O que está ruim só pode piorar?

Boletim nº 19 –  07 de maio de 2020

 

Por Carlos Vainer¹

 

“Evidentemente, se eu projeto no futuro o curso atual do devir do planeta, é extremamente inquietante <…> Esses processos parecem nos levar a catástrofes acerca das quais não sabemos se vão se suceder ou se combinar. Todos esses processos são o provável. Mas a experiência da história nos mostra que o improvável benéfico acontece” (Edgar Morin)

 

Com a atenção e consideração que merece tudo o que vem desse respeitável autor, acabo de ler a entrevista de José Luís Fiori [1]. Como sempre, Fiori se mostra um escritor brilhante e aciona com grande competência e elegância os enormes recursos de que dispõe graças à sólida formação e à grande massa de informações que detém.

O texto impressiona e aparece convincente, como uma espécie de adeus às ilusões, convite a que sejamos todos efetivamente realistas, vejamos o que se passa à nossa frente sem nos deixarmos levar por desejos e sonhos. E, cá entre nós, ser realista hoje em dia conduz necessariamente ao mais sombrio pessimismo…

 

Fim de história? 

Assim, em seu “realismo pessimista”, Fiori anuncia, e não é o primeiro a fazê-lo, o fim da história, ao vaticinar que não há outro futuro que não seja o presente contínuo; em outras palavras, vê o futuro como simples reiteração e repetição, ampliada, quer dizer piorada, do presente, que não é, ele mesmo, por sua vez, outra coisa que o passado recente continuado. O “fim da história” em Fukuyama [2] era triunfalistico: o capitalismo e o mercado derrotaram todos os que o desafiaram, se impôs, se impõe e se imporá per omnia secula seculorum. O “fim da história” de Fiori é acabrunhante, sombrio: a crise se impôs sobre tudo e sobre todos e não há alternativas nem saídas. Ela é o passado recente, o presente e o que virá (não cabe usar aqui a palavra “futuro”, pois este desaparece com o fim da história).

 

Os dominantes dominam 

E por que razão chega Fiori à conclusão de que não há qualquer outra possibilidade e “só pode continuar piorando”? Porque despreza as contradições engendradas neste(s) processo(s), porque em sua análise apenas comparecem os atores dominantes: os Estados nacionais das potências hegemônicas, os grandes capitais industriais e financeiros. As classes e grupos oprimidos, explorados, discriminados, massacrados pela crise (sanitária e econômica) só são convidados a participarem do drama como figurantes, ou mesmo como cenário, sob a forma de “focos de rebeldia social inorgânica”.

Se apenas os dominantes são admitidos como atores/agentes atuantes, o processo e seu desenlace serão necessariamente à sua imagem e semelhança. Eles, e apenas eles, fazem história… ou melhor, impedem que a história aconteça como possibilidade de mudança, isto é, de futuro. O resto? Ora, nada além de levantes “inorgânicos”, leia-se “espontâneos”, fora de controle… seja do poder, seja, é claro, dos partidos, organizações e instituições “orgânicas” – que já se mostraram nos anos recentes totalmente anacrônicas, incapazes de engendrar o novo.

 

Sobre os movimentos espontâneos

Aqui caberia um parêntese para falar sobre a forma como grande parte dos militantes e intelectuais de “esquerda” olham para o que chamam de “movimentos espontâneos”, e que Fiori designa de “inorgânicos”, correndo o risco de transportar para a ciência social categorias da biologia. Poucas ideias foram tão repetidas ao longo da história das lutas socialistas desde o início do século XX quanto a crítica ao “espontaneísmo”, cuja fonte está no clássico e problemático “Que Fazer”, de Lenin (1903) [3]. Em sua defesa de um partido de quadros profissionais, Lenin exorcizou o “espontaneísmo”, vendo nas “massas” trabalhadoras um sujeito histórico por assim dizer “incompleto”, indispensável para a vitória da revolução mas, ao mesmo tempo, incapaz de conduzir as transformações sociais a que estão vocacionadas, ou melhor, estruturalmente determinadas, se não estiverem sob a direção do Partido (com letra maiúscula) de vanguarda, formado por intelectuais detentores da Teoria (também com maiúscula) revolucionária.

