A vida cotidiana em tempos de pandemia: entre o isolamento e o excesso de convivência, sob uma perspectiva de gênero

Boletim nº 20 – 14 de maio de 2020

 

Por Maria Abreu¹

 

Em tempos de COVID-19, quero chamar atenção para aspectos da vida cotidiana que se evidenciaram de tal forma que, mesmo existentes desde sempre, passaram a tomar conta de nossa rotina. O primeiro aspecto a observar é o do próprio confinamento na vida doméstica e o seu impacto para homens e mulheres. O segundo é o papel das instituições de cuidado e de educação infantil na vida não só das crianças, mas de todas as famílias. E o terceiro é o efeito nas relações afetivas principalmente heterossexuais e o consequente aumento da violência contra a mulher.

As breves reflexões enunciadas aqui são feitas a partir de uma perspectiva de classe razoavelmente privilegiada, que provavelmente é semelhante à dos leitores deste texto, em maior ou menor amplitude. Se há algo que podemos aprender dessa experiência pandêmica, é que a reprodução de nossa vida diária e a de todas as pessoas – com diversos graus de dificuldade – está longe de ser algo banal. Ela acentua desigualdades. E, acima de tudo, percebemos, mais cedo ou mais tarde, sua primordial importância. O texto é um pedido para que procuremos soluções para que essa vida, em condições normais, seja menos pesada para as mulheres e que esse tipo de reflexão não seja levada a sério somente em momentos de desamparos mais profundos do que os comumente existentes.

A vida doméstica, essa esquecida que, agora, teima em não nos deixar em paz

No mundo convencional do trabalho formal ou informal, as pessoas acordam e saem de suas casas para suas atribuições diárias. Pessoas sozinhas têm, mais do que nunca, de cuidar de si. Casais ficam em casa. Se estes têm uma rotina de trabalho informal, desesperam-se pela falta de renda[i], se possuem trabalho formal, passam a ter uma jornada dupla ou tripla de trabalho, conforme possuam filhos ou não.

Em uma rotina normal de trabalho, sem isolamento social, parte das famílias, com condições financeiras para isso, delegam seu trabalho doméstico total ou parcialmente a outras pessoas, geralmente mulheres[ii]. O trabalho de quem delega é um trabalho residual, de administração da casa, visto como complementar ao principal, que garante a remuneração e o sustento familiares. Nessa configuração, o trabalho daquelas pessoas – em sua maioria mulheres – que recebem a delegação constitui um exercício coletivo de deixar sua própria casa e filhos aos cuidados de vizinhos, de parentes, de filhos mais velhos cuidando mais novos, ou outros arranjos. Estes arranjos se configuram de maneira intensificada em sociedades extremamente desiguais e com insuficiência de instituições de cuidado. Em relação ao cuidado dos filhos, há uma delegação do Estado para as famílias, que por sua vez se organizam de acordo com suas capacidades financeiras e de construção de redes sociais de suporte e apoio ao cuidado.

Em tempos de pandemia, essa rotina se altera drasticamente. Ainda que o Estado não cumpra sua parcela de responsabilidade em relação ao cuidado infantil, a impossibilidade de convivência coletiva das crianças faz com que todas as pessoas sejam afetadas.

Pessoas sozinhas têm de cuidar da casa, trabalhar remotamente e torcer para não ficarem doentes, pois provavelmente haverá dificuldades em encontrar – em um contexto de isolamento e com os hospitais todos voltados para o atendimento dos quadros e suspeição de contaminação pelo COVID – 19 -, ajuda fácil ou ao alcance de uma mensagem de whatsapp a alguma pessoa conhecida ou amiga.

Casais ficam em casa, em uma rotina de convivência intensa talvez nunca antes vivenciada. Não há a quem delegar o trabalho doméstico e terão de, se empregados, além de exercer seus trabalhos remotos, realizar todo o trabalho doméstico, que é intensificado pela circulação das pessoas na própria casa e também pelos hábitos de higiene mais severos a serem tomados.

