Do desalento à busca por novos caminhos

Boletim nº 14 – 03 de abril de 2020

 

“Nada será como antes… amanhã ou depois de amanhã”

(Milton Nascimento)

“Pede perdão pela duração dessa temporada…”

(Chico Buarque)

 

Por Deborah Werner¹ e Clarice Rocha²

 

O advento do coronavírus expôs ao mundo algo até pouco tempo atrás considerado ultrapassado pelo mainstream econômico: a importância dos Estados nacionais, o papel das políticas públicas e a falácia da ofensiva neoliberal como caminho para o bem-estar e alcance das potencialidades dos indivíduos e sociedades.

No caso brasileiro, vínhamos de uma trajetória de retrocessos: cortes orçamentários em gastos primários (aqueles não relacionados ao pagamento da dívida), como saúde e educação, sobretudo com a Emenda Constitucional 95[2]; reforma trabalhista e previdenciária, que significaram perdas de direitos históricos da classe trabalhadora brasileira[3]; ode ao empreendedorismo como solução ao desemprego elevado, sob a ideologia do mérito e do esforço próprio como superação das adversidades; cortes no Programa de Transferência de Renda, o Bolsa Família[4]; retrocesso no programa habitacional Minha Casa Minha Vida[5]; desmonte da política de universalização do Ensino Superior[6]; entre outras ações que ameaçam não apenas avanços de governos anteriores, mas colocam em questão o pacto societário da Constituição de 1988.

Tal quadro, analisado sob uma perspectiva mais ampla, nos revela as limitações políticas das conquistas econômicas e sociais testemunhadas entre 2003 e 2014. Os retrocessos, em curso desde 2015 e que remetem ao segundo governo de Dilma Rousseff[7], foram recrudescidos a partir do golpe civil-judiciário-parlamentar-midiático que culminou no processo de impeachment [8]. A isso se soma o histórico de neoliberalização da economia, inaugurado nos anos de 1990 e que levou ao processo de desindustrialização, de reprimarização da pauta exportadora e a constrangimentos fiscais e de ação do Estado, expressos em instrumentos normativos como a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Desvinculação das Receitas na União (DRU)[9]. A tendência neoliberalizante foi apenas amenizada, mas não rompida, durante os anos Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016) – em decorrência da manutenção das taxas de juros elevadas e câmbio valorizado na maior parte do período e das amarras fiscais para a universalização de bens e serviços públicos. A crise econômica e o desemprego expuseram a fragilidade das políticas macroeconômicas adotadas e, somadas às questões estruturais como a regressividade da estrutura tributária e especialização produtiva, colocam em questionamento os anos de crescimento econômico e geração de emprego e renda.

O rumo tomado após 2016 foi o de aprofundamento da pauta neoliberal e de desmonte das políticas públicas. A novidade foi que ele foi forjado, embutido e ocultado no discurso violento, reacionário, anti-ambientalista, terra-planista, avesso à Ciência e à Política, do Presidente da República, Jair Bolsonaro (Sem Partido), eleito em 2018. Prenhe, portanto, de repulsa a mínimos princípios civilizatórios.

Suas falas, de virulência crescente, tiveram grande ressonância na sociedade, e tornava quase impossível, dada a inércia da imprensa, do Legislativo e do Judiciário , uma contraposição por parte das forças progressistas, levando ao aprofundamento dos retrocessos valorativos na sociedade brasileira. Qualquer voz dissonante era execrada. Foi assim ao longo do processo eleitoral. Continuou sendo em seu primeiro ano de governo… Até o COVID-19.

