Direito à Favela: lineamento de um conceito

Boletim nº 4 – 22 de outubro de 2019

 

Neste artigo para a Revista Ciência & Trópico, o profº Alex Magalhães (IPPUR/UFRJ) analisa as dinâmicas internas dos assentamentos de baixa renda a partir de um ponto de vista sociojurídico. Tendo como eixo central o conceito do “direito das favelas”, Magalhães aponta o potencial renovador que este debate possui em relação à teoria jurídica e à teoria social a respeito das favelas, bem como, suas repercussões de ordem teórico-prática.

O artigo “Direito das Favelas: lineamento de um conceito” foi publicado originalmente na Revista Ciência & Trópico (v.43, 2019). O Boletim IPPUR divulga o trabalho a fim de ampliar a difusão científica do corpo do docente do instituto.

 

Por Alex Magalhães¹

 

A expressão, ou o nomen, “Direito das Favelas” foi cunhada, originalmente, no projeto de tese, que estruturei ao longo do ano de 2007 e submeti, no mesmo ano, ao Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, do IPPUR / UFRJ, e que constituiu, efetivamente, o guia e referência do desenvolvimento da pesquisa que culminou na elaboração de minha tese doutoral.

Desde essa ocasião, tenho trabalhado no desenvolvimento do conceito correspondente a essa expressão, que voltou a comparecer expressamente em diversos escritos anteriores e posteriores à mencionada tese nomeadamente: Magalhães (2008; 2010; 2013) bem como, de modo latente, em diversos outros escritos e novos projetos de pesquisa cujo objeto de estudo é o universo das favelas, ou, de modo ampliado, os chamados “assentamentos autoproduzidos” e as chamadas periferias, duas outras noções que vêm ganhando centralidade em minha reflexão recente e que dialogam fortemente com aquela.

Registro que o caráter “original” da expressão, acima alegado, refere-se a minha própria produção, muito embora eu desconheça que outros(as) pesquisadores(as) tenham se valido dela anteriormente.

Registro também que me interessa menos o debate a respeito da primazia na construção e uso dessa ou de outras expressões já ensaiadas na literaturado que o esforço autêntico em conhecer as favelas – e, de modo mais abrangente, os assentamentos autoproduzidos e as periferias – e suas dinâmicas internas, desde um ponto de vista sociojurídico, contribuindo, com o olhar e com os instrumentos analíticos do jurista, para o amplo e longo debate teórico e político (ou prático) a respeito do desenvolvimento, consolidação e requalificação desses importantes segmentos do tecido urbano.

No entanto, registro também que não considero o debate terminológico – ou, mais refinadamente, o debate a respeito dos chamados atos de nomeação (BOURDIEU, 1989) dos fenômenos sociais – algo secundário, desprezível, meramente formal, etc., especialmente quando se trata do campo jurídico. Nesse âmbito, como tem ensinado o referido mestre francês, a nomeação constitui um mecanismo, por excelência, de produção não somente do sistema jurídico, mas do próprio sistema social, induzindo ao seu reconhecimento universal.

Um exemplo bastante ilustrativo do problema da nomeação é trazido por outra colega que, em sua obra, indiscutivelmente versou sobre o tema do Direito das Favelas (muito embora não tenha se valido dessa expressão), porém em termos que o colocam sistematicamente – e literalmente – entre aspas a cada vez que se referia a quaisquer de suas possíveis expressões. O uso constante dessas aspas, como uma espécie de regra ou disciplina científica, induz a uma dúvida visceral a respeito da juridicidade do fenômeno que ela se propunha conhecer, na qual a utilização da categoria “Direito” a fim de qualificar esse fenômeno seria não mais do que uma espécie de concessão generosa, e/ou de metáfora, e/ou de licença poética (CORREA, 2012).

Tal exemplo me é bastante útil a fim de fazer, logo ao início desse artigo, uma démarche que me parece fundamental com relação ao conceito aqui debatido: na abordagem que desenvolvo, e que defendo, a categoria “Direito” é utilizada ipsis litteris, como diria um jurista tradicional. É usada de maneira categórica, com perdão pela redundância. Não se trata de um mero recurso discursivo, de uma palavra usada de maneira frouxa, não rigorosa ou levianamente.

Aquilo que entendo ter começado a desvendar em todos os meus esforços de pesquisa empírica eu classifico, strcitu sensu, como matéria jurídica, ou como relações sociais cuja juridicidade é inegável, em poucas  palavras, como efetivas relações e práticas jurídicas, de relevância tanto do ponto de vista do sistema normativo já posto, quanto da prospecção de possíveis futuras instituições formais do Direito. Em outra possível síntese, trata-se de literais fenômenos jurídicos, seja numa perspectiva formal, seja numa perspectiva sociológica.

Destarte, o presente artigo corporifica um esforço de sistematização, e, ao mesmo tempo, de atualização do conceito de Direito das Favelas, a fim não somente de definir o seu estatuto epistemológico, como também de incorporar novas dimensões ou nuances que têm sido sugeridas pelo tempo histórico, fazendo face aos questionamentos que já foram opostos ao longo do período em que dele tenho me valido.

Parece-me que se trata de um exercício que, de tempos em tempos, revela-se necessário, a fim de promover o reencontro desse objeto de estudo com o estado da arte das reflexões e práticas acumuladas a partir do momento inicial de sua proposição. Reforça essa percepção o fato de que se trata de um conceito definidor do lugar ou ângulo de onde busco tratar da questão das favelas, no qual se articulam aquilo que desenvolvo nos campos teórico e prático.

O desenvolvimento do artigo se estrutura basicamente em dois momentos. No primeiro deles buscamos demonstrar o quanto o estudo das favelas e das relações sociais que nelas se estruturam possui uma inafastável e relevante dimensão jurídica, para a qual se requer a devida atenção dos pesquisadores, traduzida no respectivo trabalho de construção de quadros teóricos adequados, no qual emerge o conceito de Direito das Favelas, como a síntese que propomos para a referida construção.

Uma vez colocada essa premissa fundamental, o segundo momento será dedicado a explorar e explicitar o que comporia um possível conteúdo do conceito de Direito das Favelas, identificando temas e questões que estariam abrangidos por ele, ao lado de algumas premissas epistemológicas e metodológicas que entendemos como essenciais a esse conceito.

Na conclusão, são brevemente recapituladas as questões cruciais do debate conceitual proposto no artigo, bem como apresentadas sínteses desse debate, em forma de proposições generalizantes a respeito do sentido e alcance que conferimos a noção de Direito das Favelas. Por fim, são apresentados os horizontes futuros do debate a respeito desse conceito que, de modo geral, importa na consolidação de uma determinada agenda de pesquisa sociojurídica a respeito das favelas.

 

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¹Professor do IPPUR/UFRJ.