Museu da Maré e a produção de cultura e memória pelas e para as favelas

Boletim nº 75, 30 de novembro de 2023

Colaboraram com a matéria os/as discentes do GPDES Amanda Goulart, Ellen Cristine, Gabriel Rigas, Manuella Mello e Luisa Maravilhas.

 

“Favela”: ao lermos esta palavra, nosso subconsciente nos leva a um cenário estigmatizado, tomado por imagens de precariedade e violência, alimentadas pela grande mídia. Na contra-mão desse imaginário negativo, temos o Museu da Maré, um espaço contra-hegemônico, que tem como objetivo trazer a historicidade e diversidade cultural presente no seu complexo de favelas. 

O Museu da Maré surgiu no ano de 2006, em conjunto com o CEASM (Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré).  O CEASM é formado por um grupo de moradores e ex-moradores da comunidade do complexo que, a partir do acesso à formação universitária, se dedicaram à promoção do acesso à cultura, comunicação, pesquisa, educação e memória para outros moradores do conjunto de favelas da Maré. 

Além da capacidade de subsistência e adaptabilidade, presentes em todas as favelas do Rio de Janeiro, a Maré se destaca pelo seu poder de organização popular, que produz grandes resultados, como por exemplo, a inserção de inúmeros jovens em universidades todos os anos, com o apoio de projetos comunitários, e o Museu da Maré.

 O acervo do Museu da Maré é constituído por materiais e registros doados pelos próprios moradores e dotados de relevante valor comunitário e cultural. A partir desse acervo, o Museu conta a história da formação e do desenvolvimento do Complexo da Maré em uma experiência imersiva dividida em 12 tempos, percorrendo temas que abordam desde o passado até situações contemporâneas. Entre os tempos dos quais trata o museu estão o tempo da água, casa, migração, resistência, trabalho, festa, feira e fé. Embora diferentes, são temas que se conectam de diversas maneiras na história da comunidade e seus moradores.

O Complexo da Maré nasceu em uma área de manguezal, limítrofe à Baía de Guanabara, junto a uma antiga comunidade de pescadores. O museu conta com um exemplar de uma casa de palafita, que ilustra o início da ocupação da região, que se deu por esse tipo de construção em razão da proximidade com a água. O ponto de partida para expansão da comunidade foi a construção da Avenida Brasil, na década de 1940, como estratégia de crescimento urbano e viabilização comercial, facilitando o fluxo de mercadorias das indústrias em um momento de grandes investimentos em desenvolvimento econômico no país. A construção da avenida, que vem a ser a maior via expressa do país, atraiu a vinda de milhares de migrantes nordestinos, que deixaram sua terra natal em busca de uma melhores condições de vida, diante de uma grande seca que acometeu a região. A maior parte dos imigrantes que começou a trabalhar nas construções não possuía local de moradia e passou a ocupar os arredores da via em construção. 

Essa ocupação representa um movimento de resistência, uma vez que envolve a luta da população para conseguir acesso a condições básicas de existência. Ao mesmo tempo, essa resistência rende frutos de significativa riqueza cultural, que se revelam na realização das festas, das feiras e na enorme diversidade de crenças presente na região do complexo. 

Imagem: Gabriel Rigas

Seguindo adiante na experiência imersiva do museu, entramos nos tempos do cotidiano, criança, medo e futuro, que possuem uma relação direta com a realidade vivida na favela e com o que se projeta sobre ela. O  tempo cotidiano mostra as transformações pelas quais passou  o Complexo da Maré, que podem ser observadas pela mudança estrutural das residências ocorrida a partir da troca de palafitas por casas de alvenaria. Por sua vez, o tempo da criança, que antecede o tempo do medo e do futuro, conta com um trecho da música A Vida é Desafio do grupo Racionais MC’s que diz “Olhe as crianças que é o futuro e a esperança”.  Sob essa inspiração o museu aborda a criatividade e a capacidade de adaptação que só as crianças conseguem ter e retrata esse universo a partir dos brinquedos e das brincadeiras que marcaram a comunidade ao longo do tempo.   