A inércia em propor medidas de contenção da pandemia, a recusa em aderir aos protocolos internacionais e do próprio Ministério da Saúde para prevenção contra a proliferação da doença, a ela referindo-se como uma “gripezinha” em discursos oficiais e a intenção de realizar a campanha publicitária #oBrasilnãopodeparar[10] expôs o caráter vacilante do Presidente. Soma-se a esses episódios a recusa em implementar, com a devida rapidez, a Renda Básica Emergencial, que ganhou unanimidade entre economistas e políticos de distintos partidos e correntes ideológicas como sendo o enfrentamento mais adequado, em termos das classes sociais desfavorecidas, às consequências econômicas do COVID-19. É crescente a percepção da necessidade do Executivo federal mudar os rumos econômicos e políticos para enfrentar a pandemia. A resistência, por sua vez, tem permitido amalgamar amplos setores da sociedade em torno de propostas alternativas, assim como enunciar as contradições que fazem com que estejamos entre as 10 maiores economias do mundo, ao passo que sustentamos níveis aviltantes de desigualdade, determinadas, entre outros fatores, pela concentração de renda e interdição do acesso universal da população aos serviços públicos[11].

Trata-se, portanto, de uma chance histórica de reverter a tendência uníssona do discurso reacionário e fascista que assola o país, desnudar a retórica neoliberal e romper com os descaminhos anteriormente tomados, na busca por tornar a sociedade brasileira mais justa e menos desigual.

 

Histórico da Renda Básica no Brasil

Na década de 90, sob o contexto de direitos sociais assegurados pela Constituição Federal de 1988, as discussões sobre renda mínima foram inseridas na agenda parlamentar brasileira por meio de um projeto de lei do Senador Eduardo Suplicy (PT/São Paulo), cuja proposta inicial se referia à implementação de um imposto de renda negativo. A despeito da aprovação inicial pelo Senado Federal, em 1991, o projeto remetido à Câmara dos Deputados nunca foi votado[12].

A partir da década de 1990, teve início a implementação do Benefício de Prestação Continuada (BPC), previsto na Constituição e pago a idosos e deficientes pobres, incapacitados para a vida independente e para o trabalho. Por outro lado, era crescente a adesão de políticos e acadêmicos à ideia de se vincular a proposta de renda mínima à escolarização de crianças das famílias beneficiárias, de modo a articular uma política de curto prazo, a de transferência de renda, aos objetivos estruturais de longo prazo, quais sejam romper com os ciclos viciosos de transmissão de pobreza geracional e aumentar o capital humano das gerações futuras. Tal formato serviria de referência para os primeiros programas de transferência de renda adotados, primordialmente, por governos locais. Entre 1995 e 1996, o tema ganha espaço no âmbito do Poder Legislativo, a partir da criação de novos projetos de lei com o objetivo de instituir programas de transferência de renda em uma abrangência nacional, sempre associados a políticas de incentivo à educação.

No ano de 1997, a proposta da Renda Básica se transformou em um programa governamental, denominado Programa de Garantia de Renda Mínima Vinculada à Educação (PGRM). O projeto foi aprovado, limitando-se a conceder apoio financeiro aos programas de renda mínima ligados à educação municipal. No entanto, apenas os municípios que tivessem uma receita tributária e renda per capita inferiores às médias estaduais poderiam fazer parte do programa, além da exigência de que os estados entrassem com 50% dos recursos aportados pelo Governo Federal. Essas características foram responsáveis por inviabilizar a participação da maior parte dos municípios do país, tendo sido registrados, no ano de 1999, a adesão de cerca de 150 prefeituras, em contraposição à meta de 1.254 municípios.

Concomitantemente, diversos programas de assistência social foram implementados no cenário nacional, à exemplo do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), condicionado à frequência escolar; o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza; o Programa Nacional de Bolsa Escola (PNBE); o Bolsa Alimentação, cuja condicionalidade se referia às atividades de saúde preventiva; entre outros.

Em 2001, o Senador Suplicy retoma o debate da Renda Básica em perspectiva irrestrita, universal e incondicional, a partir da apresentação de um novo projeto de lei ao Congresso. Suplicy afirmava que a implementação de uma renda básica universal seria uma opção mais vantajosa para a população economicamente vulnerável do que imposto de renda negativo previsto na proposta anterior, uma vez que: i) permitiria maior cobertura da população-alvo; ii) inexistiria o estigma sobre os beneficiários ou intrusividade do Estado para a verificação de meios dos cidadãos e; iii) inexistiria desincentivos ao trabalho, que poderiam ser causados com políticas focalizadas a partir do critério de renda.