Poucas coisas incomodam tanto as organizações e partidos políticos instituídos quanto o “espontaneísmo das massas”, esses levantes que não seguem as orientações e palavras de ordem esculpidas nos departamentos de formação política e comunicação (antigamente se dizia “comitês de agit-prop”). Não são raras as acusações de que essas manifestações e explosões “despolitizadas” servem à direita, ou são por esta instrumentalizadas, como se a expressão legítima e legitimamente espontânea, poder-se-ia dizer obra anônima ou não autoral porque coletiva, dos oprimidos e explorados tivesse que ser evitada … pois, advertem os mesmos intelectuais ‘orgânicos” de sempre, é melhor não cutucar a onça com vara curta…

Quem não se lembra do horror com que foram vistas as jornadas de junho de 2013 por partidos, sindicatos e movimentos sociais firme e confortavelmente instalados na ante-sala do governo de coalizão liderado pelo PT. “Espontaneístas! Despotilizados! Inocentes úteis da direita!”. Incapazes de dar expressão aos sentimentos mais profundos, compreensíveis e legítimos de amplas parcelas da sociedade, organizações e partidos burocratizados, cujas concepções e práticas políticas se afastaram totalmente das vivências, experiências e sentimentos daquele(a)s que pretendem e supõem representar, vêem nessas irrupções imprevistas uma ameaça a sua “incontestável” direção político-ideológica. Embora por razões diferentes, parecem temer a desordem tanto quando os detentores do poder… e transformando-se assim, também, conscientemente ou não, em partidos e forças dessa mesma ordem que seus programas grandiloquentes prometiam desafiar.

 

Previsibilidade e imprevisibilidade das consequências das crises 

Fiori tem razão quando afirma que, tanto quanto guerras e pandemias, manifestações, levantes, explosões sociais “inorgânicas” não necessariamente deflagram processos de transformação social. Mas a mesma afirmação também valeria para manifestações, levantes e lutas “orgânicas”: lutas “orgânicas” não necessariamente levam à transformação social. E se é verdade que crises, pandemias e guerras não necessariamente provocam “rupturas”, também é verdade que a história registra algumas “rupturas” e revoluções que nasceram em contextos desse tipo. A revolução russa de fevereiro de 1917 é um exemplo clássico. Os exércitos revolucionários chinês e vietnamita, também, a seu modo, cresceram e se consolidaram no contexto da guerra anti-japonesa, durante a 2a guerra mundial. A Comuna de Paris, embora derrotada, eclodiu e tomou Paris no bojo da guerra franco-prussiana. E não seria exagero afirmar que o processo de descolonização do pós-guerra está associado à reconfiguração das potências mundiais consequente à 2ª Guerra Mundial, assim como os avanços, notáveis, do estado de bem estar social. Sem falar na revolução cubana, do ventre de uma das mais sanguinárias ditaduras da América Latina.

E se de previsões e imprevisibilidades se trata, poder-se-ia perguntar: quantos foram os que previram em 11 de Março de 1985 que a eleição de Gorbachev como Secretário Geral do PCUS entraria para a história como o prólogo do final da União Soviética, formal e oficialmente dissolvida pouco mais de 6 anos depois, em 26 de dezembro de 1991. E quem previu a crise da globalização neoliberal, proclamada irreversível e expressão pura e perfeita do capital por 9 entre 10 cientistas políticos, sociólogos e economistas nos anos 1990 e 2000? Quem poderia imaginar que a globalização neoliberal viesse a ser desafiada e combatida exatamente nos/pelos Estados Unidos, com a eleição de Trump (2014), e no/pelo Reino Unido, com a vitória do plebiscito do Brexit (2016), estados nacionais que inauguraram e lideraram, na teoria e na prática, a ofensiva neoliberal – com Margaret Thatcher [4](1979-1990) e Ronald Reagan [5](1981-1989)?

Edgar Morin colocou a questão de maneira clara e precisa:

Evidentemente, se eu projeto no futuro o curso atual do devir do planeta, é extremamente inquietante <…> Esses processos parecem nos levar a catástrofes acerca das quais não sabemos se vão se suceder ou se combinar. Todos esses processos são o provável. Mas a experiência da história nos mostra que o improvável benéfico acontece (Edgar Morin) [6].