O tempo do medo, que vem na sequência, realiza uma viagem temporal que expõe inseguranças antigas e atuais. Entre os temores antigos está o medo das más condições de vida e de habitação dos moradores, tendo em vista o uso de palafitas e outros materiais inadequados nas construções, que deram causa a incidentes e a eventos trágicos nos quais muitas mães perderam seus filhos. Nos dias de hoje, o medo se materializa de maneira distinta, mas conectada, sendo retratado por projéteis e moldes em 3d de paredes atingidas por tiro. Essas imagens nos transmitem a realidade de terror que moradores de favela vêm enfrentando, marcada por incursões estatais extremamente violentas e atabalhoadas, além de disputas territoriais entre traficantes. 

Por fim, a exposição possui como último tempo o tempo do futuro que faz alusão à memória de Marielle Franco, uma mulher negra que nasceu na favela da Maré e conseguiu alçar voos em meio a tantas dificuldades, tornando-se socióloga com mestrado em administração pública e, superando uma grande barreira, entrou para a política institucional, tornando-se vereadora do Rio de Janeiro. A trajetória de Marielle serve de exemplo e de inspiração para outros jovens habitantes da Maré que se espelham na sua história, brutalmente interrompida pelo seu assassinato, em março de 2018, ainda pendente de esclarecimento em relação aos mandantes. Mesmo após sua morte, Marielle continua inspirando jovens periféricos que sonham ter uma vida digna e transformar sua realidade.

Imagem: Gabriel Rigas

Em entrevista com a coordenadora do Museu da Maré, Cláudia Rose Ribeiro da Silva, formada em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1991) e com mestrado profissionalizante em Bens Culturais e Projetos Sociais pela Fundação Getúlio Vargas (2006), tivemos a oportunidade de conhecer melhor  sobre a história do museu e suas perspectivas. 

Estudantes GPDES: Qual foi o ponto de partida para criação do Museu da Maré?

Claudia (Museu da Maré): “O Museu da Maré, fundado no dia 8 de maio de 2006, nasceu do desejo e das ações das moradoras e dos moradores locais para preservar suas memórias e histórias. Ao mesmo tempo, o Museu é o resultado da interação de diferentes agentes sociais, o que garante sua pluralidade. O Museu foi criado a partir do acervo constituído pelo projeto anterior, chamado Rede Memória da Maré, de 1998, desenvolvido pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), instituição gestora do Museu.”

Estudantes GPDES: Qual é a missão principal do Museu da Maré e como ela se relaciona com a comunidade local?

Claudia (Museu da Maré): “O Museu tem como missão a superação dos estigmas em relação às favelas por meio de ações que visam preservar, valorizar e divulgar as memórias e histórias das moradoras e dos moradores da Maré, além de colaborar com o processo de alargamento da perspectiva do papel dos museus na realidade contemporânea. Dessa forma, o Museu está aberto às ações desenvolvidas pela comunidade e por grupos, coletivos, instituições e pessoas de outras localidades. Atualmente, os projetos desenvolvidos atendem cerca de 500 pessoas. As escolas públicas do entorno são as principais parceiras do Museu. A exposição de longa duração, Os Tempos da Maré, já recebeu mais de 80 mil visitantes.

Estudantes GPDES: Quais são os projetos futuros ou metas do Museu da Maré para continuar levando promoção cultural para favela?

Claudia (Museu da Maré): “O Museu tem como principal projeto a ser implementado a popularização do uso de energias renováveis – como a energia solar, já em uso no Museu -, por meio de ações educativas e parcerias com instituições locais, especialmente as escolas.”

 

Espaços como o Museu da Maré são de extrema importância para o resgate de memórias e para a promoção da cultura dentro das comunidades, desmistificando a ideia de que a favela só possui violência e miséria. Mesmo sendo uma população que sofre diretamente com o descaso e a violência do Estado e com os estigmas da mídia hegemônica, destaca-se a capacidade de organização e de atuação engajada e cooperativa para a elaboração de um projeto tão ambicioso e significativo.  

Ao ressignificar essa visão preconceituosa e simplista, o Museu da Maré desempenha um papel fundamental de ativar a memória e a cultura como instrumentos de luta e de transformação social.