O coronavírus e a situação dos trabalhadores invisíveis no Brasil

Boletim nº 27 – 04 de julho de 2020

 

Por Leandro Ribeiro Duarte¹

 

Um novo vírus que passamos a conhecer como Sars-CoV-2 ou, comumente, novo coronavírus impôs novas relações socioespaciais, escancarou diversas contradições do capitalismo ao grande conjunto da sociedade brasileira e mundial. As limitações de acesso, de estrutura e de capilaridade dos sistemas de saúde têm sido o grande desafio para a contenção do vírus em diversos países. No entanto, a pandemia atinge de forma singular cada uma das formações socioespaciais no mundo. Há países, como a Itália, Estados Unidos da América e Brasil, que em espaços temporais diferentes desde o início da disseminação do vírus pelo mundo, apresentaram altas taxas de propagação do vírus e expressivos números de casos e mortes.

No Brasil, o vírus se dissemina desigualmente no território. Os espaços luminosos (SANTOS & SILVEIRA, 2001) são os primeiros a serem atingidos por conta da densidade técnica e informacional que promovem a aceleração contemporânea e a rapidez ao território, tornando o contágio mais acelerado. Paralelamente, os lugares com conexões aéreas constantes com o exterior foram aqueles com os primeiros casos de contaminação, ainda na primeira fase epidemiológica da disseminação, como São Paulo e Rio de Janeiro.

Pelo fato de que tais capitais são metrópoles nacionais, aquelas que possuem forte ligação e circulação com o restante do país, não demorou para que a pandemia atingisse a fase de contaminação comunitária e para que o vírus fosse disseminado para outros lugares, sobretudo em capitais dos estados que também possuíam alguma conexão com o exterior, grande rede urbana e altos índices de desigualdade. Assim, após alcançar as principais capitais do Brasil, o vírus se espalha com mais intensidade no interior de cada estado.

Observamos, pois, uma hierarquização de lugares atingidos pela pandemia. Assim como as modernizações, o vírus não impacta todos os lugares ao mesmo tempo. Por um lado, isso faz com que cada lugar se prepare para a possível chegada do vírus e, por outro, torna aqueles espaços opacos (SANTOS & SILVEIRA, 2001) como abrigos temporários contra o vírus, opondo-se aos espaços luminosos. Essa viscosidade e lentidão dos espaços opacos garantem, também, a baixa disseminação e o controle maior dos casos. O lugar luminoso, por sua vez, apresenta consequências terríveis, como o crescente número de casos e mortes causados pelo novo coronavírus.

É bom enfatizar que, para além de leituras verticais, a sobreposição de dados territoriais genéricos permite compreender parcialmente a realidade. A densidade demográfica, por exemplo, precisa ser cuidadosamente aplicada ao tratar da maior possibilidade de propagação do vírus à medida que a densidade demográfica aumenta. Ora, não podemos comparar, por exemplo, uma favela aos condomínios de prédios de classe média, mesmo que a densidade seja aproximada.

Nas favelas e aglomerados, as pessoas vivem em moradias (barracos e malocas) minúsculas e precisam dividir um cômodo com outros indivíduos. Nos condomínios de prédios de classe média, as pessoas têm mais possibilidade de permanecer isoladas em cada cômodo do apartamento, o que diminui a chance de contágio. Além disso, a maior probabilidade de contágio, como bem lembra Torres & Linke (2020), ocorre pela ausência de políticas públicas e de infraestruturas dignas de moradia e saneamento básico, e não diretamente por conta da densidade demográfica.

Essa evidência não foi um dado trazido pelo coronavírus, tampouco por qualquer outra enfermidade. A questão, afinal, é a desigualdade social. O vírus causador da doença é o organismo que escancara os problemas perenes do atual modelo de sociedade.

Enquanto isso, nas grandes metrópoles brasileiras, lemos interpretações perigosas, e talvez intencionais, de “democratização do vírus” e de que “estamos todos no mesmo barco”, tão proferidas nestes tempos de isolamento físico. Elas são totalmente irracionais quando colocam a disseminação do vírus à parte das desigualdades sociais do Brasil. Tais expressões induzem à noção de que todas as pessoas passam pelas mesmas dificuldades e angústias. O fato é que, biologicamente, todos podem se contaminar com o vírus, mas não são todos que se expõem ao risco de vida.

