PEC nº 32/2020 da Reforma Administrativa. Quem é o espantalho: a estabilidade ou o regime jurídico único do servidor público?
Boletim nº 37 – 14 de outubro de 2020
Por Maria Abreu¹ e Paulo Reis²
Os professores do IPPUR Maria Abreu e Paulo Reis analisaram a PEC nº 32/2020 da Reforma Administrativa, que tramita no Congresso Nacional, para o blog “Gestão, Política & Sociedade” do Estadão. Um dos pontos centrais é se essa reestruturação não seria uma forma de findar com a estabilidade e o regime próprio dos servidores públicos. Ademais, salienta-se a necessidade de uma avaliação qualitativa da gestão de maneira mais efetiva para que o cidadão tenha seu interesse atendido.
Contrária à noção de capacitação do Estado, a proposta legislativa busca estabelecer cinco tipos de vínculos explicitados pelos pesquisadores na reportagem, além de instituir mudanças para os futuros servidores, criando uma esfera de rivalidade. Em suma, os pesquisadores ressaltam a importância da discussão ampla sobre instrumentos de aperfeiçoamento da Administração Pública em prol de políticas públicas adequadas ao atual cenário do país.
Leia a reportagem na íntegra abaixo, ou clicando aqui.
Um mês após o seu envio ao Congresso Nacional, muitas já foram as reações negativas ao texto da PEC nº32/2020, que tem sido apelidada de Reforma Administrativa ou de Nova Administração Pública, nas palavras dos seus proponentes. O primeiro questionamento, aliás, é se teríamos, de fato, uma proposta de reforma administrativa ou a tentativa de colocar na berlinda a estabilidade ou o regime jurídico único do servidor público, instituídos por meio da Constituição de 1988 e regulamentado parcialmente pela Lei nº 8.112/1990 e suas alterações posteriores. Não seria melhor chamá-la de uma reforma trabalhista do setor público?
Note-se que, atualmente, a estabilidade do servidor público não é absoluta: ela depende de avaliação em estágio probatório. A progressão em carreira, outro ponto crítico no diagnóstico dos proponentes da PEC, depende de avaliação de desempenho. Tais avaliações são, atualmente, insuficientes? Que discutamos, então, critérios que atendam às demandas da sociedade brasileira, principalmente de acordo com os parâmetros de um serviço público de qualidade, cuja eficiência seja medida não somente por metas numéricas, mas pela qualidade efetiva avaliada pelo principal beneficiário do serviço público, que é o cidadão. Nesse ponto, assim como outros especialistas já apontaram, muitos dos problemas da gestão pública no Brasil não se devem à ausência de marcos legais, mas a deficiências nas condições de trabalho, que envolvem inclusive aspectos de gestão de servidores.
O que a PEC faz, no entanto, vai no sentido contrário. Elege como inimigo geral o Estado, ineficiente, e como principal vilão o servidor, que ganha muito, não é avaliado adequadamente e que, portanto, ao longo do tempo ficaria desestimulado, acomodado, anacrônico, um verdadeiro obstáculo ao enfrentamento dos desafios colocados pela sociedade ao Estado. Para combater esse problema, o texto da Reforma, tanto na Exposição de Motivos, quanto na redação do novo artigo 39-A, a ser incorporado na Constituição, prevê cinco tipos de vínculos do servidor público: (i) vínculo de experiência, cria um ambiente de incerteza, pois adiciona mais uma etapa ao concurso público, tanto para carreiras típicas de estado quanto para carreiras que não são típicas, em que os candidatos aprovados nas etapas anteriores competirão pelas vagas. Se reconhecermos que as avaliações atuais são insuficientes, por quais razões o vínculo de experiência estaria imune aos problemas existentes?[1]; (ii) vínculo por prazo determinado, não é uma novidade, seja no governo federal, com as contratações de professores substitutos nas instituições públicas de ensino superior ou nos municípios, em que essas práticas são ainda mais frequentes, haja vista as muitas decisões judiciais determinando a realização de concursos para cargos que são ocupados por contratações temporárias[2]; (iii) cargo com vínculo por prazo indeterminado, esse é o novo vínculo que elimina a estabilidade no serviço público e que tem recebido as maiores críticas: afinal, por se tratar de uma reforma incompleta, não se sabe quais carreiras não são típicas de Estado; (iv) cargo típico de Estado, com garantias, prerrogativas e deveres diferenciados, ou seja, com a estabilidade mantida, será restrito aos servidores que tenham como atribuição o desempenho de atividades que são próprias do Estado, sensíveis, estratégicas e que representam, em grande parte, o poder extroverso do Estado. Novamente, não se tem certeza sobre quais carreiras serão contempladas, embora se possa supor que serão justamente as carreiras com melhores condições de trabalho e remuneração no serviço público, exceto as forças de segurança estaduais; e (v) cargo de liderança e assessoramento, na prática esse tipo de vínculo já existe com os cargos em comissão e funções de confiança para atribuições de direção, chefia e assessoramento, porém traz uma novidade que são os cargos de liderança. Embora os proponentes e defensores afirmem que esse novo vínculo não aumentará o espaço para cargos de livre nomeação – já que essa tem sido uma questão levantada em muitas análises realizadas nestes poucos mais de 30 dias desde apresentação da proposta – ainda não se tem clareza sobre o que exatamente se pretende com esse vínculo. Um fato que chama a atenção é que a proposta parte da premissa de que a liderança estaria ligada ao cargo. Na teoria e na prática, sabemos que essa razão de causalidade não necessariamente se estabelece.