 

Revoltas “inorgânicas” e suas consequências 

Indo mais longe: quantas rupturas históricas, ou, mais modestamente, mudanças sociais amplas e profundas surgiram de “levantes inorgânicos”, no bojo dos quais nasceram ou se ampliaram e fortaleceram novas formas de organização? Já falamos da Revolução de Fevereiro, na Rússia. Buscando ilustrações recentes, poder-se-ia citar a Guerra da Água (Cochabamba, 2000), quando massas urbanas e rurais se uniram, deram origem à Coordenadora de Águas de Cochabamba, derrotaram o processo de privatização e abriram uma nova era de lutas sociais e políticas que iria contribuir para a subida ao poder do primeiro presidente indígena da Bolívia. E o Chile, em que a “rebeldia inorgânica” de jovens estudantes deflagrou verdadeirainsurreição popular à margem dos partidos “orgânicos”, abalou profundamente o regime dos herdeiros de Pinochet, fez em frangalhos a transição pinochetista e a hegemonia de direita, obrigando à convocação de uma assembleia constituinte e, mesmo, a aprovação de novos impostos sobre grandes fortunas (sobre patrimônio e renda dos mais ricos)?

 

Capitalismo: modo de produção e de reprodução social 

Ao fixar seu olhar nas relações, dinâmicas e tendências dominantes, Fiori de uma maneira ou outra contribui para iluminar alguns dos aspectos e dimensões dos processos que já estavam em curso antes da pandemia e parecem se acentuar e reforçar com a crise sanitária. Mas não consegue ir além de algumas constatações, incapaz de ver o leque de alternativas que se abrem e, mais ainda, incapaz de vislumbrar quaisquer perspectivas que não sejam a catástrofe. Sua previsão de que os tempos vindouros (continuo com dificuldade de usar a palavra “futuro” para referir-me ao que diz o autor) serão a pura e simples reiteração dessas relações, dinâmicas e tendências dominantes, transforma o autor em “profeta do óbvio”. Nelson Rodrigues advertia que “só os gênios enxergam o óbvio”, mas não é menos certo de que os imprevistos e imprevisíveis não aparecem a olho nu, nem se entregam ao analista cuja atenção está fixada apenas nas tendências dominantes. E é fácil entender por quê: as possibilidades de ruptura, as dinâmicas e forças sociais que podem impulsionar, favorecer e suscitar rupturas, ou mudanças relevantes, não são dominantes, ao contrário são dominadas, e por isso mesmo invisíveis, ou pouco visíveis.

Os sistemas sociais não são apenas “modos de produção”, mas também “modos de reprodução”, estruturas que produzem e reproduzem suas próprias condições de existência – materiais e imateriais, objetivas e subjetivas, econômicas, políticas, culturais. E o capitalismo, em particular, certamente é aquela forma social histórica que desenvolveu os mais poderosos mecanismos de reprodução social, por ser uma forma social que se mantém e se reproduz porque está permanentemente em transformação. Marx dizia que o capitalismo revoluciona permanentemente os modos de produzir, mas é igualmente verdadeiro que o capitalismo revoluciona permanentemente os modos de consumo, os modos de vida, as subjetividades, o conjunto de relações que constituem o tecido social.

Tudo que é sólido desmancha no ar, até mesmo o pensamento de Marx, o que surpreendeu os marxistas. E é pela transformação que o capitalismo permanece e se reproduz em escala ampliada, ampliando os campos sob o domínio do capital (crescimento por extensão) e aprofundando este domínio ali onde ele já está instalado (crescimento por intensificação). Ele se reproduz destruindo não apenas heranças de regimes sociais anteriores, como também degenerando e destruindo o que ele mesmo construiu. As cidades, neste sentido, são exemplares, pois através de seus incessantes processos de renovação – destruição – renovação, mostram como opera essa destruição criativa, conforme Harvey.

A reprodução (por formas capitalistas e por expropriação [7]) do capitalismo é sua permanente transformação, que opera o milagre da ressureição incessante do capital sob as mesmas e sob novas formas de produção, de acumulação, de consumo, de modos de viver, de subjugação de corpos e mentes. Como disse o príncipe de Falconeri, personagem do livro de Lampedusa, O Leopardo, “tudo deve mudar para que tudo fique como está”.

 

Previsões, o visível e o invisível: por onde anda a velha toupeira? 