Em 2002, após a eleição do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) (2003-2010), o projeto, readequado às regras da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), foi aprovado por unanimidade pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. Estabeleceu-se que a abrangência total da Renda Básica seria atingida em etapas, atendendo primeiramente às camadas da população que mais necessitavam da transferência de renda. No ano de 2003, na Câmara dos Deputados, o Projeto foi aprovado na íntegra pelas Comissões de Finanças e Tributação e de Constituição, Justiça e de Cidadania.

Naquele mesmo ano, foi criado por Medida Provisória outro programa de transferência de renda: o Programa de Nacional de Acesso à Alimentação. O modelo de transferência de renda, seja com base na renda básica, seja com base em transferência de renda com condicionalidades se consolidava, portanto, como opção hegemônica nos meios acadêmicos e políticos. Ao final do ano de 2003, diversos desses programas, fragmentados e superpostos, já constavam nas esferas governamentais, o que gerou o reconhecimento da necessidade de unificação. Com a sanção da Lei da Renda Básica de Cidadania (Lei nº 10.835, de 8 de janeiro de 2004) e a criação do Programa Bolsa Família – PBF – (Lei nº 10.836, de 9 de janeiro), os demais programas de transferência de renda foram unificados.

A Lei da Renda Básica de Cidadania determina que “se constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos cinco anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário[13]”. Apesar de sua abrangência universal, a renda básica seria implementada gradualmente, tendo seu início no ano de 2005, dando prioridade às camadas mais vulneráveis da sociedade. Ademais, o valor do benefício seria determinado a partir do grau de desenvolvimento do país, levando em consideração suas respectivas possibilidades orçamentárias.

O Programa Bolsa Família (PBF), por sua vez, tinha como objetivo a transferência de renda com determinadas condicionalidades, sendo destinado a famílias em situação de extrema pobreza, e tendo valor variável ao número de crianças, adolescentes e gestantes vinculados. Esta política se configurou como uma das ações de combate à pobreza do governo federal, somadas ao aumento real do salário mínimo, ampliação do crédito e geração de emprego formal. A despeito de sua implementação e de efeitos macroeconômicos e sociais importantes, o PBF foi um dos programas mais atacados ao longo dos governos de coalizão do Partido dos Trabalhadores (PT), com argumentos contrários carregados de preconceito e desconhecimento, sendo os mais comuns a acusação de que as mulheres engravidavam para receber o benefício e o efeito-preguiça proporcionado pelo valor recebido, que supostamente inibiriam o ato do cidadão de buscar emprego.

No atual cenário de crise sanitária, a discussão da Renda Básica de Cidadania foi retomada como uma medida emergencial para fazer frente à recessão econômica causada pelo COVID-19. Essa proposta, além de ser fundamental para o enfrentamento das desigualdades estruturais que foram acentuadas pela pandemia, pode ser considerada um grande passo para a implementação da Renda Básica de Cidadania, Permanente e Universal, como idealizada por Eduardo Suplicy em suas propostas iniciais. A aprovação de um projeto garantidor de Renda Básica Emergencial para aqueles que serão mais afetados pela crise econômica representa uma oportunidade para que haja uma melhor compreensão da relevância de uma renda mínima que atenda às necessidades vitais dos indivíduos, respeitando o princípio da dignidade humana, abandonado em contexto de intensificação da ofensiva neoliberal no Brasil.

