O “vírus” da violência doméstica em tempos de COVID-19

Boletim nº 14 – 03 de abril de 2020

 

Por Raquel Isidoro¹ e Carolina Lemos²

 

A principal recomendação da Organização Mundial da Saúde – OMS para impedir a propagação do Covid-19, o novo coronavírus, é a quarentena e o isolamento social. Essas estratégias de saúde pública já foram utilizados em diversos momentos históricos de pandemias, como a peste bubônica no século XIV/XVII, e que continua se mostrando eficientes em países que seguem as orientações para desacelerar o contágio. A quarentena é uma medida restritiva do trânsito e aglomerações de pessoas para achatar a curva de contaminação do vírus, e o isolamento social é uma ação voluntária, indicado a todos, principalmente para pacientes infectados ou com suspeita da doença. No entanto, se por um lado a estratégia é uma alternativa à inexistência  de vacina para redução do Coronavírus, por outro lado, esta pandemia revela a propagação sem distinção social ou geográfica do vírus, de modo globalizado, e realça os impactos acentuados das desigualdades sociais existentes no mundo. Visamos abordar neste texto o principal ambiente de proteção antiviral, a casa, como a arena de contágio de outro vírus, a violência doméstica.

Em primeiro lugar, consideramos a nomeação de qualquer problema público como parte fundamental para realização da sua análise, por refletir as ações políticas, sociais, culturais e geográficas compostas por distintos atores e instituições. Neste caso, utilizamos a nomeação do Ministério da Saúde (2002) sobre a violência doméstica, que a define como violência que ocorre no espaço doméstico, e inclui membros fora do contexto da família nuclear, com ou sem função parental, e que são praticadas de diversos modos: moral, psicológico, sexual, patrimonial e físico. São mulheres, idosos, crianças, homens, portadores de necessidades especiais, que convivem diariamente, esporadicamente ou agregados, como babás, empregadas, cuidadores entre outros que estão sujeitos a violência doméstica.

Todavia, romper o imaginário social que atribui a violência doméstica como um termo similar à violência contra mulher, expande o debate e auxilia na investigação e medidas de prevenção e proteção das vítimas de violência doméstica, que em sua centralidade são mulheres como mostra os dados do contexto brasileiro. Segundo o Mapa da Violência (2012), duas em cada três pessoas atendidas por violência doméstica pelo SUS (Sistema Único de Saúde) são mulheres. E, em 2013, a OMS aponta o Brasil no 5° lugar do país que mais mata mulheres, no ranking de 83 países, e o DataSenado, revelou 1 a cada 5 mulheres como vítimas de violência doméstica.

No âmbito judiciário, a Lei Maria da Penha representa um marco na proteção para pessoas que se identificam como gênero feminino e que sofra violência doméstica e familiar, os idosos e crianças têm mecanismos legais de proteção e a Lei Maria da Penha também pode ser aplicada, nos casos de homens vítimas de violência doméstica, a eles são aplicados os dispositivos previstos no Código Penal. Mas, o emprego doméstico, regido pela Lei Complementar n° 150, de junho de 2015, que assegura direitos a trabalhadores da categoria obedece à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A Reforma Trabalhista, de 2017, objetivou flexibilizar a relação entre empregador e empregado, e uma das medidas adotadas é que a Justiça do Trabalho, antes  protetiva e sem honorários de sucumbência, passasse a tê-los. Asucumbencia é uma dívida da parte vencida ao advogado da parte vencedora em uma ação judicial, ação esta que precisa de comprovação do ato da violência realizada pelo empregador ou cometida no espaço do trabalho. Se a denúncia de assédio sexual e moral no espaço doméstico sofridos por empregadas já eram complicadas antes, atualmente quem sofre a violência precisa comprovar que foi agredida. E, em quarentena, algumas atividades laborais eletivas foram suspensas, mas nem todas, como as empregadas domésticas.

