Coronavírus e cárcere: a nova ameaça à vida das pessoas privadas de liberdade no Brasil

Boletim nº 14 – 03 de abril de 2020

 

Por Paula Barreto Alves de Araújo¹

 

Em meio ao turbilhão de sentimentos e informações acerca da pandemia provocada pelo novo coronavírus tanto as populações como os governantes ao redor do mundo têm se deparado com novas medidas e posturas sociais, em constante mudança, que buscam desacelerar a propagação do Covid-19. No começo de março, o mundo reagiu com certo tom de espanto à decisão do governo iraniano de libertar temporariamente presos que não apresentassem riscos à sociedade, o que já resultou em cerca de 85 mil presos de volta à sociedade1. Alguns dias depois, na Itália, visitas de familiares foram suspensas com a justificativa de que, devido à superlotação do sistema penitenciário do país, um surto na prisão seria incontrolável, o que gerou diversas rebeliões nos presídios do país.

Aqui no Brasil, no dia 16 de março de 2020, houve rebeliões e fuga em massa de detentos de cinco unidades prisionais do regime semiaberto no estado de São Paulo após o TJ- SP suspender as saídas temporárias, buscando evitar que os detentos pudessem trazer o Covid-19 após retornarem às unidades2. Imediatamente após os vídeos dos detentos comemorando a fuga viralizarem nas redes sociais, o embate acerca da decisão tomada pelo tribunal atribuiu um novo tom ao debate já existente acerca da ampla adoção da privação de liberdade como pena no Brasil e das possíveis penas alternativas. De acordo com Antônio David3, a dúvida acerca da ameaça que parte dos presos representa para a sociedade e como lidar com os diversos casos é válida num contexto de normalidade. Contudo, com a chegada da pandemia ao nosso país e os cenários previstos4, este debate precisa atingir um novo patamar: que medidas tomar em relação à população carcerária e aos adolescentes de unidades socioeducativas em meio a pandemia?

Logo após a fuga em massa no estado de São Paulo, notou-se movimentos de diversos órgãos e autoridades acerca do assunto. No dia 17 de março5, o Conselho Nacional de Justiça apresentou diversas recomendações acerca do tema, entre as quais estavam a reavaliação de prisões provisórias, especialmente para grupos vulneráveis ou em casos de superlotação; possibilidade de saídas antecipadas; implementação de medidas de higiene; aplicação de medidas socioeducativas em regime aberto. No dia seguinte6, após pressão do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, que resultou em uma ADPF7, o ministro do STF Marco Aurélio de Mello também sugeriu medidas alternativas à prisão, além da retirada de idosos, gestantes, lactantes e doentes do sistema prisional.

No dia 19 de março, o Ministro de Estado da Justiça Sérgio Moro, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, demonstrou mais cautela em relação ao assunto ao dizer que acredita que a liberação de presos não resolveria o problema e tornaria o resto da população vulnerável. Uma de suas afirmações, porém, chama um pouco mais de atenção, como apresentou Antônio David: ainda que tenha demonstrado que cada caso deva ser analisado separadamente, o ministro disse que não se poderia parar a segurança pública por causa de uma pandemia que ainda não chegou nos presídios. A partir da fala do ministro relatada acima e da decisão do TJ-SP, em consonância com outros órgãos por todo o Brasil, acerca da restrição das visitas de familiares, podemos pontuar duas questões que precisam ser consideradas neste debate.

Se analisarmos minimamente a realidade do sistema prisional brasileiro e dos centros de socioeducação somada às informações acerca do novo coronavírus, podemos considerar a fala do ministro Sérgio Moro como ingênua, pois o fato da pandemia ainda não ter chegado aos sistemas não significa que o diálogo sobre medidas a serem tomada em face da alta possibilidade de sua chegada não tenha extrema urgência. Dada a logística mínima necessária para o funcionamento das unidades prisionais e de socioeducação, o que envolve o trânsito dos servidores que ali trabalham, é impossível extinguir a circulação externa-interna nesses locais.

Tendo em vista que o sistema prisional brasileiro possui uma taxa de ocupação de cerca de 165%9 e que nas unidades de internação de adolescentes essa taxa seja de cerca de 110%10, podemos considerar inviável a implementação de muitas, se não todas, das recomendações do Ministério da Saúde11 para retardamento de propagação do vírus e não sobrecarga do sistema de saúde dentro desses espaços. Se usarmos como comparativo a tuberculose, doença que também atinge o sistema respiratório e tem transmissão por vias aéreas, observamos, de acordo com levantamento do Ministério da Saúde12, que o risco de adoecimento é 28 vezes maior para a população carcerária, devido a alguns fatores, tais como celas mal ventiladas e com pouca iluminação solar, aglomeração intensa, higienização precária e dificuldade de acesso aos serviços de saúde. A própria circulação em massa, como aponta o levantamento, contribui para o número elevado, no caso da tuberculose, o que nos leva a entender que a decisão do TJ-SP, assim como a de diversos órgãos públicos, acerca da restrição de entradas de pessoas consideradas “não essenciais” tenha sido acertada, antecipando-se ao contágio nessas unidades.

