A utopia da cidade pós pandemia
Boletim nº 25 – 18 de junho de 2020
Por Utanaan Reis e Bruno Duarte¹
O amor que a rua dá só quem vive a rua sente (Guarnier)
Diante da pandemia da Covid-19 muitos analistas políticos e intelectuais de renome têm se debruçado sobre como será a sociedade pós-pandemia. Alguns com certo tom de otimismo, como Slavoj Žižek (2020), julga que a pandemia pode afetar o sistema capitalista; enquanto outros como José Luis Fiori[1], acredita no aprofundamento do capitalismo e das relações de poder. Todos os debates propostos, seja na totalidade do capitalismo ou em temas no varejo: meio ambiente, educação, saúde, etc. nos permite, hoje, repensar o modelo de sociedade em que vivemos e qual a sociedade que almejamos com o fim da pandemia. Nesse sentido, qual modelo de cidade queremos?
Circula nas redes sociais diversas frases rememorando momentos antes da pandemia: carnaval, jogos de futebol, festas, encontros em bares, ocupações artísticas, manifestações, brincadeiras infantis, etc. o que evidencia que a cidade é palco da vida, que nela não se reproduz apenas a força de trabalho, mas também as pessoas se reproduzem socialmente, vivem, ocupam, lutam e morrem. No entanto, as ruas da cidade progressivamente se tornaram locais de passagem e deixaram de ser locais de encontro e de disseminação de cultura.
Pensemos sobre o Rio de Janeiro, seu processo de internacionalização, imposto desde os anos sessenta, acelerou o ritmo da funcionalização e desfuncionalização de atividades e espaços, visto que o ritmo deixa de ser gerido pela própria cidade e passou a ser gerido pela competitividade mundial. Com essa competição se fez necessário aumentar a produtividade desses espaços urbanos, logo há uma adequação da cidade às necessidades das finanças dominantes, para isto o planejamento urbano é chamado para a ação. Porém, o que ocorre quando o planejamento é usado para buscar uma solução para as dificuldades do capital é um enriquecimento planejado pelos que enriquecem e junto disso um empobrecimento planejado para os outros (Santos, 2009).
O Rio passou por isso na administração de Pereira Passos e seu bota-abaixo, mas é durante o período ditatorial, quando o processo de metropolização da cidade avança, com políticas de remoção, que a dominação das ruas carioca irá se consolidar. Além disso, tivemos mais recentemente os megaeventos que promoveram remoções, gentrificação, especulação imobiliária, construções faraónicas para benefício do capital da construção pesada, assim como o capital imobiliário que teve as áreas no entorno supervalorizadas, além de capitais vinculados ao setor de transportes que tiveram rodovias construídas, sob a expulsão de moradores de suas residências[2].
Não é à toa que grande parte das cidades são construídas pelos próprios moradores, que segregados espacialmente, excluídos da metrópole, não possuem outra alternativa a não ser ocuparem áreas – em condições péssimas de vida, como fica claro na construção do que hoje é conhecido como Complexo da Maré, com uma parcela da população sendo oriunda das remoções de áreas de grande potencial de lucro para o capital imobiliário no final dos anos sessenta e início dos anos setenta[3]. Essas condições deficientes em que vivem a maioria dos trabalhadores em solo urbano contribuem para o rebaixamento dos salários, como diz Maricato (2013, p. 23), trata-se “de uma força de trabalho barata, segregada e excluída da cidade legal”.
O aprofundamento do processo de mercantilização da cidade veio com a fase neoliberal do capitalismo. que se coloca como “alternativa” à crise de acumulação dos anos 1970, impondo de forma explícita e contínua a privatização dos serviços públicos, destruição de direitos e toda uma construção ideológica do padrão de consumo. A cidade vira espaço funcional, prioritariamente destinado a acumulação e a circulação de capital e detém estratégias de controle das massas.
Então, a cidade além de ser onde as pessoas vivem e ser um local de negócios, nela também há “um conjunto de capitais que têm interesses específicos na produção do espaço urbano” (MARICATO, 2015, p. 22) como o capital financeiro imobiliário ou o capital de construção e edificações, por exemplo. Desta maneira, ela se apresenta como um local que representa e manifesta interesses, que exclui e tutela grande parte da população das decisões políticas, bem como de seus espaços físicos.
Visando realçar alguns aspectos das cidades-mercadorias peguemos, mais uma vez, o Rio de Janeiro. Um dos aspectos recentes ocasionados pelos megaeventos foi a reforma do Maracanã (agora arena multiuso, no qual estádios viraram shoppings com torcedores padronizados e comportados), que readequou o “Maraca” para os ditames do consumo e seletos a uma pequena classe social, no qual os ingressos tornaram-se extremamente caros. Talvez o fato mais emblemático da exclusão explícita dos mais pobres dos estádios foi o fim de sua “geral”[4].