Os trabalhadores e as trabalhadoras do circuito inferior da economia (SANTOS, 2008[1975]) não têm a possibilidade de isolamento, isso é um fato. As transferências de renda, nesse sentido, são tênues em tempos de crise. A sobrevivência é o imperativo. Aqueles outros trabalhadores e trabalhadoras, sob o regime da CLT, veem seus patrões fazendo carreatas, ignorando todas as recomendações sanitárias, apoiando o retorno das atividades econômicas ainda que diante de uma pandemia e, assim, impondo seus funcionários ao risco de morte. Os trabalhadores não existem para além da força de trabalho. Essa desumanização, também, não é um dado trazido pelo coronavírus, é a tônica do modelo capitalista de produção.

Mas, e quando os trabalhadores não são denominados como “trabalhadores” e sim como “microempreendedores” ou “motorista-parceiro”? E quando são paulatinamente convencidos de que são “microempreendedores”? Vejamos o caso mais emblemático e atual: os motoristas e entregadores de aplicativos no Brasil, especialmente aqueles das grandes metrópoles brasileiras.

Diferentemente de outras formações socioespaciais, o Brasil, assim como os demais países da América Latina, não rompeu com práticas historicamente exploratórias em relação ao trabalho.  Segundo Quijano (2013), as relações de trabalho continuam sendo aquelas de extrema exploração e precarização, desde a escravidão e servidão até o trabalho assalariado. A ordem apenas se altera ao longo dos últimos 500 anos. O que constatamos, portanto, é a precarização estrutural nas relações de trabalho no Brasil.

Não obstante, as políticas neoliberais, praticadas principalmente a partir da década de 1990, levaram à flexibilização das relações trabalhistas e à retirada de direitos[2]. O resultado, como lembra Antunes (2005), é o desemprego estrutural, cujo um dos picos ocorreu ao longo da década passada e com efeitos nefastos em 2020.

Dessa forma, não coincidentemente, a principal empresa da economia do compartilhamento instala-se no país no mesmo período. A Uber inicia suas atividades em 2014, aproveitando-se do megaevento da Copa do Mundo no Brasil. Observa-se, também, a emergência de outras empresas do mesmo seguimento, como a 99 e a Cabify. Segundo Duarte (2019), a Uber está em 126 regiões de atuação, a 99 em 1.693 municípios e a Cabify em 8 municípios. Cada uma delas tendo estratégias territoriais distintas de atuação.

O número de motoristas por aplicativos no Brasil é assustador. A maior empresa de transporte privado de passageiros, a Uber, possui cerca de 1 milhão de parceiros (motoristas/entregadores)[3]. A 99, a segunda maior empresa do setor, possui mais de 600 mil motoristas em sua plataforma[4].

De maneira análoga, a maior empresa de entrega delivery do país, a Ifood, é criada em 2011 e recebe grandes aportes financeiros a partir de 2015. Essa empresa, hoje, está em cerca de 1.000 municípios brasileiros e possui 170 mil entregadores cadastrados em sua plataforma[5].

Esse contingente de trabalhadores encontrou nas empresas de transporte privado de passageiro e de delivery uma alternativa de sobrevivência. No entanto, o pico do desemprego estrutural dos últimos anos não foi a única razão para a grande inserção de motoristas e entregadores nessas plataformas.

A psicoesfera[6], como bem ressalta Santos (1994), foi muito importante para que houvesse uma migração de trabalhadores para as plataformas. A psicoesfera do micro empreendedorismo, promovida pelas empresas, carrega um conjunto de símbolos, signos e ideias que resultam em novos motoristas. Não é incomum encontrarmos frequentemente as propagandas da Uber[7], da 99 e da Ifood em sites, em vídeos do YouTube e na televisão com o discurso do micro empreendedorismo, da flexibilidade e da mobilidade atrelada aos anúncios. Elas têm dois focos: 1) Atrair mais motoristas/entregadores para a plataforma, pois a oferta de carros/entregadores deve ser sempre maior do que a demanda por corridas/pedidos; e 2) incentivar mais pessoas a usarem os serviços. Assim, uma estratégia alimentará a outra em um ciclo virtuoso para a empresa.

A lógica de empreendedor individual, a máxima meritocrática delirante e a moral cega do trabalho, bem como a autodenominação do serviço em relação entre a plataforma e os motoristas/entregadores, fazem com que eles se mantenham como trabalhadores explorados com a insígnia de um empreendedor.

Observa-se que os motoristas e entregadores são submissos às plataformas e a seus algoritmos. Eles não possuem controle em relação ao valor das corridas e entregas, tampouco dominam a informação que é extraída dos deslocamentos que realizam. No caso dos motoristas, as informações, ditas banais, são extraídas, compiladas, processadas e tratadas para servirem como informação estratégica pelas empresas (Tozi, 2018; Duarte, 2019; Castanheira, 2019). Quer dizer, as informações dos motoristas são utilizadas contra eles à medida que não são restituídos do recurso que oferecem às corporações.