Para tanto, é necessário evidenciar a vulnerabilidade a que a sociedade brasileira é submetida em decorrência da manutenção de políticas de austeridade fiscal.De um lado, tais políticas impedem a prestação, por parte do Estado, de serviços públicos essenciais; de outro lado, não são supridos pela “livre força dos mercados” sem que uma adequada taxa de retorno dos investimentos, antecedida por medidas regulatórias favoráveis, sejam asseguradas. Por sua vez, lavar a mão com água e sabão, isolamento social, home office e trabalho remoto, medidas eficazes para evitar a propagação do vírus, se revelaram impossíveis em condições de ausência de saneamento básico e acesso à água potável, de moradias precárias (ou mesmo a falta delas)[14] em comunidades com elevada densidade populacional; e informalidade no mercado de trabalho[15]. A negligência histórica em se promover a universalização de serviços básicos e acesso à moradia digna faz com que os mesmos se apresentem, em contexto de pandemia, como privilégio das classes médias e altas, frente àqueles que são constantemente interditados de acessar seus direitos constitucionais em decorrência das desigualdades estruturais do país. Daí a tentativa de responsabilizar os indivíduos seja pelo seu sucesso, seja pelo seu fracasso – sem problematizar os mecanismos estruturais da desigualdade, tão recorrente na retórica neoliberal – revelar-se incompatível com as condições impostas pela pandemia.

Tal aspecto se evidenciou na crescente oposição que o Presidente vem sofrendo ao apresentar a falsa dicotomia entre economia e saúde e ao pressionar para que a população volte a trabalhar. Pressão essa que recai fortemente sobre o trabalhador informal, sem renda fixa, como se não houvesse outra solução que não a individual. Mais uma vez, a população economicamente vulnerável é deixada à mercê das atividades do mercado, para “não deixar a economia parar”[16]. Esse contingente de trabalhadores é submetido a extensivas jornadas de trabalho, muitas das vezes em condições precárias, sem direitos trabalhistas, em prol de garantirem sua sobrevivência. Tais aspectos revelam que os efeitos dessa crise impactam, principalmente, os mais vulneráveis, que não possuem garantia de renda. Como se o Estado não tivesse condições políticas e econômicas para se garantir renda mínima e amenizar a agonia causada pela crise sanitária.

A proposta de instituir a Renda Básica em caráter emergencial ocupou centralidade nas duas últimas semanas, intensificada em torno da Campanha “Renda Básica que Queremos”, articulação entre a Rede Brasileira de Renda Básica de Cidadania, parlamentares e sociedade civil[17]. A proposta, que refutou os R$200 inicialmente propostos pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes, foi aprovada pelo Congresso Nacional[18] em caráter de unanimidade entre políticos e economistas de distintos espectros ideológicos.

Em linhas gerais, trabalhadores informais acima de 18 anos, microempreendedores individuais (MEI), contribuintes individuais ou facultativos do Regime Geral de Previdência Social (RGPS); famílias com renda per capita de até meio salário mínimo (R$522,50) ou renda mensal total de até três salários mínimos (R$3.135,00) terão direito à renda de R$600,00 mensais, por três meses, no total de dois adultos por família, o que significa que pode chegar a R$1.200,00 por família. Mães solo, que sejam as únicas fontes de renda das famílias, receberão o total de R$1200,00. Não terão direito aos recursos menores de 18 anos; pessoas que recebem benefício previdenciário ou assistencial, seguro-desemprego ou outro programa de transferência de renda federal, exceto Bolsa Família[19]; e aqueles que obtiveram rendimentos tributáveis acima de R$28.559,70 no ano de 2018. O Cadastro Único (CadÚnico)[20] permitirá que as famílias cadastradas recebam a Renda Básica Emergencial. Para as famílias não cadastradas no CadÚnico, o governo precisa operacionalizar o acesso ao benefício, a partir da sanção do Presidente da República.

De acordo com o IBGE, a taxa de desemprego no Brasil é de 10,6%, ou 11,6 milhões de pessoas[21]; os desalentados[22] correspondem a 4,6 milhões de pessoas. Já a taxa de informalidade atingiu 40,6% da população ocupada, o que corresponde a 38 milhões de trabalhadores[23]. Por sua vez, o percentual de famílias chefiadas por mulheres no Brasil é de 40%[24]. Por sua vez, a estimativa feita pela Instituição Federal Independente (IFI) do Senado, o auxílio emergencial irá beneficiar 30,5 milhões de brasileiros ( 14% da população) e terá o custo de R$58 bilhões, ou 0,8% do PIB de 2019.