Para além da apresentação bastante resumida de cada um dos novos vínculos e de alguns dos seus potenciais problemas, gostaríamos de destacar que o fim do regime jurídico único entre os novos servidores, somado à convivência desses novos servidores com os efetivos, com estabilidade, significará, em primeiro lugar, o retrocesso a uma situação anterior à Constituição de 1988 e à Lei nº 8.112/1990, que se procurou justamente consertar. Após a instituição do regime jurídico único, servidores públicos que não estavam sob esse regime foram equiparados por leis supervenientes, justamente pela insustentabilidade da convivência de servidores com diversos vínculos funcionais. A estabilidade do servidor foi uma garantia conquistada após a experiência de um governo autoritário, em que expurgos de servidores eram – como é característica desses regimes – frequentes.
Também é preciso reiterar que a vulnerabilidade do “servidor público” submetido a esses novos vínculos sem estabilidade representará um risco potencial para a intensificação de práticas patrimonialistas, que, apesar de todos os avanços, ainda permanecem na Administração Pública brasileira. Notadamente, a ausência de estabilidade criará um ambiente ainda mais propício a tais práticas, especialmente nos entes subnacionais mais distantes do escrutínio dos órgãos de controle externo, das organizações da sociedade civil e dos meios de comunicação.
Em segundo lugar, um ponto ainda pouco explorado é que a solução em termos de estruturação dos novos vínculos, especialmente o vínculo de experiência e o contrato por tempo indeterminado, estabelece um ambiente de competitividade entre os servidores, ao invés do ambiente de colaboração, este tido como recomendado em manuais não apenas de administração pública, mas de trabalhos coletivos, em geral. Pode-se dizer, sem precisar de grandes experimentos, que critérios de competitividade seriam, por exemplo, desastrosos na área da saúde, educação e segurança, e sua eficiência em outras áreas bastante questionável.
Nesta luta contra problemas mal situados, esquece-se que o comprometimento dos servidores não nasce de um vínculo temporário com seus serviços ou da competição por uma vaga no serviço público e pelos aumentos de salários decorrentes de progressões e promoções. Se há, por exemplo, servidores da saúde comprometidos com a atenção básica, que inclusive foram capazes de contraditar decisões equivocadas de governos, sua prática é decorrente de comprometimento com uma carreira, com a missão institucional da sua organização e com o conhecimento profundo a respeito de sua área de atuação e da própria experiência do atendimento naquela área.
Muitos poderiam ser os exemplos de dedicação dos servidores, nas diversas áreas, em que pese muitos deles estarem submetidos a condições de trabalhos precárias. Muitos são extremamente qualificados para sua remuneração, mas assim o são por dedicação e por vocação, nas áreas de educação, de assistência social, de meio ambiente, de planejamento urbano etc. Sim: há muitos servidores que o são por vocação! Se nem todos o são, que avaliemos os métodos de seleção e de avaliação ao longo da carreira. Mas não coloquemos sua estabilidade, nem parte de sua tranquilidade – conquistada por alguma previsibilidade financeira – como os problemas para a prestação de um serviço eficaz no atendimento ao interesse público.
Conforme já mencionamos, a tentativa de solucionar alguns dos problemas da gestão pública no Brasil por meio de marcos legais ignora a teoria e a prática na área de gestão pública que cada vez mais tem evidenciado a importância da colaboração das pessoas para solução de problemas complexos. Neste sentido, ao propor uma lógica de competição entre as pessoas no serviço público o governo parece estar promovendo mais um retrocesso e, por que não dizer, o caos.
Por fim, se é inegável que o atual serviço público prestado pelo Estado brasileiro está aquém do desejável – embora tenhamos alcançado grandes avanços nas últimas décadas -, tentemos discutir metas institucionais, envolver os servidores e discutir quais os mecanismos de aprimoramento do seu serviço, com o objetivo de estimular a colaboração e ampliar a capacidade de produzir melhores políticas públicas. Para além da remuneração, o serviço público necessita de condições de trabalho. As tão debatidas capacidades estatais – necessárias para a prestação de serviços de qualidade em um Estado federativo pouco homogêneo como o nosso, com discrepâncias entre as burocracias federal, estadual e municipal – não emergirão a partir da eleição de vilões ou da criação de ambientes de insegurança financeira e jurídica dos servidores.
Todos e todas somos a favor do aprimoramento dos serviços prestados pelo Estado. Nessa luta, os servidores públicos são nossos aliados, não nossos inimigos.
¹Professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da UFRJ com atuação no Curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES).
²Professor Adjunto do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da UFRJ com atuação no Curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES).
Notas
[1] https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/reformar-nova-administracao-publica-problemas-antigos-09092020
[2] https://www.mpmg.mp.br/comunicacao/noticias/a-pedido-do-mpmg-justica-determina-realizacao-de-concurso-para-psf-de-campo-belo.htm