Covid-19 e direito fundamental à água: Adoção de Plano de Atendimento Emergencial para garantir o abastecimento de água na região metropolitana do Rio de Janeiro
Boletim nº 17 – 23 de abril de 2020
Por Laiana Carla Ferreira¹
Com a implementação da Constituição Federal de 1988, foram definidos diversos direitos fundamentais, não só os individuais, mas também diversos direitos difusos. Esses direitos fundamentais visam efetivar o Princípio da dignidade da pessoa humana, posto que este se faz presente nas mais variadas vertentes do Direito. Sendo a água um bem essencial para a vida no planeta, temos a máxima de que não se pode viver sem ela.
Portanto, a água é um direito humano, essencial para a vida e indispensável para a sobrevivência e desenvolvimento dos seres humanos (demanda fisiológica). É um recurso essencial em sua função social para o desenvolvimento local e nacional (demanda sociológica), assim como recurso estratégico não só para a soberania, mas também para a saúde pública. Uma vez que água é essencial à vida e o direito à vida está consagrado na Constituição Federal, artigo 5°, logo o direito à água vincula-se ao direito à vida, constitucionalmente garantido.
Entretanto, a água passou de um bem natural para tornar-se um bem econômico. Por esse aspecto, faz-se necessário olhar a questão da água de forma ampla, pois abarca o componente ambiental, a visão econômica e a promoção de bem estar social, pela qual passa a questão da saúde pública.
Diante do cenário de escassez relativa da água (seja pelo controle privado, seja pela qualidade da oferta), iniciaram-se pesquisas, programas e políticas procurando otimizar a utilização de recursos hídricos, bem como viabilizar a disponibilidade hídrica para aqueles que não possuem acesso, efetivando assim um direito fundamental ao mínimo essencial em atendimento ao princípio da dignidade da pessoa humana.
O acelerado crescimento populacional e, sobretudo, o aumento da demanda industrial nos últimos anos contribuíram para a deterioração da qualidade da água, aumentando a sua escassez, e tornaram mais evidentes os conflitos que envolvem seu uso. Fez- se necessária a criação de uma legislação específica, com instrumentos reguladores para minimizar e mediar os conflitos advindos de uma maior demanda, em contraposição a uma menor disponibilidade hídrica. Foi então promulgada, há mais de uma década, a Lei federal nº 9.433/97, estabelecendo a Política Nacional de Recursos Hídricos.
A despeito dos marcos legais que estabelecem a água como direito fundamental, a pandemia provocada pelo Covid-19 tem evidenciado a desigualdade no acesso à água e consequentemente a incapacidade dos governos em promover esse direito fundamental, o que submete parcela da população a situações de risco, ao não ter acesso à água, aspecto que caracteriza a Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
A Região Metropolitana do Rio de Janeiro é composta por 18 municípios e concentra 75% da população do Estado, sendo essencialmente abastecida por dois sistemas de abastecimento: o Sistema Leste (SIN Imunana/Laranjal) e o Sistema Oeste (SIN Guandu/Lajes/Acari). Somente três desses municípios metropolitanos são atendidos por sistemas isolados de abastecimento, com captações de água em mananciais superficiais locais e em outras fontes de água, principalmente fontes subterrâneas.
O Sistema de abastecimento de água Imunana/Laranjal é operado pela Cedae e atende aos municípios de Niterói, São Gonçalo, Itaboraí e a Ilha de Paquetá desde o final de 1999. O maior sistema integrado é o Sistema Guandu/Lajes/Acari, que abastece a maior parte da Região Metropolitana. A população total atendida pelo Sistema Guandu/Lajes/Acari é da ordem de 8,6 milhões de habitantes. Os municípios de Belford Roxo, Duque de Caxias, Japeri, Nilópolis, São João de Meriti, Nova Iguaçu, Queimados, Mesquita e parte do Rio de Janeiro são abastecidos pelo sistema Guandu.
A CEDAE presta o serviço de abastecimento de água em todos os municípios da Região Metropolitana, com exceção de Niterói (onde vende a água captada/aduzida no Sistema Imunana-Laranjal) e Petrópolis.
