O Programa Minha Casa Minha Vida como estratégia de enfrentamento à violência contra a mulher: avanços e desafios atuais

Boletim nº 77, 03 de abril de 2024

Por Daiane da Silva Pacheco Nery

Graduada e Mestre em Serviço Social e Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional (PPGPUR/UFRJ) 

No Dia Internacional da Mulher, por que importa pensar a questão da moradia articulado ao tema da violência doméstica e familiar contra a mulher? Porque “ainda somos campeões no quesito desigualdade social, racial e de gênero” (Schwarcz, 2019, p. 23), ainda somos as maiores vítimas de violência doméstica e familiar em todos os lugares do mundo, assim como somos em termos de insegurança de posse da terra e da habitação, e as mais afetadas pelo déficit habitacional (FJP, 2024). 

Esse quadro permanente de violação dos direitos humanos, possibilitou uma agenda global em busca da igualdade de gênero e da defesa de uma moradia digna e sem violência para as mulheres. No Brasil, apesar de avanços nos marcos regulatórios, as ações e os programas implementados ainda apresentam limitações estruturais para impactar os indicadores sociais. A violência doméstica e familiar segue sendo uma realidade que atinge significativamente de forma superior as mulheres e meninas, em relação aos homens e meninos. Pelo caráter multidimensional, abrange um conjunto de relações das quais a falta de acesso à moradia e/ou a insegurança de posse da terra e da habitação são centrais. Por não ter a titularidade do imóvel e uma alternativa de onde morar, muitas delas são forçadas a deixar o domicílio ou estão propensas a permanecer em situação de violência, sendo, portanto, fundamental construir alternativas e estratégias de gestão intersetorial para a garantia do direito à moradia do ponto de vista das necessidades e da proteção integral das mulheres.  

Após a criação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), do Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (2007) entre os governos federal, estaduais e municipais e da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (2011), a implementação de políticas públicas vem ampliando e incluindo ações intersetoriais de modo a oferecer um atendimento integral para enfrentar as desigualdades de gênero, combater a violência e garantir os direitos sociais e humanos. Dentre as medidas que visam coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher e promover um recomeço digno e protegido para as mulheres e seus filhos, destacam-se o acesso ao abrigamento provisório, através de equipamentos denominados Casas-Abrigo e Casas de Acolhimento, a garantia de acesso aos programas de transferência de renda e a priorização no acesso a habitação de interesse social.  

No âmbito da Política Nacional de Habitação, o direito à moradia é assegurado enquanto um direito humano, individual e coletivo, conforme previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966) e na Constituição Federal do Brasil (1988) através da Emenda Constitucional nº 26, tendo o Estado o dever de garantir e promover o acesso à moradia digna a todos os segmentos da população, especialmente o de baixa renda. Além disso, reconhece a necessidade de criar mecanismos que efetivem a promoção da igualdade de oportunidades, privilegiando as dimensões étnica, racial e de gênero na elaboração dos programas habitacionais.  

As primeiras iniciativas explícitas de habitação de interesse social em conformidade com tais determinações foram implementadas através da Política de Regularização Fundiária e do Programa Minha Casa Minha Vida – MCMV, ambos instituídos através da Lei nº 11.977/09, atualmente substituída pela Lei nº 14.620/2023. Importa ressaltar, que foi uma conquista emergente da articulação entre o pensamento crítico feministas e das mulheres que, em diferentes movimentos e espaços públicos decisórios internacionais e nacionais, ergueram suas vozes reivindicando a questão da igualdade de gênero como um direito central (Soto, 2016) e o reconhecimento das problemáticas específicas das mulheres negras e as múltiplas formas de discriminação que enfrentam na vida cotidiana, recomendando a priorização de atendimento nos programas habitacionais e urbanos (Carneiro, 2002), garantindo o acesso a bens, equipamentos e serviços públicos e o acesso das mulheres à moradia digna.

Em 2014, quando o PMCMV-Faixa1 já havia atendido 1,4 milhão de famílias, pesquisa realizada pelo MCidades em parceria com o IPEA para avaliar a satisfação e bem-estar dos beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida, revelou que 87,1%2 dos contratos foram assinados por mulheres, sendo seu perfil composto em maioria por mulheres negras, com predominância de famílias monoparentais femininas, com baixa escolaridade e empregos informais. A pesquisa apresentou melhorias pontuais nas condições de vida das famílias com o acesso a casa própria, sobretudo em relação ao ônus excessivo com aluguel, bem como comprovou especial atenção ao garantir a priorização do acesso das mulheres responsáveis pela unidade familiar ao programa. Todavia, por outro lado, demonstrou também quem são as mais afetadas pelos efeitos colaterais territoriais do programa que não foram enfrentados, como o aumento das despesas com serviços de fornecimento de água, luz, gás e condomínio e a localidade dos empreendimentos em áreas precárias de acesso aos serviços de infraestrutura e de transporte público.  