Considerando esse quadro, verifica-se que, mesmo sem a pandemia, a população brasileira já se encontrava em um contexto de extrema vulnerabilidade, decorrente das políticas de austeridade fiscal, da crise econômica estrutural e da inércia governamental em revertê-la. A pandemia expõe, portanto, os entraves impostos à ação do Estado, que requereram a flexibilização da Lei de Responsabilidade Fiscal e a declaração do estado de calamidade, o que permite à União descumprir metas fiscais estabelecidas pela Emenda Constitucional 95 até 31/12/2020. Por outro lado, nos propicia a oportunidade de debater a implementação da Renda Básica não apenas em caráter emergencial, mas permanente, posta a precariedade socioeconômica vigente no País, antes de qualquer viralização.

 

Da Renda Básica Emergencial à Renda Básica Permanente: a utopia a ser perseguida

A renda emergencial não é apenas uma questão ética e humanitária em contexto de pandemia, é absolutamente favorável à recuperação econômica, sobretudo em situação de crise, baixo crescimento, desemprego e informalidade, ao garantir o consumo de bens de primeira necessidade às famílias e promover efeitos multiplicadores via demanda efetiva. Considerando a capacidade ociosa e a contração da demanda que caracterizam contextos de recessão, preocupações em torno da inflação também não se confirmam.

A pergunta é: por que, enquanto País, não a implementamos antes? Por que não tornar a renda emergencial uma renda permanente? Os incautos podem questionar de onde viriam os recursos. Para essa questão, é necessário levantar algumas outras.

O Ministro da Economia tem alegado a indisponibilidade de recursos, desde a aprovação pelo Congresso Nacional da implementação da Renda Básica Emergencial: segundo ele, seria necessária a aprovação de uma Emenda Constitucional que tipificasse um “orçamento de guerra” durante a vigência da calamidade pública, desonerando o governo quanto ao cumprimento da regra de ouro (norma que impede o endividamento para pagar despesas correntes). Caso contrário, haveria insegurança jurídica para autorizar o gasto, pois haveria falta de fontes orçamentárias[25]. A oposição alega que o governo pode editar uma Medida Provisória para garantir o pagamento e que a flexibilização da Lei de Responsabilidade Fiscal, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), seria suficiente para o pagamento do auxílio. O Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM/RJ), apesar de concordar com a necessidade de uma “PEC do orçamento de guerra”, questiona, por outro lado , a solicitação do governo realizada junto ao STF para a flexibilização da LRF[26], que supostamente seria suficiente para o governo. O impasse, colocado desta maneira, deixou milhões de brasileiros no aguardo de uma resolução atinente à própria sobrevivência durante a pandemia.

Cumpre observar que tais entraves inexistiram quanto a outras medidas. No dia 18 de março de 2020, o Ministro da Economia anunciou um benefício de R$200,00 por pessoa por mês ao trabalhadores informais, o que significaria liberar R$15 bilhões em 3 meses[27], ou 0,2% do PIB. Na mesma semana, o Banco Central anunciava injetar no sistema financeiro R$1,2 trilhão, 16,4% do PIB, com a justificativa de garantir a liquidez dos bancos, para que as instituições financeiras pudessem continuar a realizar suas operações com os clientes, pessoas físicas e jurídicas. No entanto, sem a contrapartida de que os bancos irão reduzir suas taxas de juros, como assegurar que esses recursos circularão na economia real, ou seja, que os bancos irão, de fato, conceder empréstimos em contexto de pandemia, em vez de cobrir descasamento de prazos entre ativos e passivos?

Chama a atenção a disparidade entre os recursos disponibilizados ao sistema financeiro e às famílias, o que apenas confirma a proeminência do capital bancário no Brasil, já explicitada quando do debate da Reforma da Previdência, do Teto dos Gastos Públicos (mormente em serviços sociais), da ampliação da Desvinculação das Receitas da União, entre outras políticas públicas direcionadas ao andar de cima.