Para o enfrentamento da escassez relativa da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, quando decorrente de poluição acidental, foi elaborado em 2015 o PLANO DE CONTINGÊNCIA PARA ABASTECIMENTO DE ÁGUA (GUANDU).
“O Plano de Contingência para Abastecimento de Água é um conjunto de documentos que definem ações específicas e integradas, de diferentes tipos (preventivas, de preparação, resposta, recuperação e mitigação), baseadas em procedimentos e abordagens técnico-científicas, com apoio de bases de dados e informações (e sistemas de informação geográfica), e no envolvimento e interação de múltiplos atores, quando em situações de emergência ambiental e que possam pôr em risco o fornecimento de água bruta para fins de abastecimento público. O enfoque principal deste Plano são situações de acidentes, que possam gerar poluição acidental, atingindo mananciais superficiais e afetar captações utilizadas para abastecimento público.” (grifos nossos)
E, para além do exposto, salienta que:
“Deve-se ressaltar que este Plano não contempla o tratamento, nem a preservação e distribuição de água e sim está focado nas áreas (hidrográficas) que possam gerar danos à água bruta a ser captada para fins de abastecimento público.”
Entretanto, atualmente estamos vivenciando um cenário que escapa a cobertura de previsibilidade de situações que possam afetar a captação e abastecimento, delineada no plano de contingência, que disciplina procedimentos e abordagens técnico-científicas. É certo, no entanto, que se faz necessária um planejamento traçado com base em um diagnóstico, prognóstico e plano de ação para prevenção e mitigação dos impactos da pandemia da COVID-19 no abastecimento de água para a Região Metropolitana.
Surge então como um instrumento prático, de respostas rápidas e eficazes em situações de emergência o Plano de Atendimento Emergencial – PAE, cujo objetivo é estabelecer procedimentos técnicos e administrativos a serem adotados em situações emergenciais na região de captação e abastecimento. Além disso, ele fornece um conjunto de diretrizes, dados e informações que propiciam condições necessárias para a adoção de procedimentos lógicos, técnicos e administrativos, estruturados para serem desencadeados rapidamente em situações de emergência, de modo a promoverem a minimização de impactos à população e ao meio ambiente. Assim, define, de forma clara e objetiva, as atribuições e responsabilidades dos envolvidos.
O PAE, é parte integrante de um Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR), de modo que as tipologias acidentais, os recursos e as ações necessárias para minimizar os impactos possam ser adequadamente dimensionadas. O objetivo de um plano emergencial é delinear ações imediatas para reduzir esses riscos. Recomenda-se que seja antes elaborado um diagnóstico inicial sobre o seu sistema, para que as ações possam ser priorizadas e ajustadas conforme a realidade local.
A informação e o planejamento, no atual momento, são essenciais para a prevenção e mitigação do aumento do contágio do coronavírus. A adoção de um plano de atendimento emergencial pela CEDAE, buscando segurança, qualidade e a regularidade no abastecimento e, ainda, soluções concretas que garantam às populações faveladas e periféricas o acesso à água, é o meio mais eficaz de conter o avanço da pandemia na região metropolitana do Rio de Janeiro.
As Estações de Tratamento de Água são o nervo central de um sistema de abastecimento integrado, fornecendo recursos hídricos especialmente à Região Metropolitana do Rio de Janeiro, razão pela qual a perfeita operação e manutenção da rede de distribuição devem ser prioridade neste momento de crise, através de efetivação de providências emergenciais e estratégicas relativas ao saneamento e acesso à água à toda a população.
A conservação dos serviços essenciais é imprescindível, inclusive nos moldes dos princípios constitucionais da imaterialidade da dignidade da pessoa humana e da garantia à segurança, à saúde e à vida.
A efetivação de providências emergenciais e estratégicas relativas ao saneamento e acesso à água irá mitigar os impactos da pandemia nos segmentos economicamente vulneráveis da população. Tal situação decorre da premissa emitida pelos órgãos de saúde e de vigilância sanitária de que a correta higienização das mãos é o principal óbice para o avanço da epidemia. Entretanto, parte significativa da população não dispõe desse acesso de forma contínua e segura. Sendo certo que diversas localidades da região metropolitana, especialmente comunidades, têm reportado aos meios de comunicação e órgãos de fiscalização a deficiência no abastecimento.