No entanto, liberadas ou não de trabalhar, o ambiente doméstico comporta indivíduos sob o mesmo teto num contexto de medo e ansiedade causada pelo coronavírus, além da insegurança decorrente da instabilidade econômica, contribui ainda mais para configurar-se como local propício para violências domésticas. Recentemente, a ONU Mulheres emitiu um documento, “COVID-19 na América Latina e no Caribe: como incorporar mulheres e igualdade de gênero na gestão da resposta à crise sobre as dimensões de gênero na pandemia”, para alertar sobre a situação das mulheres na pandemia, que acabaram tendo uma sobrecarga dos trabalhos não remunerados, como as tarefas de cuidado com filhos, idosos, pessoas com necessidades especiais, e nas realizações de atividades domésticas, que recaem como a principal responsabilidade das mulheres.

Nos empregos, um dos cenários possíveis, recomendado pelas autoridades mundialmente, é o home office, no entanto, essa atividade em domicílio tem pesado na carga de trabalho por exigir uma dedicação exclusiva. A saúde psicológica dos funcionários e as especificidades da experiência de ser mulher nesta sociedade não são consideradas. No caso das trabalhadoras informais, há uma maior probabilidade de perderem suas rendas e/ou de serem contaminadas por se exporem mais ao vírus em busca do sustento.

Desse modo, mulheres cisgênero e transgênero, principalmente empregadas domésticas, trabalhadoras informais e da área da saúde, migrantes e refugiadas irão sentir o impacto maior da pandemia e do pós-pandemia. O relatório da ONU Mulheres alertou ainda, que o acesso às ordens de proteções e os serviços de segurança à mulher poderiam ser afetados no período da quarentena, e recomendou às autoridades fazer um mapeamento de dados desagregados por sexo e gênero (incluindo taxas diferenciadas de infecção, carga econômica e de assistência, e o acesso das mulheres e incidência de violência doméstica e sexual) e garantir os serviços essenciais para o combate à violência contra mulheres e meninas. Para a ONU, o apoio das autoridades públicas às organizações especializadas nos serviços de combate à violência doméstica é indispensável.

Na China, o primeiro país a adotar o isolamento para conter o avanço da COVID-19, sofreu um enorme impacto nas estatísticas de violência doméstica, segundo Wan Fei, fundador da ONG contra violência doméstica em entrevista para a Sixth Tone, os casos durante a quarentena aumentaram 90%. No Brasil, no dia 20 de março, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, utilizou apenas sua rede social do Twitter para alertar sobre a incidência de violência doméstica na quarentena, divulgando o Disque 100 (violência que envolvem crianças e idosos) e o Ligue 180 (Violência contra Mulher) para realizar denúncias por ligação. E neste domingo, dia 29 de março, o Presidente da República Jair Messias Bolsonaro fez a seguinte declaração a jornalistas na entrada do Palácio da Alvorada, “Tem mulher apanhando em casa. Sabe por quê? Porque não tem pão. Daí o cara quer trabalhar e não pode sair. E fica nervoso, né?”.

Apesar do medo e da ansiedade econômica estarem presentes no contexto do coronavírus, isto não pode legitimar as agressões. A colocação do chefe de governo não auxilia e nem avança o debate de medidas de prevenção e proteção para as pessoas em situação de violência doméstica, tornando- se oportunista ao trazer um pensamento simplista e indutivista sobre o tema, o reduzindo a uma solução inconsequente de não seguir as recomendações da OMS. É fundamental, que estejamos mais do atentos aos crescentes casos, e estejamos aptos a agir sobre eles. Neste sentido, as autoridades devem seguir a recomendação da ONU Mulheres e realizar esforços para fazer um mapeamento de dados desagregados por sexo, identidade de gênero, identificação de cor/raça/etnia, situação socioeconômica, estados e municípios.

Em um levantamento sobre violência doméstica no navegador de busca “Google”, encontramos a notícia de que as demandas do Plantão Judiciário da Justiça do Rio de Janeiro tiveram um aumento 50% para os casos de violência domésticas nos últimos dias, segundo Adriana Mello, Juíza titular da Vara da Violência Doméstica. A maioria das pessoas que acionou o órgão de defesa eram mulheres. E, em Mato Grosso, os crimes de importunação aumentaram 600%, além do estupro que subiu 8%.

