A ascensão do bolsonarismo

Boletim nº 15 – 10 de abril de 2020

 

Por Heitor Silva¹ e Rômulo Correa²

 

Há já algum tempo os partidos de esquerda vêm bradando aos quatro ventos que o Brasil vive uma “ascensão do fascismo”; e que, diante desta sinistra ameaça, há que se construir uma frente ampla da civilização contra a barbárie, do progresso contra o atraso, do amor contra o ódio. O efeito prático dessa ladainha é que por ela a esquerda fica autorizada a entrar nas mais oportunistas alianças, na mais escancarada conciliação de classes, desde que, bem entendido, seja contra o fascismo e em defesa dos “valores democráticos”.

Indisposta a realizar uma análise fundamentada na correlação de forças entre as classes sociais, a esquerda brasileira considera mais cômodo ressuscitar o nazifascismo para explicar o fenômeno em questão. Essa incapacidade cognitiva se explica pelo simples fato de que, para compreender corretamente a complexidade da atual polarização política, é necessário perceber, antes de tudo, que o bolsonarismo descende diretamente do fracasso histórico da própria esquerda em organizar os trabalhadores e prepará-los para a guerra de classes. A ascensão do bolsonarismo só foi possível, em última instância, diante de uma classe trabalhadora em frangalhos.

O descenso do proletariado brasileiro inicia-se quando o Partido dos Trabalhadores, então uma vanguarda classista e de massas, abdica da sua condição de partido de classe para se tornar o partido da ordem. Deste ponto em diante, o PT não mais se dirigiria à classe trabalhadora, mas ao “povo”, aperfeiçoando com rara perícia a retórica demagógica que fala, simultaneamente, aos trabalhadores e aos capitalistas. Isso, ao proletariado, significou não só a perda real de sua vanguarda de classe, mas, o que é muito pior, a manutenção estelionatária do status de vanguarda a um partido da ordem que, mantendo o enganoso nome de “partido dos trabalhadores”, passou a usar de toda a sua influência no poder para deslegitimar o surgimento de novas vanguardas operárias e manter os trabalhadores e toda a esquerda brasileira cativos da sua política conciliatória. Aos trabalhadores do Brasil sucedeu então a mais trágica derrota que lhes poderia ocorrer: a perda da consciência de classe. Assim foi que, na sua derrota mais retumbante (a ascensão do petismo), os trabalhadores enxergaram uma grande vitória.

Ao alimentar como nenhum outro governo o mecanismo da dívida pública, o PT engordou as diferentes frações burguesas, aproximando-as em torno do rentismo, e lhes conferindo uma perigosa coesão interna. Das migalhas que caiam do banquete rentista, o PT consolidou sua influência sobre as camadas mais miseráveis da classe trabalhadora por meio dos seus programas de caridade, e firmou sua liderança sobre uma aristocracia sindical cada vez mais destacada das suas bases. Por fim, o PT conquistou com certa facilidade a hegemonia da produção teórica que haveria de orientar a militância de esquerda até os dias atuais, aproximando-a cada vez mais do liberalismo burguês por meio da promoção das teorias pós-modernas e das políticas identitárias. O estrago não poderia ter sido pior.

Dessa trágica passagem da esquerda pelo poder, resultou uma classe trabalhadora que não mais se reconhece como classe, que não mais se comporta como classe, e que, por conseguinte, não mais consegue representar a si mesma na arena das disputas políticas. Não conseguindo se representar, os trabalhadores saem em busca de quem os represente. Por isso, pode-se afirmar que o mais traiçoeiro feito dos governos do PT foi ter reduzido novamente o papel político dos trabalhadores ao de mera base eleitoral. Com os trabalhadores temporariamente fora do jogo político, o antagonismo central entre burguesia e proletariado cede lugar a uma pluralidade de antagonismos secundários que se revezam por ocupar o primeiro plano da cena política.

Inicia-se a partir de então uma disputa pelo Estado entre uma burguesia já estabelecida nacionalmente em torno do rentismo, e uma burguesia arrivista, radical, vale dizer, uma lumpenburguesiai, que se aproveita da crise política para abocanhar a sua parte do bolo. O que a esquerda liberal vê como a ascensão do fascismo, fundamenta-se, em última instância, na ascensão das frações inferiores da burguesia e desse agregado heterogêneo de agentes marginais e aventureiros que ela carrega junto consigo. Essa mistura de diferentes estratos sociais em transição ganha certa unidade de classe em torno de uma ideologia tão peculiar como seja o “bolsonarismo”. E essa burguesia emergente, com o apoio de amplos setores das classes subalternas, possui agora um lugar no balcão de negócios do Estado.