Esses grupos demandam políticas públicas e ações estatais para alcançarem direitos, o que se torna ainda mais pungente nesse momento de crise. Há de salientar-se também que o vírus não responde de maneira endêmica. Nesse sentido, não há separação de camadas sociais quanto à propensão de contaminação e a afetação diversificada dos grupos mais vulneráveis repercute, indiscriminadamente, por toda a sociedade, razão pela qual conter o avanço da disseminação do coronavírus concerne a todos.
A eficácia da adoção de um Plano de Ação de Emergência pela companhia de abastecimento depende, essencialmente, da prévia identificação dos cenários, da determinação das áreas mediata e imediatamente expostas às consequências desses eventos, do planejamento e treinamento de equipes de intervenção e apoio e da disponibilidade de recursos materiais e humanos necessários a um efetivo combate.
Esse é mais um desafio que se apresenta para a gestão do abastecimento hídrico, que tem a oportunidade de utilizar os conhecimentos adquiridos ante a crise hídrica de 2015 e o episódio da Geosmina, em 2020. Nesta ocasião, em entrevista divulgada em seu sítio eletrônico, a Fundação Oswaldo Cruz- FIOCRUZ avaliou como “necessário e urgente o planejamento de longo prazo da gestão das águas do Rio Guandu e de medidas de contingência e segurança da água, orientadas pela proteção da saúde da população, incluindo o sério enfrentamento da ocupação territorial na bacia do manancial e do controle da poluição das várias fontes existentes.”
É imprescindível a transparência de informação, esclarecendo quais serão as medidas urgentes e imediatas adotadas para garantir a continuidade, sem interrupção para todas as camadas da sociedade, dos serviços de abastecimento de água. Sendo necessário o devido planejamento, adequado a situações de emergência como a atual, para fins de atendimento útil e urgente na situação evidenciada. Não se pode negligenciar, a nenhuma camada da população, esse serviço essencial e vital no momento de crise de uma pandemia mortal.
A elaboração de políticas de enfrentamento e meios de abrandar suas consequências é fundamental. O engajamento de atores públicos, privados e de toda a população se faz primordial na confecção de iniciativas que demandam a colaboração da academia. Precisamos envidar esforços para garantir a continuidade, sem interrupção, dos serviços de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, enquanto vigorar a situação deemergência em saúde pública, decorrente da COVID-19.
¹Aluna do curso de Especialização em Política e Planejamento Urbano – IPPUR/UFRJ.
Referências:
LEI Nº 9433, DE 8 DE JANEIRO DE 1997. Disponível em : <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9433.htm>
PLANO DE CONTINGÊNCIA PARA ABASTECIMENTO DE ÁGUA (GUANDU) RELATÓRIO FINAL (PRODUTO P6). Disponível em: http://comiteguandu.org.br/estudos-projetos.php>; http://comiteguandu.org.br/downloads/plano-de-contingencia-resumo-executivo.pdf>
Carta Aberta à sociedade brasileira: ONDAS e a epidemia da COVID-19 no Brasil. Disponível em:
<https://ondasbrasil.org/carta-aberta-a-sociedade-brasileira-ondas-e-a-epidemia-da-covid19-no-brasil/>
Atlas brasil- abastecimento urbano de água. Disponível em: <http://atlas.ana.gov.br/atlas/forms/analise/RegiaoMetropolitana.aspx?rme=18>
PLANO EMERGENCIAL DE AÇÕES PARA O SISTEMA DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA FRENTE AOS RISCOS OFERECIDOS PELO CORONAVÍRUS- Disponível em:
<https://www.ufrgs.br/warp/wpcontent/uploads/2020/03/PLANO_EMERGENCIAL_AGUA_GERAL_V4.pdf
Portal Instituto Estadual do Ambiente do Rio de Janeiro – INEA <http://www.inea.rj.gov.br/Portal/Agendas/GESTAODEAGUAS/index.htm&lang=PT-BR>
Reportagem Geosmina: A ponta do iceberg – diante da falta de transparência de dados e a lentidão do plano de contingência, pesquisadores propõem uma força-tarefa para monitorar a qualidade da água e assegurá-la como direito humano. Disponível em: <http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/geosmina-a-ponta-do-iceberg>