Concomitantemente às medidas junto ao sistema financeiro, e por certo prevendo a inércia dos bancos privados em repassar o dinheiro que lhes foi entregue pela ação do Banco Central, o Ministério da Economia e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) criaram uma linha de crédito de R$40 bilhões para financiar dois meses de folha de pagamento de empresas que faturam entre R$360 mil e R$10 milhões por ano, cuja característica mais marcante é a de serem intensivas em mão de obra[28]. Recursos desse tipo e magnitude, no entanto, ainda não foram disponibilizados a microempreendedores individuais e microempresas[29], ou seja, junto com os trabalhadores informais, precarizados e desalentados, a imensa maioria dos empreendedores segue desassistida pelo Governo.

Apontar essas contradições da política de austeridade não bastam; outras precisam ser evidenciadas para se garantir um consenso societário capaz de tornar a Renda Básica Emergencial um benefício permanente.

Entre elas, o caráter regressivo da carga tributária no Brasil, onde quem mais tem menos paga, dado o peso dos impostos indiretos[30]. Por sua vez, apesar dos lucros das empresas serem tributados, a distribuição dos dividendos aos acionistas é isenta de tributação, isenção conferida em 1995 pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e jamais revista. Outra fonte não implementada deriva do Imposto Federal sobre Grandes Fortunas: apesar de previsto na Constituição de 1988 (Art. 153), requer Lei Complementar, o que não teve ainda contexto político favorável para sua aprovação.

O consenso formado em torno da Renda Básica Emergencial, portanto, pode suscitar um debate mais amplo sobre a necessidade de uma Reforma Tributária mais justa e o uso do fundo público para políticas públicas orientadas ao bem-estar (educação, saúde, infraestrutura, ciência e tecnologia, etc). Além disso, fortalecem o argumento em sua defesa as mudanças no mercado de trabalho, que independem da emergência pandêmica: de um lado, relacionam-se à automação das atividades produtivas, industrial e de serviços, típica do avanço tecnológico do capitalismo contemporâneo[31]; mas, de outro lado, intensificam a permanente precarização e informalidade do setor terciário no Brasil, sobretudo quando se consideram as capitais estaduais e as grandes cidades do país. Tais aspectos requerem do Estado a oferta de fontes de renda para além daquela proveniente do trabalho, o que equivale ao resgate de seu papel redistributivo e provedor de bem-estar.

Outro aspecto a ser enfrentado relaciona-se à estrutura produtiva: a necessidade de garantir insumos fármacos, equipamentos e instrumentos hospitalares em função da pandemia, vis-a-vis a restrição de fluxos internacionais, exige políticas de reconversão industrial[32], mas também permite ampliar o debate para a pauta da tendência desindustrializante da economia brasileira. A partir do atual contexto, com miras a um futuro de melhores condições sanitárias e de saúde da sociedade, o investimento público poderia conduzir à retomada do crescimento econômico a partir de estímulos à demanda interna, o que resultaria na reconstituição do número e do faturamento de empresas, na agregação de valor à produção, na geração de emprego e renda, na reversão da desindustrialização e, portanto, em um maior potencial de arrecadação tributária para cumprir com os compromissos emergenciais assumidos no atual contexto.

Tais diretrizes teriam o benefício de já contar com elevado potencial de coerência territorial, proporcionado pela experiência federativa brasileira com a operacionalização do Sistema Único de Saúde (SUS). Com isso, haveria um reforço do sistema, ao mesmo tempo em que seria ampliada a capilaridade da oferta de serviços de saúde pública, resultando em melhores condições de vida em todo o País. Acoplado a uma estratégia geopolítica, tal intento, além de instituir uma tendência de superação da reprimarização da pauta exportadora, ainda poderia reposicionar o País em posição de protagonismo político internacional, a qual estaria assentada em preceitos científicos e no desenvolvimento tecnológico liderados pela imensa rede pública produtora de ciência nele existente

Nada novo na história do capitalismo, a exemplo do contexto pós-Segunda Guerra Mundial e da implementação do Welfare State nos países centrais. Utopia, no entanto, em contexto de capitalismo periférico neoliberal!

