Privatização do Saneamento Básico no Brasil
Boletim nº 33 – 19 de agosto de 2020
Por Lorena Alves Nogueira Costa¹
Recentemente, a pandemia do coronavírus colocou em evidência o papel indiscutível da água enquanto bem essencial à manutenção de uma vida digna. E, para além disto, trouxe ao foco a urgência da universalização do acesso à água e à coleta e tratamento de esgoto também como uma questão de saúde pública, bem como elementos primordiais para a redução de desigualdades.
Em decorrência do déficit no acesso ao saneamento básico no Brasil ainda ser elevado, com destaque ao esgotamento sanitário, o debate em torno da prestação do serviço está cada vez mais em voga. A principal questão, todavia, é a maneira sobre a qual tal debate tem sido construído, delimitando-se de modo a incentivar a participação privada no setor, delegando a empresas operadas pela lógica mercadológica do lucro a efetivação do direito humano de acesso a água e esgoto de maneira igualitária.
Sob o argumento de garantir a meta de universalização do saneamento básico nos próximos 13 anos e de promover melhorias nos serviços, o chamado “Novo Marco Legal do Saneamento” foi sancionado em julho. A nova lei altera trechos do então marco regulatório (Lei 11.445/2007), trazendo como principal mudança o fim da prerrogativa de utilização da modalidade de Contrato de Programas. Este, por sua vez, constituía-se como instrumento jurídico que permitia aos municípios, detentores da titularidade destes serviços, a celebração de contratos de concessão com companhias estaduais diretamente, por meio de dispensa de licitação. Ao exigir que sejam realizadas licitações para a concessão dos serviços de saneamento, o marco abre espaço para que mais empresas privadas assumam a prestação destes serviços.
Um dos principais pontos na defesa da instauração da obrigatoriedade de licitação é o de estímulo à competição, e, desta forma, de maior garantia à plena eficiência. No que tange a este aspecto, cabe ressaltar que o saneamento básico é um monopólio natural. A expansão e manutenção da rede de esgoto e abastecimento de água é um investimento de alto nível, com longo prazo de maturação, e, portanto, naturalmente é um serviço que deve ter um único prestador em um determinado território. Desta maneira, a defesa da concorrência na prestação destes serviços não significa diversificação de prestadores que atendam a uma determinada população, e, portanto, na prática, a concorrência pelo direito de gerir por 35 anos um serviço tão fundamental à população se limitará ao curto trâmite licitatório, sem que haja garantias reais de que este serviço vá efetivamente ser operacionalizado de forma mais eficiente.
No estado do Rio de Janeiro, concomitantemente ao debate regulatório, há a tramitação do processo de concessão da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae). A necessidade de concessão da CEDAE, que hoje é responsável pelo abastecimento de água de 64 dos 92 municípios fluminenses, surge a partir da utilização desta pelo governo estadual como condição para o ingresso no Regime de Recuperação Fiscal da União, mas está intrinsecamente ligado ao mesmo processo de estímulo à privatização de todo o setor que pauta as agendas das últimas gestões do governo federal.
Neste processo, ficou a cargo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) a modulação deste trâmite. A proposta apresentada pelo banco divide o estado em quatro blocos de concessão, unindo partes dos municípios às Regiões Administrativas da Capital, a fim de garantir que municípios menos rentáveis, que provavelmente teriam menor interesse econômico à companhias privadas, sejam atendidos de maneira igualitária quando em comparação às regiões mais lucrativas de seu bloco. Contudo, não fica claro neste modelo se ocorrerá a garantia do acesso a famílias que vivem em comunidades e assentamentos irregulares em todos os municípios do Rio.
Neste molde, caberá às concessionárias vencedoras a distribuição da água e a coleta e tratamento do esgoto, mantendo-se como responsabilidade da CEDAE a captação e tratamento da água. Este modelo vem sendo amplamente criticado, não apenas por algumas questões técnicas, mas principalmente pela falta de participação popular em sua construção e pelo fornecimento de brechas na garantia da manutenção de valores tarifários justos e da efetivação da meta de universalização, bem como no que se refere ao atendimento qualificado para as populações mais carentes. Em um contrato onde o objetivo final é o lucro, o reequilíbrio financeiro às custas do sacrifício da manutenção dessas promessas é inevitável.
Por fim, é primordial a análise atenta aos problemas enfrentados pela CEDAE nos últimos anos. Todavia, é importante ter em vista que trata-se de uma empresa pública estratégica, e que embora em meio a um processo de sucateamento, se mantém lucrativa (com lucro anual de aproximadamente R$ 1 bilhão em 2019) e possui a prerrogativa de operar sob a fiscalização e regulação de todo o aparato estatal.
Se o Brasil e estado do Rio de Janeiro hoje “abrem as portas” do setor de saneamento às companhias privadas num momento em que a tendência internacional é, justamente, a de remunicipalização destes serviços, é fundamental que este processo ao menos seja tratado sob uma ótica mais profunda, onde sejam analisadas todas as especificidades e pontos sensíveis inerentes ao tema. Tema este que deve ser tratado também como essencial para a manutenção da garantia da cidadania, e que precisa ser, portanto, próximo e aberto à participação popular.
¹Graduanda do curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES/UFRJ).
Referências
AGB Rio Convida: A CEDAE e a crise da água no Rio de Janeiro. Live Online. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vx4y1w5M1Ys&t=534s
Here to stay: water remunicipalization as a global trending. TNI, PSIRU and the Multinational Observatory. Disponivel em: https://www.world-psi.org/en/here-stay-water-remunicipalisation-global-trend
Passando a Boiada no Saneamento. Viviane Tavares. Disponível em: http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/passando-a-boiada-do-saneamento