Face a tantas e tão poderosas forças que produzem incessantemente as condições da permanência e bloqueiam as possibilidades de “ruptura”, não espanta que aqueles que prevejam a continuidade das tendências vigentes tenham grandes chances de ver confirmados seus vaticínios. A aposta na permanência, na inviabilidade da ruptura é, por assim dizer, a aposta no evidente, no dominante, no mais provável. Esse “realismo” se expressa entre intelectuais e militantes através de análises que conferem aos dominantes não apenas o poder de dominar, mas o poder de bloquear total e completamente as possibilidades contra-hegemônicas. As propostas políticas decorrentes recomendam, quase inevitavelmente: evitar confrontos, aceitar as regras do jogo e travar a luta no seio das instituições e “organicidades” estabelecidas, e que constituem, elas mesmas, dispositivos de reprodução sistêmica. O mesmo “realismo” aparece sob a forma de fatalismo no senso comum de grande parte dos dominados e oprimidos.

As forças e tendências (ou contra-tendências) à mudança, de seu lado, são pouco ou nada visíveis. Elas operam como a “velha toupeira” com que Marx buscou explicar os processos (invisíveis) que conduziram às (inesperadas, imprevisíveis e imprevistas) revoluções de 1848 na Europa: “Nos sintomas que desconcertam a burguesia, a aristocracia e os pobres profetas da regressão, encontramos nosso corajoso amigo, Robin Hood, a velha toupeira capaz de trabalhar tão rapidamente no subsolo, o excelente mineiro – a revolução [8]”.

Antes de Marx, “Shakespeare já havia citado o animalzinho em Hamlet: ‘Bem dito, velha toupeira. Você trabalha tão bem no interior da terra. É uma notável sabotadora’. Hegel teria também se referido à toupeira, para falar das astúcias e surpresas da história: ‘É necessário que as grandes revoluções, evidentemente necessárias, sejam precedidas por uma revolução silenciosa e secreta das idéias da época, uma revolução que não é visível para todos (Emir Sader, 2010, apud, Tornquist, Carmen, 2020) [9].

Isso não significa que a velha toupeira necessariamente terminará seu trabalho amanhã, ou depois de amanhã, durante ou logo depois da epidemia. Mas ela trabalha, e trabalha de modo a não ser percebida pelos analistas, nem mesmo pelos que dedicaram sua vida a convocar a velha toupeira a sair à superfície. Não custa, neste ponto, lembrar um episódio da trajetória de Lenin, revolucionário e teórico cuja energia e inteligência foram consagradas a organizar e incentivar a erupção da revolução. Segue abaixo o que ele disse em conferência feita para a juventude socialista suiça na Casa do Povo, em Zurique, em 22 de janeiro de 1917 (data em que se completavam 12 anos do Domingo Sangrento, como ficou conhecido o dia da manifestação violentamente reprimida em São Petesburgo, unanimemente reconhecida pelos historiadores como início da revolução de 1905):

“Nós, os mais velhos, talvez não vivamos para ver as batalhas decisivas desta revolução futura. Mas posso transmitir com certeza a esperança deque a juventude que está trabalhando tão bem no movimento socialista da Suiça e em todo o mundo, terá a felicidade não apenas de lutar, mas também de levar ao triunfo a revolução proletária futura”. (Escrito em alemão antes de 9/22 de janeiro de 1917. Publicado pela primeira vez no Pravda, em 22 de janeiro de 1925) [10].

Pouco mais de um mês depois, manifestações celebrando o Dia Internacional das Mulheres, em 23 de fevereiro de 1917 (8 de março pelo calendário gregoriano) deflagravam a primeira fase da revolução russa, conhecida como Revolução de Fevereiro, que levaria à queda de Nicolau II e à proclamação de um Governo Provisório. E em 25 de outubro de 1917 (7 de novembro pelo calendário gregoriano), abria-se o congresso soviético que colocaria no poder o mesmo Lenin que 10 meses antes havia dito aos jovens socialistas suíços que não veria a vitória da revolução. Se nem Lenin, que ansiava e queria a revolução de maneira fervorosa, foi capaz de perceber o trabalho que realizava a velha toupeira … até que ponto podemos criticar com dureza aqueles que também não estão sensíveis às possibilidades que podem estar sendo criadas no subsolo do tecido social?

 

Há possibilidades de mudança? 

