Coronavírus e as cidades brasileiras em estado grave
Boletim nº 13 – 26 de março de 2020
Por Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro¹
Segundo informações publicadas por Cíntia Alves no Jornal GGN no dia 17 de março, estudos realizados pela Universidade de Oxford¹ projetam que o Brasil poderá chegar a mais de 470 mil mortes resultantes da combinação da taxa de contaminação pelo coronavírus e da fragilidade do sistema de saúde pública, sucateado após três anos de desmantelamento do sistema nacional de proteção social pelos governos ultraliberais Temer e Bolsonaro. A velocidade de partida da difusão do vírus aponta para um padrão semelhante ao que vem ocorrendo nos países mais problemáticos, como indica o gráfico abaixo.
Na maioria dos países ocidentais, o número de casos vem aumentando em cerca de 33% ao dia, um sinal de que outros países poderão enfrentar o mesmo desafio que a Itália em breve. Fonte: John Burn-Murdoch.
Atravessamos, portanto, um momento grave que desperta as nossas históricas apreensões e dúvidas sobre o futuro da própria sociedade brasileira, diante dos claros sinais emitidos pelas nossas doentes cidades em estado grave.
Ao mesmo tempo, perdemos os preciosos meses de janeiro e fevereiro no tratamento leviano pelas autoridades políticas que hoje controlam o sistema de vigilância sanitária do país. Não preparamos a população, não aparelhamos o sistema de saúde e foram difundidas narrativas que minimizaram a gravidade desta pandemia. Tudo por um cálculo político. Era preciso não difundir notícias negativas em um ambiente já muito pessimista em razão da erosão do discurso triunfante da retomada do crescimento econômico. Culminando com a insana atitude do Presidente em convocar e participar da manifestação do dia 15 de março. Como escreveu Cíntia Alves no post mencionado: “mata meio milhão, mas não perde a eleição”!
Felizmente a mobilização dos competentes especialistas da saúde coletiva começou a acordar a população e a grande mídia, obrigando as autoridades a mudarem o discurso e adotarem medidas consequentes. Até o grupo ultraliberal dos financistas que se apoderam da gestão da economia tiveram que mudar sob a pressão dos fatos. Estão sendo obrigados a abandonarem a atitude chantagista e oportunista de impor ao Congresso (e à sociedade) as inúmeras reformas ultraliberais contracionistas de aprofundamento da destruição do nosso sistema de proteção social – muito embora as medidas anunciadas pelo Ministro Paulo Guedes sejam simulacros das possíveis ações do Estado para combater a pandemia e seus efeitos no sistema de saúde e na economia. As autoridades e a grande mídia começam então a tratar de forma mais consequente a catástrofe social que se desenha. A narrativa agora é de isolamento social e proteção dos vulneráveis.
Mas aí está a prova histórica da sociedade brasileira de que nos falava Celso Furtado. Seremos capazes de contornar esta ameaça e sairmos fortalecidos como Nação? Enfrentá-la implica em retomarmos o compromisso social de solidariedade, proteção e reformas sociais que germinaram nos anos 1980, se traduzindo na Constituição de 1988 – nosso primeiro real Contrato Social – e experimentado em políticas públicas nos anos do ensaio neodesenvolvimentista. E, simultaneamente, abandonarmos o enlouquecido projeto ultraliberal de transformar o Brasil em uma sociedade de mercado como versão radicalizada da experiência chilena do período Pinochet.
O campo desta prova societária será as nossas cidades e, mais centralmente, os territórios populares disseminados nas metrópoles. Como seus habitantes poderão praticar a interação com distanciamento social vivendo em moradias hiperadensadas, nas quais em média cinco pessoas coabitam casas com apenas três cômodos? Como evitar o contato de proximidade em espaços de vizinhança hiperadensados? Como resistir à onda de circulação do coronavírus vivendo em espaços insalubres resultantes do precário sistema de saneamento básico? Como lavar as mãos sistematicamente se ao abrir a bica pode não haver água?
Como vão sobreviver 25% da população econômica ativa que está no desemprego ou no subemprego, vivendo da “viração”, da “uberização” do trabalho, portanto, obrigados a circularem e frequentarem os espaços públicos para ganhar hoje o pão do amanhã? Como disse uma trabalhadora doméstica em depoimento à TV Cultura: “Tenho que escolher entre correr o risco da infecção circulando em transportes apinhados de gente, mas ganhando o sustento da família, ou ficar em casa e correr o risco de morrer de fome”.