Neste ponto, provavelmente se inicia um conflito. Se cada um tem seu emprego remoto, como será dividido o trabalho doméstico? Essa é uma pergunta feita já há muito pelas ciências sociais e, nestes tempos de pandemia, o conflito é apenas escancarado[iii]. Nas convenções de gênero comumente adotadas pelos casais heterossexuais no mundo, a pactuação da divisão do trabalho doméstico tende a ser conciliatória e não conflitiva e, nessa conciliação, a mulher acaba assumindo a maior parte da responsabilidade pelo trabalho, especialmente os mais rotineiros.[iv][v] Tal conciliação é apontada por estudos empíricos desde 2007 por Helena Hirata e Daniela Kergoat e confirmada em 2014 em estudo desenvolvido por Luana Passos de Sousa e Dyeggo Rocha Guedes, este inclusive apontando perguntas substantivas para estudos futuros. Essa realidade descrita assume matizes distintos conforme a renda e a cor/raça das pessoas envolvidas, que não serão profundamente exploradas aqui.

Essa divisão de trabalho não se restringe ao trabalho doméstico, mas se expande por todo o trabalho remunerado, que acabará impactando na estrutura de salários e em outras desigualdades de gênero[vi] – cuja demonstração encontra apoio em farta literatura- assunto que não será abordado aqui.

De qualquer forma, estando homens e mulheres sobrecarregados em cuidar da casa, de sua higiene, de sua saúde e com a responsabilidade mantida em seu trabalho remoto, parece certo afirmar que as mulheres, de uma maneira geral, encontram-se agora, ainda mais sobrecarregadas. As mulheres de classe média, com uma jornada tripla. As mulheres de classe baixa com todas as suas preocupações de reprodução e de sobrevivência material, com a perda de renda.

Homeschooling

A situação descrita anteriormente se agrava, se a ela acrescentarmos filhos em idade de frequentar instituições de cuidado ou de idade escolar. Em relação aos mais novos, a demanda pelos cuidados recai predominantemente sobre a mãe. No caso dos mais velhos, não só o cuidado, mas as demandas escolares para as atividades em casa acabam envolvendo também as mães no desenvolvimento dessas atividades e também da criatividade para inventar outras atividades de recreação que seriam de responsabilidade da instituição educacional. Lembremos que instituições de cuidado e escolares são também, se não principalmente, instituições de socialização. Adotar um termo estrangeiro e restringir a responsabilidade escolar à transmissão desses conteúdos a serem apreendidos por meio digital deveria ser uma medida para amenizar a necessidade de reposição de aulas, e não a substituição completa da responsabilidade dessas instituições.

Nessa situação a jornada de pais e mães – sobretudo das mães, já podemos reforçar sem cautela –, se empregados, é tripla: trabalho remoto, cuidados com a casa e com os filhos, e atividades de professores/educadores. Se o vínculo de trabalho for informal, a situação provavelmente é de desespero.

O que essa situação coloca em evidência, além da sobrecarga das mães no trabalho doméstico e cuidado com os filhos, é a necessidade precípua de instituições estatais que se responsabilizem pela atividade de cuidado dos filhos. Atualmente, pode-se dizer que o ensino básico foi universalizado, mas as redes de instituições de cuidado – creches – e de ensino infantil estão longe de atender as necessidades das famílias. Além disso, as profissionais dessas instituições de cuidado e de ensino – em sua maioria mulheres, em razão da divisão sexual do trabalho, rapidamente apontada acima -, na rede pública, encontram salários e condições de trabalho pouco compatíveis com a importância de suas atividades[vii]. Essa estrutura pode estar relacionada à mentalidade dos proprietários de redes particulares de ensino fundamental, que acreditam ser possível delegar a função de educadores aos pais.

Se, na configuração sem pandemia, as famílias já são sobrecarregadas com a omissão do Estado de sua responsabilização pelos cuidados com os filhos, na situação em que estamos vivendo, as famílias sairão, no mínimo, exauridas.

Violência doméstica

Aqui, é necessário enfatizar é que a casa – se dividida com um cônjuge ou com alguma pessoa que exerça algum tipo de poder patriarcal, que coloque a mulher em situação de vulnerabilidade -, não é um lugar seguro para a mulher[viii].