No contexto internacional, a plataforma online se mostra como uma ferramenta na luta contra a violência doméstica. Na França, a Secretária de Igualdade de Mulheres e Homens e da Luta contra o Preconceito informou uma queda brusca no número de chamadas emergenciais. Esse quadro os fez questionar se realmente ocorria uma súbita diminuição das agressões ou se a assistência por telefone se tornou inviável, uma vez que, as vítimas não pudessem efetuar ligações emergenciais por estarem na presença do agressor. A alternativa elaborada até o momento é a permanência dos serviços de atendimento 24 horas online por uma plataforma via chat, que direciona a denúncia aos policiais. Esse serviço possui um click de emergência, no qual a tela do dispositivo se fecha, caso o agressor se aproxime. Na Espanha, o governo declarou como essenciais os serviços de atendimento às mulheres vítimas de violência, garantindo centros especializados e abrigos para acolhê-las no período da pandemia. Isso inclui um serviço de apoio psicológico na internet para pessoas que residem em lares violentos e uma ferramenta foi desenvolvida para realizar denúncias por mensagem com geolocalização, como a do WhatsApp.

A investida na internet como um meio de ação que vincula a vítima às instituições de amparo, sobressalta nesses países. Caberia, no Brasil, um esforço de potencialização dos meios de informação e comunicação públicos para combater a violência doméstica no país? Embora nem todos tenham acesso ou reconheçam, as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC) já vêm auxiliando no combate à violência doméstica no território nacional. Existem aplicativos e outras plataformas online de informação criadas especialmente para esse objetivo, caberia uma maior participação e parceria da gestão pública com as NTIC e na sua ampla divulgação.

No caso, da geotecnologia, ela, por sua vez, possibilita transformar as estatísticas de violência doméstica em dados espaciais para geolocalização de suas ocorrências. Seu papel comporta em processar informações geográficas que permitem a identificação das localidades que mais necessitam de formulação de políticas públicas, porque têm o potencial de apontar nos mapas onde ocorrem os mais altos e baixos índices de violência doméstica num país, região, estado etc. As ações ciberfeministas tem utilizado hashtag como um canal importantíssimos para denúncias, a exemplo #meuprimeiroassédio, #metoo e #niunaamenos. Utilizar esses canais para ampliar as divulgação de campanhas públicas sobre violência doméstica pode ser uma estratégia interessante. No entanto, devemos olhar a violência doméstica para além da  ótica “esposa versus esposo”, e compreender  toda a complexidade que envolve este lugar.

Portanto, o primeiro passo para esse período de maior exposição ao “vírus” da violência doméstica, é se opor ao silenciamento e ampliar o debate em prol de uma maior explanação pública sobre a violência doméstica em tempos de Covid-19.

¹Mestre em Sociologia (PPGS-UFF)

²Mestranda em Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ)

³A imagem de destaque é uma reprodução Catraca Livre – Camila Lutosa

Referências:

CORREIO BRAZILIENSE. Reportagem disponível em https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2017/07/15/interna_cidadesd f,609909/violencia-contra-a-mulher-fins-de-semana-sao-dias-com-mais- ocorrencia.shtml

MINISTÉRIO DA SAÚDE . Violência intrafamiliar: orientações para a prática em serviço. Secretaria de Políticas de Saúde. Brasília, DF. 2002. ONU MULHERES. “COVID-19 na América Latina e no Caribe: como incorporar mulheres e igualdade de gênero na gestão da resposta à crise sobre as dimensões de gênero na pandemia. Disponível em http://www.onumulheres.org.br/wp- content/uploads/2020/03/ONU-MULHERES-COVID19_LAC.pdf

SIXTHTONE. Reportagem disponível em https://www.sixthtone.com/news/1005253/domestic-violence-cases-surge-during- covid-19-epidemic

UNIVERSA. Reportagem disponível em https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/03/24/violencia-domestica-rj- quarentena.htm?cmpid=copiaecola

_________. Reportagem disponível em https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/03/23/paises-europeus- ampliam-combate-a-violencia-domestica-em-meio-a- coronavirus.htm?cmpid=copiaecola