem uma condição de vida um pouco mais privilegiada. Por este lado, a exclusão no jogo reflete a vida. No entanto, sabe-se que existem jogos que adaptam os objetivos e as regras do Banco Imobiliário – com uma ou outra diferença, é claro – mas que reproduzem a mesma lógica, e cujos preços são bem mais acessíveis.

Longe de mim querer popularizar mais ainda um jogo como este, a não ser que seja em função da crítica. Imagina se inventam de distribuiur nas escolas um kit que o inclua?  Mas também não estou aqui defendendo a criação de uma versão comunista do jogo, até porque isso já foi feito há alguns anos atrás. O Queue [Fila] foi criado por Karol Madaj, funcionário de um instituto de pesquisa polonês, e tem o objetivo educacional de ilustrar a sociedade polonesa durante o regime comunista. Nele, os participantes não tem como meta levar os outros à falência, pelo contrário, e são incentivados a fazer fila para comprar em lojas estatais. Em vez de comprar casas, hoteis e propriedades, o jogador compra itens básicos de higiene e alimentação [6].

Também não defendo a criação de uma versão socialista do Banco Imobiliário. Isso também já foi feito, inclusive pela própria Harsbro, no ano passado, em uma versão voltada ao público adulto. Monopoly Socialism – Winning is for Capitalists [Monopólio Socialismo – Vencer é para os Capitalistas], é quase uma sátira em forma de jogo. Em sua descrição, lê-se “prepare-se para rir enquanto as voltas e reviravoltas da vida atrapalham o trabalho em prol de uma sociedade utópica compartilhada” e “cooperação nem sempre é o que parece ser”. Em tal versão, os jogadores percorrem o tabuleiro contribuindo com projetos comunitários e recebem um salário mínimo. Ao que parece, é apresentada aos jogadores a opção de favorecer seus próprios interesses em detrimento do aspecto coletivo a todo momento, e a ideia de trabalho cooperativo é motivo de ironia. De acordo com a descrição do brinquedo, é possível que o jogador roube projetos para se autopromover [7].

No Monopoly Socialism, todos os artefatos são datados e antigos –  desde a máquina de escrever ao telefone, passando por fonógrafo, relógio de bolso e televisores. Mas por outro lado, há um aspecto de “novidade”. Ao que tudo indica, no socialismo irônico criado pela Harsbro, os participantes da jogatina são todos veganos. O tabuleiro traz o restaurante No-tip Vegan, e alguns dos cartões do jogo dizem “todo mundo adora os biscoitos de tofu que você fez em homenagem ao aniversário de Karl Marx”, e “a granola caseira que você trouxe para o almoço”. A não ser que os criadores do jogo estivessem muito interados do que propõem algumas vertentes ecossocialistas, o que é quase certo que não, esta postura indica uma visão muito deturpada, além de sarcástica, do socialismo e do veganismo.

Ao que se nota, portanto, se há alguma radicalidade na crítica aqui proposta, esta radicalidade tem pouco poder diante da hegemonia cultural e do consenso ao redor das ideias do jogo em si, haja vista o sarcasmo encontrado na sua versão “socialista”.

Considerando o final

Neste breve texto tentei passar minhas impressões sobre o jogo Banco Imobiliário e jogos afins. Estas impressões, contudo, certamente ainda se lêem incompletas por não se tratarem de uma experiência vivida, mas observada, ao menos no que se refere aos tabuleiros. De certo modo, elas se consitituem quase que como um manifesto pessoal e infantil, de alguém que observa desde o passado e que, portanto, ainda conserva o olhar e os questionamentos de uma criança. Por outro lado, este olhar infantil se encontra com alguém que leu um pouco mais, e que conheceu pessoas com referências coerentes aos questionamentos e às críticas que se colocam. Por fim, tal olhar encontrou um espaço para ser exposto, pensado e dialogado, que constitui-se no aqui e no agora.

Não é a intenção trazer considerações finais, embora já tenha escrito o suficiente por ora. Este é ainda um tema que merece ser dialogado, ponderado, complexificado para ser simplificado. Uma consideração deveras final ainda me escapa. Contudo, para dizer que não considerei o final, trago então uma percepção que me sobressaltou no decorrer desta escrita: se são as crianças os principais sujeitos afetados por estes jogos, no sentido de que são elas que mais apreendem, internalizam e naturalizam a razão do mundo capitalista através deles, talvez um manifesto contra-hegemônico, em oposição a toda a desigualdade que representam e estimulam, devesse mesmo partir de um olhar infantil.

¹Doutoranda do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/UFRJ.

Notas

[1] HARSBRO. HarsbroSpotlight. Disponível em: <https://corporate.hasbro.com/en-us>Acesso em 31 ago. 2020.

[2] Tristan Donovan mostra que na Filadélfia, onde Darrow residia, “as pessoas tinham sido reduzidas a pedintes ou reviravam latas de lixo para achar sobras para sobreviver. Acampamentos de sem-teto estavam por toda a cidade. (…) Por toda cidade 300 mil pessoas estavam desempregadas, e Darrow era uma delas. Desde que perdeu o emprego numa oficina de radiadores, Darrow não conseguia achar trabalho. Ele tentou passear com cães, consertar ferros elétricos e até fazer e vender quebra-cabeças, mas esses trabalhos trouxeram pouco dinheiro. Assim a família sobrevivia com a renda que a esposa ganhava costurando. Para piorar, Dickie, o filho mais novo do casal, teve sequelas mentais devido à escarlatina. (…) As instituições que aceitavam crianças como Dickie eram lugares brutais, onde as pessoas muitas vezes ficavam acorrentadas nas camas, apanhavam, eram mal alimentadas e sujeitas a experimentos médicos. Se recusando a colocar o filho num lugar assim e incapazes de pagar por mais cuidados, os Darrows penavam para ajudar Dickie o melhor possível”. In.: DONOVAN, Tristan. Monopoly original era um jogo anti propriedade privada. O jogo que emula o capitalismo selvagem era pra ser uma lição sobre desigualdade social. Disponível em: <https://bit.ly/2Dj6Z4N> Acesso em 31 ago. 2020.

[3] As informações aqui contidas estão disponíveis nas descrições dos brinquedos em lojas virtuais ou materiais. Disponíveis em: <https://products.hasbro.com/> e <https://www.estrela.com.br/> Acesso em 31 ago. 2020.

[4] LABORATÓRIO DE EDUCAÇÃO. Experimento com jogo Banco Imobiliário chama atenção das crianças para a questão da desigualdade social. Disponível em: <https://bit.ly/3hQDN42> Acesso em 31 ago. 2020.

[5] MASSEY, 2015, p. 25. “The vocabulary we use, to talk about the economy in particular, has been crucial to the establishment of neoliberal hegemony.”

[6] EXTRA. Poloneses criam banco imobiliário comunista. Disponível em: <https://glo.bo/3hP2XQL> Acesso em 31 ago. 2020.

[7] CNN. Yes, there’s a socialism-themed Monopoly game. It packs a message tailored for capitalists. Reportagem de Harmeet Kaur. Disponível em: <https://cnn.it/34UzPEb> Acesso em 31 ago. 2020.

Referências

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol 1. São Paulo: Civilização Brasileira 1999.

GRAMSCI, Antonio. Obras escolhidas. São Paulo: Martins Fontes, 1978.

MASSEY, Doreen. Vocabularies of economy. In.: HALL, S.; MASSEY, D.; RUSTIN, M. (Orgs.). After Neoliberalism: The Kilburn Manifesto. London: Lawrence & Wishart, 2015.