Modos de organização e pandemia: tendências e hipóteses
Boletim nº 19 – 07 de maio de 2020
Por Marcelo Castañeda¹
Este ensaio propõe pensar nos modos de organização que convivem no estágio atual do capitalismo em diferentes escalas a fim de refletir sobre as questões que a pandemia provocada pelo novo coronavírus coloca sobre o futuro do planeta, considerando que este se faz de acordo com as decisões que tomamos frente às escolhas que o presente apresenta e estas se relacionam com a forma como construímos essas escolhas ao longo do tempo, ou seja, no passado. Em uma situação-limite como a que a humanidade vivencia, trata-se entender as possibilidades que os modos de organização assumem e sua importância para pensar a intensificação de tendências e possibilidades de mudanças e continuidades que estão em jogo quando tudo parece suspenso.
Cabe especular sobre os vetores de transformação de um mundo que não será mais o mesmo. A hipótese principal se baseia em dois tipos ideais que nortearão a análise como dois extremos opostos: o controle corporativo-estatal, de um lado, e a auto-organização comunitária como lócus de inovação e autonomia, de outro. Nem um nem outro se concretizará no instante pós-pandemia, que refletirá um ponto entre esses dois extremos a depender das escolhas que fizermos e das tendências que se confirmem.
A reflexão sobre os modos de organização passa por arranjos variados, dentre os quais pode-se delinear três grandes grupos pelos quais as pessoas agem em conjunto com as outras na sociedade, ou seja, se organizam ou estão organizadas. Com isso, não se pretende esgotar todas as combinações possíveis entre esses grupos de organizações, remetendo apenas a uma tipologia que permita desenvolver a análise subsequente.
No primeiro grupo estão as organizações empresariais, que constituem o cerne da produção de mais-valia pela exploração de capital variável e reinvestimento de lucro para buscar rentabilidade, permitindo a continuidade das estruturas que sustentam o capitalismo. Vão desde corporações globais e multinacionais, incluindo o setor financeiro, passando por empresas nacionais, até chegar nas pequenas e médias empresas, sem contar as variações ao longo desse eixo, como, por exemplo, os frágeis vínculos que se estabelecem nas plataformas tecnológicas contemporâneas.
No segundo grupo estão as organizações políticas, que envolvem a representação e as formas de soberania, compreendendo desde os diferentes níveis de governo em cada país e suas configurações legislativas e jurídicas, constituindo o que entendemos como Estado. Compreendem também os partidos políticos, chegando até os blocos econômicos que integram diferentes países e os organismos multilaterais, que atuam politicamente em um mundo que se globalizou da Segunda Guerra Mundial até hoje configurando ao menos o esboço de uma governança global.
No terceiro grupo estão organizações sociais, de caráter comunitário, envolvendo uma infinidade de afinidades e lutas cotidianas que apresentam formas variadas a depender da finalidade. Abarcam, por exemplo, instituições religiosas, movimentos sociais, associações de moradores, organizações não-governamentais com diferentes estruturas e abrangências, projetos sociais, entre outros, constituindo uma espécie de chão “comum” que vai além da representação e da relação econômica.
Esse esquema não esgota possibilidades e considera a interpenetração e interdependência entre cada grupo tipificado ou o pertencimento de uma organização ou mesmo de uma pessoa a todos eles ao mesmo tempo ou apenas a um deles, com maior ou menor engajamento. Trata-se simplesmente de uma estrutura que pretende mostrar como os modos de organização permeiam a sociedade e a vida cotidiana, sendo importantes para entender a forma pela qual as pessoas agem em conjunto de forma complexa.
Em uma perspectiva histórica dos estudos organizacionais na vertente empresarial, Mauricio Tragtenberg (1974) analisa a passagem do capitalismo liberal para sua fase monopolista entre o final do século XIX e o início do século XX. Nessa passagem, a crítica macro de teóricos como Saint Simon, Fourier e Marx às consequências iniciais da Revolução Industrial na segunda metade do século XIX, que tinham em mente sua mudança e superação sistêmica, no caso do marxismo, dão lugar ao domínio de teorias administrativas micro que pregavam a integração e a harmonização no início do século XX, tendo em Taylor e Fayol os teóricos de uma administração científica das empresas que se organizavam em uma segunda fase da Revolução Industrial, permeada pelo advento da eletricidade, da máquina a vapor e da divisão de tarefas.