A lição, se é que já podemos tirar alguma, em decorrência da pandemia Covid-19, é a necessidade de mudanças de rumos, ruptura com as políticas neoliberalizantes em curso no país e resgate do papel conferido ao Estado Brasileiro em assegurar o “bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça”, valores expressos na Carta Magna de 1988 e que foram subordinados à pauta financeira e rentista imposta ao país há mais de três décadas. Momentos de crise podem ser uma oportunidade para a implementação de políticas inovadoras que apontem um caminho para transformações perenes.

A Renda Básica Permanente, ao lado da reversão da austeridade e mudanças na estrutura produtiva do país, são condições sine qua non para promovermos justiça social no Brasil e retomarmos os rumos da história em bases soberanas, justas e libertárias.

 

¹Docente do IPPUR/UFRJ.

²Graduanda do curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES/IPPUR/UFRJ)

³A imagem de destaque é uma reprodução Agência EBC

 

Notas:

1. Agradecemos aos Professores Lalita Kraus e Fábio de Oliveira pelas sugestões e atenta leitura.

2. A Emenda Constitucional 95, ou “do Teto dos Gastos Públicos”, aprovada em 2016 durante o governo Temer, instituiu o Novo Regime Fiscal, congelando os gastos públicos por 20 anos. Assim, tanto as despesas quanto os investimentos públicos ficariam limitados aquilo ao estabelecido no ano anterior, corrigidos pela inflação por meio do Índice Nacional de Preços. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc95.htm>

3. A Reforma Trabalhista prevê a possibilidade de acordos entre patrões e empregados, além de determinar a não obrigatoriedade de pagamento do salário mínimo na remuneração por produção, a possibilidade de mulheres grávidas trabalharem em ambientes insalubres, dentre outras medidas que representam um retrocesso na Consolidação dos Direitos Trabalhistas. Já a Reforma Previdenciária, por sua vez, tem como principal proposta a implementação de um sistema de capitalização como resposta ao suposto déficit de arrecadação (G1, 28/04/2017 . Disponível em: <Veja principais pontos das reformas trabalhista e da Previdência>

4. Congresso em Foco, 04/03/2020. Disponível em: <Com crise e cortes no Bolsa Família, 3 milhões entraram na extrema pobreza

5. Brasil de Fato, 03/09/2019. Disponível em: Governo Bolsonaro corta R$ | Uma visão popular do Brasil e do mundo

6. Brasil de Fato, 01/08/2019. Disponível em: <Projeto de Bolsonaro ameaça | Uma visão popular do Brasil e do mundo>; Valor, 17/01/2020. Disponível em: <Desempenho de estudantes no Enem piorou em 2019, aponta Inep>

7. El País, 27/09/2014. Disponível em: <Dilma anuncia nova equipe para retomar o crescimento econômico>

8. G1, 01/06/2016. Disponível em: <Perícia conclui que Dilma não teve participação nas ‘pedaladas fiscais’>

9. Sobre Desvinculação das Receitas da União DRU — Senado Notícias

10. Conjur, 31/03/2020. Disponível em: Em liminar, ministro Barroso proíbe campanha “O Brasil não pode parar”

11. Souza, P.H.G.F. “A desigualdade vista do topo: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013”, Tese de Doutorado, Universidade de Brasília (UnB), 2016; e Trovão, C.J.B.M. “Desigualdade Multidimensional: Uma abordagem keynesiana para o seu enfrentamento”, Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 2015.

12. Britto, T., Soares. F.V. “Bolsa Família e Renda Básica de Cidadania – um passo em falso?”, Textos para Discussão, Centro de Estudos da Consultoria do Senado, 2010. Disponível em Bolsa Família e Renda Básica de CIdadania – um passo em falso?