Para as mulheres, sobretudo, as mulheres negras, o programa é permeado de contradições que transitam entre conquistas, retrocessos e continuidades em relação a violações de direitos. Diante dos limites e gargalos do Minha Casa Minha Vida, é possível que o programa tenha condições de ser uma solução efetiva para o enfrentamento a violência doméstica e familiar contra a mulher? Em que medida a execução do PMCMV contribui como estratégia de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher? 

Desde a criação do PMCMV, normativas e portarias foram implementadas em compromisso com o atendimento prioritário e com a proteção integral das mulheres. Destaca-se a Portaria nº 412/2015, que aprova o Manual de Instruções para Seleção de Beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV, traz um novo elemento voltado à preservação dos dados publicados no resultado da seleção de demanda para mulheres atendidas por medida protetiva que a comprovarem, via decisão judicial. Neste caso, a Portaria determina a garantia do sigilo tanto do nome quanto do conjunto habitacional em que foram selecionadas, demonstrando a importância de garantir a proteção integral e contribuir com o rompimento do ciclo de violência.  

A Portaria nº 469/2015, que regulamenta a rescisão de contratos de compra e venda no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida, constitui um avanço frente às necessidades expressas pelas mulheres em situação de violência doméstica e familiar na fase pós-ocupação e diante do próprio limite/fragilidade que o programa apresenta em seu desenho estrutural. Após comprovação da situação de violência, por meio de decisão judicial, a Caixa Econômica Federal (CEF) deverá intervir para possibilitar que a titular do contrato, objeto do distrato, seja beneficiada com outra unidade habitacional, independentemente do registro no Cadastro Nacional de Mutuários (CADMUT) referente ao imóvel que está sendo distratado. Esta medida é válida também para os casos de invasão e/ou expulsão pelo crime organizado.  

Em 2016, com a Portaria nº 163/2016, que dispõe sobre o Manual de Instruções para Seleção de Beneficiários no âmbito do Programa Nacional de Habitação Urbana (PNHU) e do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), instituiu-se, como critério adicional a ser adotado ou não pelo município, o atendimento às famílias de que faça parte pessoa atendida por medida protetiva prevista na Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), comprovada por cópia da petição inicial do Ministério Público. Essa instrução, apesar de constituir um avanço para o conjunto de normativas instituídas em prol da proteção integral das mulheres, provocou sérios questionamentos ao ser considerado um critério adicional e não um critério prioritário, conforme reivindicado.  

Em 2023, após sete anos de retrocessos no âmbito do PMCMV, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva é retomada uma agenda pactuada com os direitos humanos e sociais que apresenta um cenário de saldos positivos com o novo Programa Minha Casa Minha Vida, recriado através da Lei nº14.620/2023, e com as alterações no benefício assistencial de auxílio-aluguel, através da Lei nº14.674/2023, que passaram a priorizar o atendimento das mulheres em situação de violência doméstica e familiar, via decisão judicial. As determinações partem do reconhecimento de que a garantia da priorização do acesso à moradia adequada às mulheres em situação de violência doméstica e familiar é fundamental para a promoção da autonomia em todas as áreas de sua vida, para a realização de suas atividades cotidianas, para romper com as relações de violência e assegurar às mulheres as condições adequadas para o exercício efetivo dos direitos à vida, à moradia e à dignidade.  

Embora o MCMV tenha avançado em termos de acesso à titularidade feminina e de implementação de marcos regulatórios de proteção integral à mulher em situação de violência doméstica e familiar, o programa apresenta limites para a efetivação da garantia do direito à moradia digna para as mulheres, reproduzindo, legitimando e perpetuando outras formas de violações e de desigualdades sociais, como a falta de acesso à infraestrutura urbana, uma das dimensões “mal equacionadas pelo programa” (Cardoso; Aragão, 2013, p. 44) e um dos seus maiores fracassos no enfrentamento do problema habitacional. Conforme Bonduki (2009), o MCMV não seguiu em sua totalidade os princípios e as diretrizes da Política Nacional de Habitação e os objetivos do Plano Nacional de Habitação e sua integração com a política urbana, provocando graves consequências à garantia do direito à moradia e à cidade. 