Essas mudanças já envolviam a implantação tecnológica, ainda que não contassem com o corte de pessoas como forma de ajuste estrutural, mas com o aproveitamento máximo dos trabalhadores, que tem no estudo de tempos e movimentos o triunfo da racionalidade burocrática que se materializava em uma estrutura de comando, que Max Weber identificava como autoridade racional-legal (TRAGTENBERG, 1974).
Essa estrutura vigorou, com adaptações como o falso participacionismo da Escola das Relações Humanas que veio para se contrapor ao fortalecimento dos sindicatos, até os anos 1950-60, quando uma perspectiva sistêmica e estruturalista passa a ser preponderante, com a empresa sendo vista como organismo. Nos anos 1970, a hegemonia passa a ser da abordagem contingencial, que previa a adaptação permanente ao ambiente, como descrito na análise de Ana Paula Paes de Paula (2002), que vai apontar o toyotismo como paradigma administrativo estabelecido a partir de então, refletindo as transformações do capitalismo, com implantação tecnológica e corte de pessoas.
Cabe pensar em uma hipótese secundária que merece ser observada: durante a pandemia do novo coronavírus, os modos de organização empresariais vão intensificar a tendência de implantar tecnologias e cortar pessoas, que já dura ao menos cinquenta anos, associada às transformações do Estado em sua trajetória neoliberal no mesmo período (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009; LAZZARATO; NEGRI, 2013; BROWN, 2019).
Por outro lado, a financeirização e virtualização da economia mundial se intensifica a partir dos anos 1970 e atinge seu auge na virada do terceiro milênio, como destacado por Marildo Menegat (2019) em sua análise recente do capitalismo, sendo acompanhada por sucessivas implantações tecnológicas, a ponto de passarmos por novas fases da Revolução Industrial, com a microeletrônica, nos anos 1970, e com a internet, nos anos 1990, que levaram à redução de pessoas, com a explosão da terceirização, em alguns casos quarteirização, e a concentração do trabalho no setor de serviços, de forma cada vez mais imaterial, como nos mostra Maurizio Lazzarato (2013).
Luc Boltanski e Eve Chiapello (2009), ao apontarem para a consolidação de um novo espírito do capitalismo ao longo dos anos 1990, enfatizam a passagem da administração por objetivos das organizações empresariais no final dos anos 1960 para o modelo de rede de empresas que se configura ao longo dos anos 1990, destacando a gramática dessas transformações com foco no empreendedorismo, na meritocracia e nas plataformas tecnológicas, posteriormente digitalizadas e individualizadas nos sites de redes sociais, constituindo um paradigma da rede que vigora. Neste ponto, podemos trazer mais uma hipótese secundária: neste processo, a margem de autonomia é cada vez menor frente aos estratagemas de controle que o aparato corporativo-estatal refina e individualiza.
Até aqui delineamos tendências que se constituíram ao longo dos últimos dois séculos em que o capitalismo se consolidou como sistema econômico dominante. Se nos voltarmos para o grupo das organizações políticas, o Estado de Bem-Estar Social, que volta de forma saudosista em momentos de crise a partir da sua derrocada nos anos 1990 com o establishment neoliberal, somente surgiu como paliativo durante os trinta anos seguintes do fim da Segunda Guerra Mundial, em especial por conta da “ameaça comunista” que não passava de um capitalismo de Estado, tendo na burocracia o comando dos processos, como tão bem nos mostra Mauricio Tragtenberg (1974). Quando analisamos o contexto brasileiro, a situação se agrava, tendo em vista que só vislumbramos esse Estado de Bem-Estar Social na letra da Constituição de 1988 pelo fato de seu desmonte ter ocorrido junto com a tentativa de sua implementação.
Por outro lado, a crise da representação política nada mais é do que a falência desta, como mostra a filósofa Camila Jourdan (2018). Trata-se sobretudo de lidar com a morte da política na era da ascensão dos dados como capital a ser gerido pelas corporações tecnológicas, tais como Google, Facebook, Microsoft, Amazon e Apple, que ampliam as fronteiras de atuação com a implantação da inteligência artificial e dos algoritmos, como aponta Evgeny Morozov (2018). O que resta da representação política é um esboço da miragem dos anos dourados do capitalismo da social democracia, em que os regimes de Bem-Estar Social pintavam uma democracia ocidental que parecia uma vantagem competitiva frente às burocracias autoritárias que permeavam o bloco comunista.