Todavia, as restrições de entradas dos familiares, assim como a de atores responsáveis pela realização de atividades extras, como oficinas e reforço escolar, pode influenciar na manutenção da saúde física e mental dos sujeitos privados de liberdade em nosso país. A jornalista Karla Maria (2019) em seu livro O Peso do Jumbo13, a partir dos relatos das experiências presenciadas por ela no sistema carcerário, denuncia a falta de capacidade do Estado de oferecer boa alimentação e condições mínimas de higiene aos presos, suprido pelos familiares através de um kit com itens básicos, conhecido como jumbo. Para além desses suprimentos que tem participação efetiva na manutenção da saúde física de muitos desses sujeitos, a falta de notícias e contato com os entes queridos e de atividades que estimulem seus corpos e mentes pode acarretar no adoecimento físico e mental desses indivíduos.

De forma a continuar as reflexões sobre o assunto, iniciadas nesse texto, aponta-se uma pergunta final: frente ao novo cenário, poderá o Estado suprir a lacuna que ele mesmo criou, ao não prover condições mínimas de subsistência, e tem reforçado, ao não medir profundamente as consequências das decisões já tomadas nesse contexto atípico?

¹Mestranda em Planejamento Urbano Regional no IPPUR/UFRJ. Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2018).

²A imagem de destaque é uma reprodução Rede Brasil Atual.

Notas:

1 Segundo Al Jazeera no dia 17 de março de 2020. Acessado dia 25 de março de 2020. https://www.aljazeera.com/news/2020/03/hard-hit-iran-frees-prisoners-coronavirus-outbreak- 200317110516495.html

2 Segundo G1 no dia 17 de março de 2020. Acessado dia 25 de março de 2020. https://g1.globo.com/sp/sao- paulo/noticia/2020/03/17/secretaria-da-administracao-penitenciaria-divulga-balanco-de-presos-que-fugiram- durante-rebelioes-em-sp.ghtml

3 Historiador e professor do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicação e Artes da USP em artigo publicado no Brasil de Fato no dia 24 de março de 2020. Acessado no dia 27 de março de 2020. https://www.brasildefato.com.br/2020/03/24/artigo-coronavirus-e-a-imediata-soltura-de-presos-uma- questao-de-direitos-humanos

4 Segundo Silvana Salles no Jornal da USP, no dia 27 de março de 2020. Acessado em 27 de março de 2020. https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-exatas-e-da-terra/matematica-preve-cenarios-para-covid-19-e-muda- rumo-de-governos/

https://www.cnj.jus.br/covid-19-cnj-emite-recomendacao-sobre-sistema-penal-e-socioeducativo/

6 Segundo Thaiza Pauluze e Fernanda Mena em Folha de São Paulo no dia 18 de março de 2020. Acessado em 25 de março de 2020. https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/diante-do-coronavirus- ministro-do-stf-pede-que-juizes-avaliem-medidas-alternativas-a-prisao.shtml

7 Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.

8 Segundo Leandro Colon e Fábio Fabrini em Folha de São Paulo no dia 20 de março de 2020. Acessado em 25 de março de 2020. https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/nao-podemos-soltar-presos-e- por-em-risco-populacao-diz-moro-sobre-crise-do-coronavirus.shtml

9 Segundo pesquisa Sistema Prisional em Números do Conselho Nacional do Ministério Público (2019). Acessado em 25 de março de 2020. https://www.cnmp.mp.br/portal/relatoriosbi/sistema-prisional-em- numeros

10 Segundo Panorama da Execução dos Programas Socioeducativos de Internação e Semiliberdade nos Estados Brasileiros do Conselho Nacional do Ministério Público (2019). A nível nacional a taxa pode não ser considera tão alarmante, porém, alguns estados chegam a apresentar taxa de ocupação acima de 150%, como o Rio de Janeiro. Acessado em 25 de março de 2020. https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Publicacoes/documentos/2019/LIVRO_PROGRAMAS_SOCIOEDUCATI VOS_WEB.pdf

11 https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46540-saude-anuncia-orientacoes-para-evitar-a- disseminacao-do-coronavirus

12 https://saude.gov.br/saude-de-a-z/tuberculose

13 MARIA, Karla. O peso do jumbo. Histórias de uma repórter de dentro e fora do cárcere. 1a ed. – São Paulo: Paulus Editora, 2019.