O processo de periferização dos empreendimentos do PMCMV e a ausência de desenvolvimento urbano integrado reiteraram a precariedade da vida urbana, e como reforça Tavares e Helene (2018) “toda precariedade urbana que perpassa o universo da moradia, impacta o cotidiano das mulheres”. Segundo o IBGE, em 2022, as mulheres dedicaram quase o dobro de tempo que os homens aos cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos, o que alerta sobre a urgência de promover os serviços de reprodução e cuidado como componentes prioritários das políticas urbanas e habitacionais. Em relação ao tema da acessibilidade urbana, as estimativas de acesso a empregos, serviços de saúde e educação foram baixas para as famílias que residem nos conjuntos habitacionais do MCMV quando comparadas às oportunidades para os que residem em favelas e comunidades urbanas (Krause; Balbim; Nadalin, 2023), o que requer promover ações integradas de desenvolvimento urbano e de geração de trabalho e renda nas revisões e contratações futuras. 

Conclui-se que o MCMV contribui como um mecanismo de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, entretanto, pelo modelo hegemônico de produção, não é capaz de encerrar o ciclo de subordinação e violação das mulheres, agora também perpetrado pelo Estado. Morar longe dos centros de emprego e de equipamentos públicos prejudica a autonomia, a qualidade de vida e aumenta os custos de tempo e econômicos das mulheres. Assim, se quisermos de fato promover a igualdade entre homens e mulheres e enfrentar as desigualdades interseccionais de gênero, raça e classe na produção e reprodução do espaço urbano e da moradia, é necessário reforçar algumas alternativas já em curso e em disputa que não podem perder o fôlego, pois são capazes de remodelar a estrutura capitalista-cisheteropatriarcal-racista: 1) defender um planejamento urbano que promova a equidade, a justiça urbana e a inclusão social, sobretudo nas escolhas das áreas destinadas à construção das unidades habitacionais de interesse social e o seu entorno; 2) construir, ampliar e fortalecer espaços participativos onde as mulheres sejam protagonistas nas decisões sobre as necessidades habitacionais e urbanas; 3) fomentar políticas públicas de habitação e urbanas destinadas à atenção, proteção, reprodução, cuidado, geração de trabalho e renda numa perspectiva intersetorial e transversal de gênero, raça e etnia; 4) Priorizar nas agendas feministas uma prática comprometida com a defesa do direito à moradia digna e à cidade e com o fim de todas as formas de violência. 

Referências bibliográficas

Bonduki, N. Do Projeto Moradia ao programa Minha Casa Minha Vida. Teoria e Debate, v. 82, 2009.

BRASIL. Ministério das Cidades. Pesquisa de satisfação dos beneficiários do

Programa Minha Casa Minha Vida. Brasília, DF: MCidades; SNH; SAE-PR; IPEA,

2014.

Carneiro, Sueli. A batalha de Durban. Rev. Estu. Fem. Vol. 10, nº 1. Florianópolis, 2002.

Fundação João Pinheiro. Diretoria de Estatística e Informações. Déficit Habitacional e inadequação dos domicílios no Brasil: 2016-2019. Belo Horizonte: FJP, 2024. 52 p.  Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1UoV4Cv-xaefPE9M7qpMMfb4HDjO58hMV/view

IBGE. Estatísticas de Gênero Indicadores sociais das mulheres no Brasil. Estudos e Pesquisas – Informação Demográfica e Socioeconômica, nº 38, 3ª edição, 2024.

Krause, Cleandro; Balbim, Renato; Nadalin, Vanessa Gapriotti. A centralidade da habitação nas Políticas Nacionais de Desenvolvimento Urbano: uma leitura a partir de estudos desenvolvidos pelo IPEA. Boletim regional, urbano e ambiental, jul.-dez. 2023. 

Schwarcz, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo no Brasil. São Paulo: Companhia

das letras, 2019.

Soto, Paula. Repensar el hábitat urbano desde una perspectiva de género. Debates, agendas y desafios Andamios, vol. 13, núm. 32, pp. 37-56, 2016.

Tavares, Rossana Brandão; Helene, Diana. Como os problemas socioambientais nas cidades impactam a vida das mulheres? Tribuna Rio Por Inteiro, Casa Fluminense, 2018.