Uma imagem contendo pessoa, homem, frente, peixe

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Luciano Hang em uma das ações pró-Bolsonaro na Havan (Reprodução/YouTube)

Bolsonaro não passa de um efeito necessário deste fenômeno, da materialização ideológica desse compósito de classes que buscam seu lugar ao sol do capitalismo. À guisa de comparação, a distância material que separa a burguesia bolsonarista da burguesia liberal é a mesma que separa a Havan do Carrefour, a Riachuello das Lojas Americanas, a Record da Globo. Estamos falando, grosso modo, da disputa entre a burguesia tradicional do Leblon e a burguesia arrivista da Barra da Tijuca. A divisão intraburguesa essencial manifestada pelo bolsonarismo não se dá pela concorrência entre os diferentes ramos da economia (industrial, comercial, agrário e financeiro); até porque a coesão desses setores já é assegurada pela orientação rentista da atual fase do capitalismo dependente brasileiro. O bolsonarismo é antes a ideologia que dá coesão àquelas camadas emergentes da burguesia que percebem na obtenção do poder político uma maneira de aumentar seu poder de concorrência e, quem sabe, disputar a hegemonia econômica, política e ideológica com a burguesia liberal. Mas essa concorrência vulgar entre frações burguesas por meio do Estado, essa disputa superficial que concerne apenas a uma ínfima minoria da população, essa refrega de compadres que não abala em absoluto a coesão geral das diferentes frações em torno do rentismo, é transmitida às maiorias como se fosse o mais crucial antagonismo da nossa sociedade, como se fosse a própria guerra entre civilização e barbárie.

A ascensão dessas frações subalternas da burguesia arrasta consigo uma pequena burguesia radicalizada pela crise, mas também toda espécie de vigaristas, escaladores sociais, e refugos das camadas intermediárias da sociedade. Líderes religiosos, chefes de milícia, líderes religiosos que são chefes de milícia, juízes semianalfabetos, promotores evangélicos, fazendeiros escravagistas, delegados corruptos, comerciantes emergentes, militares nostálgicos da ditadura, monarquistas nostálgicos da monarquia, ideólogos conservadores, parlamentares do baixo-clero, integralistas intempestivos, caciques e coronéis, “pequenos empreendedores”, e todo tipo de oportunistas – eis a essência disforme do grupo social cuja ascensão é traduzida pela eleição de Bolsonaro.

Homem de terno e gravata e pessoas ao fundo

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Faces do bolsonarismo: o juiz, o promotor, o “filósofo”, o general, o pastor.

O próprio capitão reformado foi oportunista o suficiente para ir incorporando aos poucos em seu discurso as ideologias características dos grupos com quem foi firmando aliança. Com uma mistura de fundamentalismo religioso, militarismo autoritário, anticomunismo, e pitadas de teorias olavistas da conspiração, o discurso bolsonarista não só foi bem-sucedido em exercer uma função integradora dentro deste agregado social, como a sua aparente radicalidade logrou alcançar boa parte de uma classe trabalhadora à deriva, estrangulada pela crise econômica.

A popularidade de Bolsonaro depende essencialmente da ampla adesão ao seu discurso antissistema por parte de grande parcela da classe trabalhadora, sobretudo daquela parcela que compõe o imenso exército industrial de reserva. Por outro lado, sua força política dentro do governo depende fortemente do apoio crítico da burguesia rentista, que, apesar de repudiar a ideologia do bolsonarismo, enxerga na sua ascensão ao poder uma maneira de tocar em acelerado passo a sua agenda ultraliberal.

Ora, é certo que esses “novos-ricos” não compartilham da tolerância sexual, religiosa e cultural da burguesia liberal. Não compartilham, os arrivistas, do seu ar cosmopolita, da sua predileção pelos valores republicanos, ou da sua liberalidade com respeito à pauta dos costumes. No entanto, ali onde concordam os burgueses, novos ou veteranos, é onde seus interesses se chocam com os da classe trabalhadora. O ultraliberalismo une todas as frações burguesas contra o proletariado. Essa última peça ideológica do discurso bolsonarista viria junto com Paulo Guedes no pacote que firmou a conciliação entre a lumpenburguesia bolsonarista e a burguesia liberal. Muito embora essa conciliação seja recheada de contradições, encenadas semanalmente pelos embates entre Bolsonaro e Rede Globo, há uma profunda concordância entre as diferentes frações burguesas no que diz respeito à política econômica de Paulo Guedes, isto é, o aprofundamento do subdesenvolvimento e da dependência do país. Neste momento, os trabalhadores precisam ter clareza de que a disputa entre o campo bolsonarista e o campo liberal deixa intocada a coesão burguesa em torno do rentismo.