Por outro lado, mesmo antes da pandemia, a realidade não era de um empreendedor. No caso dos aplicativos de transporte privado de passageiros, os motoristas relatam que trabalham cerca de 12 a 16 horas por dia, atravessando a madrugada. Em registro de pesquisa foi encontrado alojamento de motoristas, próximo ao Aeroporto Internacional de Confins, com colchões no chão e, os que não tinham condições para alugar um quarto no alojamento, dormiam nos próprios carros. Tudo para conseguirem alguma corrida de valor maior (Duarte, 2019; Castanheira, 2019).

No caso das empresas de entrega delivery, a relação de vulnerabilidade já era posta em vários momentos. Há registros de mortes de entregadores e negação de responsabilidade[8] por parte de uma outra empresa do setor, a Rappi. Em 2019, um entregador dessa empresa foi vítima de um AVC (Acidente Vascular Cerebral) enquanto realizava entregas pela plataforma. Algumas pessoas próximas ao fato entraram em contato com a empresa e, ainda segundo relatos, a Rappi não forneceu ajuda e ainda indagou: “então ele não vai poder finalizar nenhuma das próximas entregas?”.

Essas empresas sempre evocam a justificativa de que são intermediadoras entre motoristas/entregadores e passageiros/clientes. Qualquer evento que ameace essa máxima das corporações é rapidamente coibido, quer por práticas jurídicas, quer pela implantação de assistência aos trabalhadores. Vejamos o momento atual: a pandemia. A Uber e a Ifood implantaram políticas de assistência aos motoristas e entregadores, desde a disponibilização de renda básica até a distribuição de álcool em gel e produtos de higiene. Essas práticas evitam que a situação precária desses trabalhadores se escancare ainda mais e possa ameaçar a atividade nos lugares, mesmo que isso contradiga toda a relação que essas empresas sempre insistiram.

Para isso, as empresas abandonam o discurso do empreendedorismo e ajudam os motoristas e entregadores como se fossem empregados das empresas. Não é uma contestação da ajuda aos trabalhadores, mas é uma constatação de uma estratégia interesseira que visa, apenas, a perenidade do serviço[9]. Isso pode acontecer por algumas razões, como: 1) sem materiais de proteção aos motoristas, eles poderão adoecer com facilidade e, assim, os usuários podem evitar o serviço com receio de contaminação; 2) caso os motoristas faleçam com SRAG, poderão desfalcar o exército de motoristas em diversos lugares; e 3) sem assistência, as contradições, já visíveis, poderão ficar extremamente escancaradas e, assim, levantar um debate sobre a natureza da relação entre trabalhadores e plataformas.

Com isso, é conclusivo que a pandemia do coronavírus não criou a fragilidade de tais motoristas/entregadores. Em outra perspectiva, ela evidenciou quem são os mais vulneráveis em nossa sociedade. Diferentemente de alguns profissionais que podem se isolar ou optar por trabalharem em condições adequadas, os motoristas e entregadores não têm essa possibilidade, pois nunca foram oferecidas as condições mínimas de seguridade. Para esses, a sobrevivência é a lógica, com ou sem pandemia. Eles e elas sempre estão na condição de risco iminente de vida, haja vista o número de assaltos, assassinatos e latrocínios de que já foram vítimas.

Em última análise, o avanço e a sedimentação no neoliberalismo no Brasil acompanham, inevitavelmente, a retirada de direitos e as progressivas mutações das relações trabalhistas que favorecem as grandes corporações. É desconhecido para todos se essas relações vão se modificar em um mundo pós-pandemia, tampouco se as disparidades escancaradas pelo vírus terão influência sobre a organização dos motoristas/entregadores ou se estabelecerá um debate mais generoso e honesto em relação ao tema no Brasil. O que sabemos é que nada poderá ser como antes da pandemia.

 

 

Agradecimentos: Ao Ministério Público do Trabalho da 3ª Região pelo financiamento e à UFMG pelo suporte necessário oferecido ao projeto de pesquisa “Plataformas digitais de transporte privado por aplicativo e novas relações de trabalho em Belo Horizonte (MG)”

 

 

¹Graduado em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador do Observatório das Plataformas Digitais (OPD) do departamento de Geografia da UFMG.