Com o excesso de convivência e de responsabilidades descritas acima, essa insegurança pode se agravar mesmo em espaços em que situações de violência não seriam imaginadas. Essa situação foi antecipada por instituições que possuem histórico de acompanhamento de dados sobre violência doméstica[ix]. Negociar a divisão dos trabalhos domésticos  pode não resultar na conciliação que historicamente foi desempenhada pelas mulheres, inclusive porque em muitos casos os cônjuges estarão realizando o seu trabalho de forma remota, em casa. O estresse, a ausência do Estado no amparo dos filhos, o sexismo, machismo e até mesmo despreparo do aparelho estatal para lidar com as particularidades das situações de violência, bem como a insegurança adicional em relação à própria saúde e à saúde dos filhos, que uma pandemia geral provoca, podem tornar o sentimento de desamparo tão grave quanto a própria violência. Se a escolha entre ficar com um marido violento e partir para uma jornada sozinha ou com filhos muitas vezes é um dilema incontornável, nesse momento pode parecer uma situação de escolha entre a submissão intolerável e o completo desamparo.

Junto a este novo dilema, também se evidencia a insuficiência da rede de atendimento à mulher e o despreparo para lidar com a violência também direcionada às crianças. Tal situação não é exclusividade do contexto brasileiro, mas em nossa organização institucional, a necessidade de formular soluções para que os conflitos sejam resolvidos de forma efetivamente protetiva é urgente[x][xi].

Em São Paulo, no Rio de Janeiro e em outras cidades do Brasil, instituições especializadas de atendimento jurídico e social às vítimas de violência doméstica por whatsapp[xii].

De qualquer forma, resta a exitosa campanha de denúncia dessa violência que não cessa e se intensifica na medida em que qualquer restrição à liberdade se configura. Em casos de violência doméstica, LIGUE 180.

¹Maria Abreu é Professora Adjunta do Programa de Graduação em Gestão Pública (GPDES), IPPUR/UFRJ e colabora com a Revista Escuta.

²Imagem obtida a partir de ilustração colorida de Cornel Urbino. Disponível aqui.

³Para ler o texto publicado na íntegra, acesse aqui.

Notas:

[i]https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52131989

[ii]https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=PVfIALGKTFcC&oi=fnd&pg=PA263&dq=helena+hirata+jap%C3%A3o+fran%C3%A7a+brasil+trabalho+dom%C3%A9stico&ots=hClhdxzxQG&sig=NSZ-7y6JbvBKmWI4PZX6SPhHr0A#v=onepage&q=helena%20hirata%20jap%C3%A3o%20fran%C3%A7a%20brasil%20trabalho%20dom%C3%A9stico&f=false

[iii]https://www.huffpostbrasil.com/entry/maes-isolamento-trabalho_br_5e824d85c5b603fbdf4795b5

[iv] HIRATA, Helena  and  KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cad. Pesqui. [online]. 2007, vol.37, n.132 [cited  2020-04-08], pp.595-609. Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742007000300005&lng=en&nrm=iso&gt;. ISSN 0100-1574.  https://doi.org/10.1590/S0100-15742007000300005.

[v]http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142016000200123&script=sci_arttext&tlng=pt

[vi] BIROLI, Flávia. Divisão Sexual do Trabalho e Democracia. Dados [online]. 2016, vol.59, n.3 [cited  2020-04-08], pp.719-754. Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582016000300719&lng=en&nrm=iso&gt;. ISSN 0011-5258.  https://doi.org/10.1590/00115258201690.

[vii]http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-40602019000600263&script=sci_arttext

[viii] Electronic Document Format(ISO)

BLAY, Eva Alterman. Violência contra a mulher e políticas públicas. Estud. av. [online]. 2003, vol.17, n.49 [cited  2020-04-28], pp.87-98. Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142003000300006&lng=en&nrm=iso&gt;. ISSN 0103-4014.  https://doi.org/10.1590/S0103-40142003000300006.

[ix]https://nacoesunidas.org/chefe-da-onu-alerta-para-aumento-da-violencia-domestica-em-meio-a-pandemia-do-coronavirus/

[x]https://www.conjur.com.br/2020-abr-24/direito-pos-graduacao-combate-violencia-domestica-tempos-pandemia

[xi]http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/597750-isolamento-social-em-tempos-de-pandemia-torna-a-casa-ainda-mais-perigosa-para-a-mulher-entrevista-especial-com-jacqueline-pitanguy

[xii]https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/04/25/whatsapp-vira-arma-contra-violencia-domestica-em-tempos-de-pandemia.htm