13. Lei nº 10.835, de 8 de janeiro de 2004.

14. Em estudo realizado pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (ABRAINC) e a Fundação Getúlio Vargas, estimou-se o déficit habitacional em 7,7 milhões de unidades, dos quais 12,4% decorrem de habitação precária, 41,3% coabitação; 42,3% ônus excessivo com aluguel; 3,9% adensamento excessivo. A metodologia utilizada foi desenvolvida pela Fundação João Pinheiro (Abraic, 2018; Fundação João Pinheiro, 2018) . Disponíveis em Nova Id e Déficit Habitacional no Brasil

15. Sem contar as condições desiguais da educação brasileira: soluções como Ensino à Distância (EaD) não são plenamente compatíveis com as condições infraestruturais e de acessibilidade digital, seja das próprias instituições do Ensino Público (Fundamental e Superior), seja dos estudantes. Como consequência, tais soluções reforçam e alimentam a desigualdade entre os estudantes de instituições públicas e privadas.

16. Correio Braziliense, 26/03/2020Disponível em: <Bolsonaro diz que Brasil não pode parar: ‘Devemos abrir o comércio’>

17. Disponível em http://rendabasica.com.br/ e https://www.rendabasica.org.br/

18. Projeto de Lei nº9.236, aprovado na Câmara dos Deputados, em 26/03/2020 e PL 873/2020, aprovado no Senado Federal, em 30/03/2020.

19. Será permitido a duas pessoas de uma mesma família acumularem benefícios: um do auxílio emergencial e um do Bolsa Família. Caso o auxílio seja maior que a bolsa, a pessoa poderá fazer a opção pelo auxílio.

20. Cadastro Único dos Programas Sociais do Governo Federal identifica as famílias de baixa renda para concessão de benefícios sociais do Programa Bolsa Família, da Tarifa Social de Energia Elétrica, do Programa Minha Casa Minha Vida, da Bolsa Verde, entre outros. Também pode ser utilizado para a seleção de beneficiários de programas ofertados pelos governos estaduais e municipais. O cadastro confere ao cidadão o Número de Identificação Social, o NIS. https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/consulta_cidadao/

21. Dados de desemprego correspondem ao 4° trimestre de 2019. Disponível em https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php.

22. Desalentados são as pessoas que gostariam de trabalhar e estariam disponível, porém não procuraram trabalho por acharem que não encontrariam. Os motivos que podem ter levado à desistência na busca por trabalho são: não encontrar trabalho na localidade; não conseguir trabalho adequado; não conseguir trabalho por ser considerado muito jovem ou idoso; não ter experiência ou qualificação.

23. Conforme PNAD Contínua, referente ao trimestre encerrado em fevereiro de 2020. Disponível em PNAD Contínua: taxa de desocupação é de 11,6% e taxa de subutilização é 23,5% no trimestre encerrado em fevereiro de 2020

24. IPEA, Retratos (2015). Disponível em Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça

25. Rede Brasil Atual, 01/04/2020; e Agência Brasil, 31/03/2020. Disponíveis em Guedes faz ‘chantagem’ para Congresso pagar renda emergencial. STF e TCU reagem ;  Liberação de renda básica depende de trâmites jurídicos e de PEC

26. Câmara dos Deputados, 31/03/2020. Disponível em Maia diz que governo pode editar MP para garantir pagamento de R$ 600 – Notícias

27. Reuters, 18/03/2020. Disponível em Guedes anuncia programa de R$15 bi para ajuda a trabalhadores informais

28. Estadão, 23/03/2020; e Folha de São Paulo, 30/03/2020; Disponíveis em Com crise, BC já anunciou R$ 1,2 trilhão em recursos para bancos e Desafio do BC é fazer R$ 1,2 tri sair dos bancos para empresas e famílias.

29. Microempreendedores individuais possuem faturamento de até R$81 mil e Microempresas de até  R$360 mil. Disponível em Estudos e Pesquisas Sebrae

31. De acordo com a Receita Federal, 48% dos tributos derivam de bens e serviços. Salários, respondem por 26%; renda, lucros e dividendos respondem por 19% da arrecadação; e propriedade e transações financeiras respondem por 4,5% e 1,6%, respectivamente.  Disponível em Carga Tributária 2017 – Receita Federal <Novembro 2018>

32. Tais mudanças dispensam mão de obra e desmobilizam crescentemente a população.