 

 

Notas: 

1. Texto produzido a partir de pesquisas, em andamento, realizadas no projeto “Plataformas digitais de transporte privado por aplicativo e novas relações de trabalho em Belo Horizonte (MG)” por meio de convênio firmado entre o Ministério Público do Trabalho da 3ª Região e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

2.  Uma verificação simples é acessar a CLT – Consolidação das Leis do Trabalho – e constatar o número de artigos e incisos excluídos ou alterados a partir da década de 1990. BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho nº 5452, de 1 de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Consolidação das Leis do Trabalho, Brasil, 1 maio 1943. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em: 9 jun. 2020.

3. UBER (Brasil). Fatos e Dados sobre a Uber. Brasil, 18 fev. 2020. Disponível em: https://www.uber.com/pt-BR/newsroom/fatos-e-dados-sobre-uber/. Acesso em: 9 jun. 2020.

4.  99 (Brasil). Sobre a 99. Brasil, 2020. Disponível em: https://carreiras.99app.com/sobre-a-99/. Acesso em: 9 jun. 2020.

5.  Durante a Pandemia, o número de entregadores cresceu 12,7% entre março e abril de 2020. RODRIGUES, Douglas. Número de restaurantes que aderiram ao iFood salta 12,7% em meio à pandemia. Poder 360, [S. l.]. 23 maio 2020. Disponível em: https://www.poder360.com.br/economia/numero-de-restaurantes-que-aderiram-ao-ifood-salta-127-em-meio-a-pandemia/. Acesso em: 9 jun. 2020.

6. Anteriormente pensado por Delgado de Carvalho (1940), a psicoesfera deve ser pensada como uma das camadas da Terra para entender o espaço do Homem. Avançando nesse conceito, Santos (1994) ressalta que “a psicoesfera é o resultado das crenças, desejos, vontades e hábitos que inspiram comportamentos filosóficos e práticos, as relações interpessoais e a comunhão com o Universo”.

7. A Uber, por exemplo, tem a publicidade e o marketing como segundo maior gasto da corporação. SECURITES AND EXCHANGE COMMISSION (Estados Unidos). Form S-1 Registration Statement. Estados Unidos, 11 abr. 2019. Disponível em: https://www.sec.gov/Archives/edgar/data/1543151/000119312519103850/d647752ds1.htm. Acesso em: 9 jun. 2020.

8. VIEIRA, Nathan. Rappi e Uber negam responsabilidade sobre a morte de entregador em SP. Canaltech, Brasil, 29 jul. 2019. Disponível em: https://canaltech.com.br/apps/rappi-uber-negam-responsabilidade-morte-entregador-sp-145251/. Acesso em: 9 jun. 2020.

9. Tal realidade fica ainda mais evidente após a má repercussão em relação ao tratamento das empresas para com os entregadores. A Ifood acionou a justiça para não auxiliar seus entregadores após uma determinação judicial a obrigando. Quando a situação foi mal recebida pela sociedade, a empresa recuou e iniciou as tratativas para ajudar os trabalhadores. A não ajuda poderia criar um boicote ao aplicativo pelos clientes.

 

 

Referências:

ANTUNES, Ricardo. A desertificação neoliberal no Brasil: Collor, FHC e Lula. 2ª ed. Campinas: Autores Associados, 2005.

CARVALHO, Delgado de. Evolução da geografia humana. Boletim Geográfico, Rio de Janeiro: IBGE, v. 3, n. 33, p.1163-1172, dez. 1945. Conferência pronunciada no IX Congresso Brasileiro de Geografia, Florianópolis, 1940.

CASTANHEIRA, Gabriel Rocha. Território nacional e precarização do trabalho: a Uber e o espaço enquanto dado ativo na Região Metropolitana de Belo Horizonte. 2019. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Geografia) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.

DUARTE, Leandro. O território como recurso e a informação como estratégia das corporações de transporte por aplicativo no Brasil. 2019. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Geografia) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.

QUIJANO, Aníbal. El trabajo. Diversa, ano 26, n. 72, mai./ago. 2013.

SANTOS, Milton. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana. 2ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008[1975].

SANTOS, Milton; SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. São Paulo: Editora Record, 2001.

TORRES, Pedro; LINKE, Clarisse. Covid-19 e a política urbana: a densidade não é a vilã. Le Monde Diplomatique, Brasil, 8 maio 2020. Disponível em: https://diplomatique.org.br/covid-19-e-a-politica-urbana-a-densidade-nao-e-a-vila/. Acesso em: 9 jun. 2020.

TOZI, Fábio. As novas tecnologias da informação como suporte à ação territorial das empresas de transporte por aplicativo no Brasil. In: XV Coloquio Internacional de Geocrítica, 2018, Barcelona. Actas del XV Coloquio Internacional de Geocrítica Las ciencias sociales y la edificación de una sociedad post-capitalista. Barcelona: Universitat de Barcelona, 2018. v. 1.