Homem de terno segurando microfone

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Presidente do Itaú, Candido Bracher, diz que Bolsonaro não atrapalha reformas, e que desemprego permite crescimento sem pressão da inflação. (Fonte)

E o que faz a esquerda diante disso? Alerta os trabalhadores de que há uma coesão burguesa no poder que declarou guerra aos trabalhadores? Não, a esquerda diz aos trabalhadores que estamos em luta contra o fascismo. Mas o trabalhador não vê nenhum fascismo; seu inimigo é de outra ordem. É a longa jornada de trabalho, é o baixo salário, é a instabilidade e a insegurança, é a exaustão física e mental, são as contas a pagar, e a falta de tempo para qualquer lazer, são as dívidas, é o desemprego, é o desalento, é a doença, é a fome; em suma, é a precariedade material, é a exploração, é o capitalismo. Enquanto o núcleo racional (leia-se ultraliberal) do seu governo avança com facilidade sobre os trabalhadores, Bolsonaro e seu clã alimentam diariamente a hegemonia das causas identitárias dentro da esquerda liberal. Com suas pataquadas e seus discursos chocantes, os bolsonaristas fortalecem na esquerda o domínio da política de causas em detrimento da política revolucionária. A esquerda liberal, por sua vez, sempre que opera suas lacrações e sarcasmos, os seus escrachos e escatologias, suas sátiras e deboches, ela apenas incendeia e fortalece as bases bolsonaristas. Por trás dessa luta ideológica entre o bolsonarismo e a esquerda liberal – luta que se retroalimenta semanalmente e que beneficia os políticos de ambos os campos – o governo segue com seu rolo compressor sobre os trabalhadores.

O diagnóstico da “ameaça fascista” erra, em última instância, por não levar em conta o ultraliberalismo como orientação dominante do atual governo. Não pode haver um fascismo ultraliberal. O governo Bolsonaro não conseguirá manter o apoio das camadas populares se insistir em ser o despachante dos furiosos ataques da burguesia contra os trabalhadores. Não sendo capaz de sustentar a popularidade do seu discurso com políticas públicas em prol da classe trabalhadora, o seu fascismo à brasileira é incapaz de se realizar plenamente. Em seu caminho se encontra a lei da superexploração da força de trabalho.

Nesta conjuntura, o que pode representar a consigna da civilização versus barbárie, da democracia versus fascismo, senão a disputa inessencial entre frações burguesas que, em última instância, mantém intocada a lógica do capitalismo dependente brasileiro? Nesta era de antagonismos secundários, as vanguardas revolucionárias da classe trabalhadora têm o dever de resgatar a centralidade do antagonismo entre capital e trabalho, e da guerra de classes entre burguesia e proletariado. Por isso, qualquer conversa sobre coalizões eleitorais no campo da esquerda só pode ser consequente se, ao analisar a composição de classe que sustenta os partidos em disputa, defender uma plataforma independente para a classe trabalhadora, e um programa revolucionário que exponha as diferenças que a separa das frações burguesas e alargue o fosso que divide os interesses das diferentes classes.

¹Economista e Doutor em Planejamento Urbano e Regional

²Pedagogo e Doutorando em Filosofia

³A imagem de destaque é uma reprodução Caçal Regly Foc (Flickr)

Notas:

1. O significado original do adjetivo “lúmpen” designa um comportamento aventureiro, velhaco, errante, improdutivo. Na obra 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Marx utiliza o adjetivo para qualificar aquele heterogêneo grupo social que ascende acompanhada da ascensão do bonapartismo. O lumpenproletariado designaria então aquelas frações das classes subalternas que ocupam a base do exército industrial de reserva, e que, por sua precária condição material, sua total ausência de consciência política, e sua baixa capacidade organizativa, se tornam facilmente cooptáveis pelo discurso populista de Bonaparte. Já a lumpenburguesia a que nos referimos aqui, tendo em vista especificamente o momento histórico atual do capitalismo dependente brasileiro, se refere àquele agregado de elementos errantes, aventureiros e improdutivos, aqueles refugos que habitam os interstícios entre as camadas inferiores da burguesia e as camadas superiores dos estratos médios, e que, com a eleição de Bolsonaro e a abertura de novas cadeiras no balcão de negócios do Estado burguês, arremetem-se radicalmente sobre a arena política a fim de receber sua parte do leão.