Sem a “ameaça comunista”, o capital pode retomar seus monopólios e o fechamento democrático se torna uma tônica que estava presente desde antes da pandemia do novo coronavírus, vide a ascensão antidemocrática que tomou de assalto o mundo a partir da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos em 2016, cujos efeitos vivenciamos diretamente desde 2019 com a eleição de Jair Bolsonaro. O Estado, tido como organização política maior e soberana, se torna cada vez mais imbricado com as corporações, sendo que, no Brasil, o imbricamento com organizações religiosas e a participação cada vez maior dos militares na organização política complexificam a questão.
Um exemplo claro é o solucionismo tecnológico adotado nos tempos da pandemia do novo coronavírus em que as propostas de monitoramento e controle das corporações se expande no vácuo de investimentos sociais do Estado mínimo das ruínas do neoliberalismo, que Wendy Brown (2019) analisa, para dar conta da necessidade de isolamento social, em especial num país periférico e extremamente desigual como o Brasil, mergulhado num processo político mórbido que tem na desinformação uma forma de dominação técnico-política tecido pelos atores políticos que operam no atual governo federal. No lugar de políticas públicas de saúde ficamos reduzidos a uma espécie de atendimento just in time que provoca a superlotação dos leitos e abre espaço para mais estratégias de controle individualizado viabilizado pelas tecnologias da informação e comunicação e pelo gerenciamento dos dados por corporações tecnológicas.
No mundo conexionista, as organizações empresariais desempenham uma função de mobilização, engajamento e participação das pessoas em suas campanhas que importam mais até do que as organizações políticas reconhecidas como legítimas. No fundo, quando pensamos nas corporações tecnológicas globais, que tendem a ser as impulsionadoras das tendências expansionistas do capital, estas atuam como governos na contemporaneidade, borrando o esquema inicial que propus, se este for tomado de forma rígida, tendo em vista que é uma separação meramente analítica e esses grupos de organizações tendem a se entremear.
Desta forma, o desafio no nível político das organizações envolve pensar cada vez mais nas formas de lidar com a falência da representação na medida em que as estruturas políticas contam com legitimidade cada vez mais diminuída frente aos cidadãos na era das redes. Cabe fundamentalmente pensar em novas estruturas que sejam construídas sob outros referenciais, com novos mediadores e um trabalho contínuo que considere fundamentalmente o nível social-comunitário, tendo em vista que nem tudo está sob a dominação corporativo-estatal.
É válido pensar no papel das organizações sociais e comunitárias que foram responsáveis pelas transformações do capitalismo antes da pandemia. A possibilidade de disputa se dá por esses modos de organização que envolvem a sociedade numa perspectiva comunitária menor, de uma micropolítica pela qual conseguem se fazer também organizações políticas, tecendo suas ações a partir do cotidiano, resistindo aos ajustes estruturais, possibilitando táticas de autonomia frente à intensificação dos controles em curso no âmbito das organizações empresariais e políticas no que estou chamando de aparato corporativo-estatal.
Neste sentido, Rodrigo Nunes (2014) ressalta as revoltas decorrentes da organização social e comunitária, destacando a Comuna de Paris, em 1871, a Revolução Russa, em 1917, as revoltas antidisciplinares, da década de 1960, o ciclo altermundialista do final da década de 1990 e início dos anos 2000, e, por fim, o ciclo de lutas que tomou o mundo entre 2010 e 2014. O autor propõe uma reflexão sobre a organização dos que não estão engajados em uma organização formalmente definida para pensar a ação coletiva depois que o paradigma da rede se estabeleceu. No entanto, todos esses acontecimentos vieram acompanhados de um processo de captura e reação por parte do aparato corporativo-estatal que atua de forma complementar: o capital como lócus da inovação e o Estado como aparato repressivo se combinam em algum grau.
Cabe destacar que, no Brasil, as organizações religiosas desempenham um papel fundamental no cenário político de uma forma heterogênea. Se as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica foram fundamentais no processo de formação do Partido dos Trabalhadores (PT) ao longo da década de 1970, hoje assistimos ao avanço evangélico, sobretudo em sua vertente neopentecostal, que não pode ser reduzida à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), cujo fundador é dono da Rede Record de Televisão e apoiador do atual presidente eleito, sendo apropriado lembrar que foi também apoiador dos governos petistas entre 2003 e 2016, bem como do governo-tampão de Temer (2016-2018). Esse breve exemplo visa evidenciar não só a importância das instituições religiosas na sociedade brasileira, mas a interpenetração dos três grupos de modos de organização nos quais a presente análise se baseia.