Não deixa de ser sintomático que Fiori apenas mencione rápida e depreciativamente toda e qualquer possibilidade de mudança. De maneira concessiva, quase a contragosto, reconhece: “Não é improvável que nesse momento se multipliquem as revoltas sociais ao redor do mundo e a mudança de governos nos países que ainda mantenham a prática de fazer eleições periódicas e regulares, na década de 2020.” Duas expressões negativas (não + prefix “in”) redundam em uma afirmação: afirmar que não são improváveis quer dizer que revoltas e mudanças de governo são prováveis. Penso ser exagero, e prefiro afirmar que são possíveis… E se são possíveis, não seria importante buscar entender melhor que forças sociais estarão em movimento nessas revoltas e mudanças? Não seria importante debruçar-se sobre a natureza, sentido e amplitude das dinâmicas que impulsionam tais revoltas e mudanças (prováveis, ou mais modestamente possíveis, lembremo-nos bem) e avaliar se e em que medida abririam campo para desafiar, bloquear e, mesmo, quem sabe, derrotar as tendências dominantes – manifestação e expressão das forças dominantes?

Por que são possíveis revoltas? Quem possivelmente se revoltará? Quais as causas prováveis dessas revoltas possíveis? A crise, a fome? Mas são muitos os exemplos de crise e fomes generalizadas que provocaram antes anomia que revoltas… Um prognóstico sério deveria considerar com mais atenção essas possibilidades.

 

As manifestações populares “inorgânicas” pioram a situação? Por quê? 

Mas Fiori não apenas despreza essas tendências (não obstante tudo, prováveis, ou pelo menos possíveis), não apenas minimiza sua relevância e o novo campo de possibilidades que poderiam abrir, ele qualifica as revoltas (“inorgânicas”) como algo negativo.

o nosso prognóstico político e econômico para o Brasil é muito ruim, e a situação deverá ficar ainda pior quando começarem a surgir os primeiros focos de rebeldia social inorgânica, movidos pela fome e pela miséria, que crescerão de forma geométrica no ano de 2020 (ênfase nossa).

O sub-texto é claro: “Ei, vocês rebeldes “inorgânicos”. Melhor não se rebelarem, melhor ficarem quietos, pois se provocarem e alimentarem focos de rebeldia, a situação ficará pior. Esperem as orientações das oposições orgânicas sobre o quê, quando e como fazer… ou mesmo sobre não fazer nada”. 

Ou seja, que parcelas não desprezíveis da população, de classes e grupos sociais oprimidos e explorados rebelem-se é visto como algo que tornará a “situação ainda pior”. Mas não seria possível que, ao contrário, esses focos de rebeldia venham oferecer novos espaços de construção de sujeitos políticos coletivos capazes de interferir no processo político e econômico? Não foram jovens estudantes que, através de suas manifestações “espontâneas”, “focos de rebeldia social inorgânica”, destravaram o processo político chileno, abalando os alicerces do poder aparentemente intocado e intocável da direita chilena mais reacionária, recentemente referendada em processo eleitoral? Por que esse temor que haja explosões sociais? Por que não reconhecer a rebeldia social como inspiração possível e rica para um outro prognóstico, que, sem desconhecer as forças sociais e tendências dominantes, estaria atento para suas contradições e fragilidades, suas brechas… de onde poderiam emergir outras forças, outras tendências, alternativas e saídas, ainda que parciais?

Fiori está convencido de que o que está ruim vai ficar pior. Assim, mesmo quando, por honestidade intelectual, é obrigado a reconhecer não serem improváveis revoltas e mudanças de governo, sua convicção o impede de admitir a possibilidade de que estas possam alterar os rumos e desenlaces do processo.

 

Há oportunidades? Quais as forças capazes de aproveitar as oportunidades? 

Chamado pelos entrevistadores a avaliar a possibilidade de “as oposições” se constituírem em força política para interferir no processo em curso, Fiori não se arrisca a analisar a natureza e composição dessas “oposições” (“orgânicas”?), mas não tem dúvidas de que tudo dependerá de sua capacidade de “saber o que dizer e saber o que fazer frente aos grandes desafios e oportunidades que se abrem na hora das grandes crises”. Então haverá oportunidades? Quais são elas? Por que a análise das possibilidades não constou do prognóstico?