Mas, o medo da experiência limite de ameaça à saúde e à vida pode unificar a nossa cidade estruturalmente partida. O sentimento de risco difuso poderá gerar a empatia com aqueles que vivem cotidianamente as catástrofes da violência, das enchentes, dos deslizamentos, da vulnerabilidade da saúde, da insalubridade, ou seja, da dor física e moral de ser pobre e abandonado. De serem colocados em distanciamento do mundo social abastado e dos bens públicos necessários à vida em uma sociedade urbana. É possível que superemos este momento fortalecendo a percepção de que a vida de cada de um nós depende da qualidade dos laços sociais que mantemos uns com os outros, que os problemas da precariedade urbana que atinge quase 70% dos habitantes das nossas metrópoles sejam um desafio coletivo, que envolve também aqueles que desfrutam do bem-estar dos bairros protegidos por muros materiais ou sociais. Vamos acabar descobrindo que não há saída para restaurar as condições da reprodução da vida que não passe por soluções coletivas e estas somente se viabilizam se aceitarmos repartir um pouco a renda, a riqueza, as oportunidades e o bem-estar, ou seja, se deixarmos de ser uma sociedade que naturalizou históricas e extremas desigualdades. Para tanto, temos que desarmar os dispositivos que vêm difundindo e legitimando a razão neoliberal, seu espírito individualista e seu incentivo a adoção de uma cultura de precificação dos laços sociais.
Sinais estão ocorrendo nesta direção. Agora o noticiário da grande mídia claramente defensora do projeto ultraliberal do governo Bolsonaro-Guedes abre espaço para mostrar cenas e fatos que tornam visíveis as nossas desigualdades sociais. Claro, na medida em que a pobreza ameaça a sobrevivência da “Elite do Atraso”. Agora cada morte de um pobre não pode deixar de ser vivido como a possibilidade da morte de um rico. Tornar-se-á mais difícil em nossas cidades o desenrolar da rotina da vida social mantendo as práticas de distanciamento social pela segregação, o que permite as mazelas urbanas serem representadas como problema do “outro” pertencente a “outro mundo social”.
A história mostra que certos eventos densos e disruptivos, como o que nos assola agora, são capazes de renovarem sentimentos coletivos e de criarem novas disposições nas sociedades quanto à necessidade de instituições que mantenham laços de solidariedade social, compromissos de proteção social pela experiência de mobilização que constitui um “nós” e o sentido de futuro. Com efeito, vários estudos mostram como a preparação e a participação na Segunda Guerra Mundial em várias sociedades ocidentais significou a experiência de um Warfare que acabou criando as bases de um Welfare. Por exemplo, a interessante coletânea Warfare and Welfare. Military Conflict and Welfare State Development in Western Countries, publicada pela Oxford University Press e editada por Herbert Obinger, Klaus Petersen e Peter Starke. O nexo entre Warfare e Welfare é bem documentado neste estudo, embora com trajetórias distintas em função dos diferentes contextos nacionais, mas os autores são convergentes em apontarem que o esforço de guerra legitima de maneira profunda e radical as novas prioridades nacionais que devem orientar o funcionamento das sociedades e os objetivos das políticas públicas. O traço comum desta mudança é a adoção do princípio da coesão social como valor de sustentação do interesse geral.
“Em termos de efeitos, argumentamos que a guerra desdobrou seu impacto na política social por dois canais. O primeiro refere-se aos impactos da guerra no lado da demanda do sistema político. As crueldades e a destrutividade da guerra criaram uma enorme demanda por proteção social que inevitavelmente exigia ação do governo. (…) O segundo canal inclui vários impactos da guerra no lado da oferta do sistema político. A guerra de massas mudou a política e as configurações institucionais de uma maneira que facilitou o desenvolvimento do estado de bem-estar no período pós-guerra” (OBINGER; PETERSEN; STARKE, 2018, p. 24 e 25, tradução nossa).
Será que a maneira como vamos atravessar esta pandemia da COVID-19 poderá ter papel semelhante? Será que ela poderá ser a prova histórica para concluirmos a construção do Brasil como Nação que mencionava Celso Furtado em um dos seus últimos e penetrantes ensaios?
“Em meio milênio de história, partindo de uma constelação de feitorias, de populações indígenas desgarradas, de escravos transplantados de outro continente, de aventureiros europeus e asiáticos em busca de um destino melhor, chegamos a um povo de extraordinária polivalência cultural, um país sem paralelo pela vastidão territorial e homogeneidade linguística e religiosa. Mas nos falta a experiência de provas cruciais, como as que conheceram outros povos, cuja sobrevivência chegou a estar ameaçada. E nos falta também um verdadeiro conhecimento de nossas possibilidades, e principalmente de nossas debilidades. Mas não ignoramos que o tempo histórico se acelera, e que a contagem desse tempo se faz contra nós. Trata-se de saber se temos um futuro como nação que conta na construção do devir humano. Ou se prevalecerão as forças que se empenham em interromper o nosso processo histórico de formação de um Estado-Nação” (FURTADO, C. Brasil: A construção interrompida. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1992: 35).
¹Coordenador Nacional do Observatório das Metrópoles.
Notas:
1. Trata-se de um preprint, ou seja, um estudo que ainda não foi revisado por outros pesquisadores, nem validado por uma publicação científica, mas que é antecipado para acelerar a circulação de informações de interesse público em emergências. Fonte: https://osf.io/fd4rh/?view_only=c2f00dfe3677493faa421fc2ea38e295
2. Esse é o primeiro texto da série de conteúdos que o Observatório das Metrópoles produzirá sobre a conexão da dinâmica de difusão do coronavírus e a precariedade das cidades brasileiras.
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