Outro problema ocasionado também devido a necessidade de varrer o centro da cidade para a especulação imobiliária, mas não só, é a mobilidade urbana carioca[5] que, além dos altos custos do transporte, restringe à classe trabalhadora o deslocamento de suas casas ao trabalho e vice-versa sem que esta consiga utilizar os transportes para o lazer que está, fundamentalmente, nas áreas centrais da cidade. Como bem enfatizou Milton Santos “o jovem vive um exílio na periferia”.
Exílio na periferia que é prolongado com as condições adversas que são impostas para o florescer de atividades culturais e de lazer na periferia e em torno do centro da cidade, condições adversas como a militarização do território que, com a prerrogativa máxima de defender a propriedade privada e assegurar o turismo, intensificam à guerras às drogas e o uso da força para controle da criminalidade. O sociólogo camaronês Achille Mbembe cunhou de necropolítica o poder de ditar quem deve viver e quem deve morrer, ou seja, o Estado empreende um genocídio da população pobre, periférica e em sua maioria negra para assegurar os direitos e aspirações da burguesia.
Por fim, um exemplo emblemático do impacto e da importância de pensarmos a cidade é o Carnaval, que passou de um processo de encontro entre o povo e a rua para se tornar um encontro entre o mercado e a rua, excluindo o povo. Isso fica claro nos desfiles das escolas de samba, que desceram o morro para as ruas da cidade e aos poucos, influenciado pelas reformas urbanas, foi sendo absorvido pela indústria cultural até se tornar um evento fechado para poucos. Neste século, o mesmo caminha para acontecer com os blocos de rua, que já estão sendo domados pelo poder público com horários, locais estabelecidos e normas a serem seguidas.
Em suma, precisamos pensar outra forma de cidade – mesmo que isso represente outra forma de sociabilidade. Para tanto, no curto prazo, reativar às utopias da cidade e repensá-la de forma radical e criativa é fundamental. Assim, por exemplo, aproveitemos a solidariedade que a pandemia proporciona com o desejo de ocupar novamente as ruas para colocar na ordem do dia a democracia e a participação popular nas decisões sobre as cidades.
É necessário fortalecer as mídias alternativas que sublinham os conflitos nas cidades e os diversos movimentos que nelas constroem possibilidades ao modelo mercadológico. Também é preciso que se ocupe as ruas para a construção de um planejamento urbano inclusivo, com o intuito de resolver problemas de saneamento, segurança urbana, moradia e que em última instância a população decida os rumos do fundo público ao invés deste ser direcionado para reprodução de capital.
“No fim das contas, é urgente que a cidade viva sempre o sentido da rua como um espaço de convivência e desaceleração do cotidiano”(SIMAS, 2020, p. 83), da festa, das brincadeiras de rua e de imaginação, pois senão do que adianta rememorar momentos de alegria se cada dia mais a cidade fica restrita a quem pode pagar.
¹Graduados em Ciências Econômicas pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Pesquisadores do Coletivo Marxista da Rural (MAR/UFRRJ).
Notas:
1. Prognóstico é ruim e vai piorar, diz Fiori. Disponível em: http://tiny.cc/4sg5pz
2. Remoção de famílias para obras da Copa e das Olimpíadas gera polêmica. Disponível em: http://tiny.cc/amg5pz
3. Ver o documentário “Mataram meu gato”, que retrata as remoções nas favelas cariocas no final dos anos 60 a partir de relatos de membros da G.R.E.S Gato de Bonsucesso. Disponível em: http://tiny.cc/hgg5pz
4. Ver o filme “Geraldinos”, que retrata o fim da geral e o avanço do processo de exclusão e elitização no Rio de Janeiro. Disponível em: http://tiny.cc/ofg5pz
5. Ouvir o samba-enredo da Em Cima da Hora, do ano de 1984, relatando o problema da mobilidade urbana na cidade do Rio, problema este que persiste até hoje. Disponível em: http://tiny.cc/pig5pz
Referências:
MARICATO, E. É a questão urbana, estúpido! In: HARVEY, D; MARICATO, E; et al. Cidades rebeldes, São Paulo, Boitempo, 2013.
MARICATO, E. Para Entender a Crise Urbana. São Paulo: Expressão Popular, 2015.
SANTOS, M. Por Uma Economia Política da Cidade: O caso de São Paulo. São Paulo: EDUSP, 2009.
SIMAS, L. A. O corpo encantado das ruas. – 4. Ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.
ŽIŽEK, S. et al. Um golpe tipo ‘KILL BILL’ al capitalismo. Coronavírus e a luta de classes. Terra sem Amos: Brasil, 2020.