Assim, volto à hipótese principal trazendo a perspectiva de Bruno Latour (2020), que enxerga a pandemia do novo coronavírus como um divisor de águas entre os ecologistas, que aproveitarão para dizer um “paremos tudo e não voltaremos a ser como antes”, e os entusiastas da globalização, que intensificam o padrão que nos trouxe até aqui e nos legou a pandemia, fruto do deslocamento das fronteiras agrícolas no país mais populoso do mundo, que passou de um país agrícola até os anos 1970 para se configurar como a atual indústria do mundo.
Trata-se de uma disputa extremamente desigual, que contrapõe uma estrutura corporativo-estatal e suas ramificações globais que se estabeleceram ao longo de pouco mais de dois séculos e uma porta de reflexão em um tempo suspenso para poucos, tendo em vista que os pobres, que são maioria no mundo, não têm possibilidade de quarentena. Até que ponto esse espaço confinado e sem possibilidade de ampla articulação pode viabilizar que se consiga “parar tudo” como preconiza Latour (2020)? Neste sentido, podemos vislumbrar que a pandemia se transforma em oportunidade para que as organizações empresariais e políticas, em especial as que já se encontravam estabelecidas, aumentem sua dominação, essa palavra que anda esquecida, talvez por permear quase que como uma segunda natureza as sociedades contemporâneas.
Por fim, a presente reflexão nos leva a pensar em um cenário de maior fechamento das possibilidades autônomas, que já enfrentavam dificuldades de serem tecidas no estágio atual do capitalismo. As apostas em um mundo melhor possível, que os Fóruns Sociais Mundiais surgidos em 2000 vislumbravam, se estreitam cada vez mais. A dissolução atual não se mostra como prenúncio de revolução, mas do triunfo dos modos de organização empresariais e políticas que aumentam a dominação sobre ampla parcela da sociedade.
A hipótese que deve ser acompanhada, portanto, é de que a pandemia do novo coronavírus pode acelerar uma nova leva de implantação tecnológica e corte de pessoas vistas como insumos descartáveis por parte das organizações empresariais e políticas. Não se trata de um processo linear: muitas organizações empresariais, em especial de pequeno e médio porte que atuam nacional e localmente, podem fechar suas atividades, gerando uma nova onda de desemprego e precarização que tende a aumentar a desigualdade e a miséria global a ponto de propostas como a renda básica universal, vista como revolucionária ou radicalmente democrática nos anos 1980 e 1990, agora podem passar a ser estimuladas pelo consórcio corporativo-estatal como forma de dominar e conter a revolta que o campo das organizações sociais podem trazer em seu seio frente às novas condições de vida.
Notas:
¹Professor de Estudos Organizacionais no Departamento de Administração da UFRJ. E-mail: marcelo.castaneda@facc.ufrj.br
² Este ensaio é fruto dos diálogos com Lucas Casagrande (professor de Estudos Organizacionais da UFRGS), com quem desenvolvo uma pesquisa sobre rearranjos organizacionais e modos de vida durante a pandemia do novo coronavírus. Trata-se de uma primeira aproximação sobre o tema.
Referências:
BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Eve. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politéia, 2019.
JOURDAN, Camila. 2013: memórias e resistências. Rio de Janeiro: Circuito, 2018.
LATOUR, Bruno. Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise. Tradução por Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro. N-1 edições, São Paulo, 008, 29 mar. 2020. Disponível em: https://n-1edicoes.org/008-1. Acesso em: 22 abr. 2020.
LAZZARATO, Maurizio; NEGRI, Antonio. Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2013.
MENEGAT, Marildo. A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe: o giro dos ponteiros de um relógio no pulso de um morto e outros ensaios. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.
MOROZOV, Evgeny. Big Tech: a ascenção dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu, 2018.
NUNES, Rodrigo. Organisation of the organisationless: collective action after networks. Lünenburg: PML Books & Mute, 2014. Disponível em: https://www.metamute.org/editorial/books/organisation-organisationless-collective-action-after-networks. Acesso em: 19 fev. 2020.
PAES DE PAULA, Ana Paula. Tragtenberg revistado: as inexoráveis harmonias administrativas e a burocracia flexível. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 1, p. 127-144, jan./fev. 2002. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/6431. Acesso em: 10 jul. 2019.
TRAGTENBERG, Mauricio. Burocracia e ideologia. São Paulo: Ática, 1974.