Mas de uma coisa podemos ter certeza: se dependermos das “oposições orgânicas” para “fazer frente aos grandes desafios e oportunidades”, então, realmente, o que está ruim deverá provavelmente ficar pior. Tanto a esquerda tradicional, herdeira da coalizão que governou o país de 2003 a 2016, quanto os poucos sobreviventes do que há algumas décadas foi a corrente democrática das elites não têm nada a oferecer, não sabem há muito tempo o que dizer e fazer para reencontrarem qualquer sintonia com o tecido social, com a experiência vivida da imensa maioria de nosso povo.

E talvez, mais que “saber o que dizer”, talvez esteja na hora de saber escutar … aquelas vozes, às vezes silenciadas pela violência, às vezes inaudíveis pela prepotência, vozes que não ecoam nas reuniões dos diretórios partidários em que facções, a partir de divergências só compreensíveis para iniciados, disputam posições e cargos. Talvez esteja na hora de perscrutar no tecido social as experiências em que se inventam novas formas de solidariedade (e a crise da pandemia tem sido rica em exemplos), novas formas de organização e luta através das quais, quem sabe, a velha toupeira prepara uma original e inesperada incursão na história.

 

A história continua em aberto… e o improvável benéfico pode acontecer 

Mais que nunca há que escapar à escolha entre o realismo pessimista, que vê na crise apenas sua própria reprodução e aprofundamento, e o voluntarismo (otimista? ingênuo?) dos que acreditam que a crise necessariamente será parteira da revolução. Fiori tem razão ao advertir que no período histórico aberto com a crise de 2008 e a consequente crise da globalização neoliberal estaremos confrontados a processos ainda mais agressivos e antagônicos aos interesses da imensa maioria. Trata-se de entender melhor suas contradições e brechas, e agir para participar e fortalecer, na medida do possível, as novas forças sociais coletivas que venham emergir dessas contradições e brechas. Isso é possível, mas não está escrito nem nas estrelas nem nos livros. Não é certo, mas nos assegura, pelo menos, que se o que está ruim pode piorar … também existe a possibilidade de que venha melhorar. A história não acabou e como sempre, está em aberto… e por isso um futuro melhor é possível.

 

 

¹Professor Titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR-UFRJ).

Notas:

1. Fiori, José Luis. “Prognóstico é ruim, e vai piorar”, diz Fiori. Em https://tutameia.jor.br/prognostico-e-ruim-e-vai-piorar-diz-fiori/. Acesso 16/04/2020.

2. Fukuyama, Francis. O fim da história e o último homem. Ed. Paz e Terra 1992 (nota do editor).

3. Na verdade, a ideia da necessidade de que a classe trabalhadora receba de intelectuais a teoria para a revolução já estava em Marx e Kautsky.

4. Primeira Ministra do Reino Unido no referido período (nota do editor).

5. Presidente dos Estados Unidos no referido período (nota do editor).

6. Edgar Morin: Une voie pour éviter le desastre annoncé”. Entretien avec l’ancien résistant et philosophe qui, dans son livre « La Voie », dresse un constat sévère des maux contemporains. L’OBS avec Rue 89. Disponível em https://www.nouvelobs.com/rue89/rue89-nos-vies- connectees/20110123.RUE0489/edgar-morin-une-voie-pour-eviter-le- desastre-annonce.html. Acesso em 21/04/2020).

7. Já Rosa Luxemburgo chamava a atenção para a permanência ao longo do desenvolvimento capitalista de formas “primitivas” de acumulação. Nos anos 1970 foram vários os autores que retomaram o tema das formas de produção e reprodução típicas do período que Marx chamou de “acumulação primitiva”. Mais recentemente, David Harvey cunhou a expressão “acumulação por expropriação” ou “despossessão” para designar estas formas (violentas, quase sempre) de acumulação que não estão fundadas nas relações “típicas” de capital – força de trabalho.

8. Un discours de Marx à une fête de “The People’s Paper”, journal des chartistes de Londres, 14 avril 1856. Disponível em <https://www.marxists.org/francais/marx/works/1856/04/km18560414.htm>, acesso em 16/04/2020.

9. Sader, Emir. A Nova Toupeira; Os Caminhos da Revolução Latino-americana, São Paulo, Boitempo, 2010, apud. Tornquist, Carmen, A Toupeira e o João-de-barro. Em http://desacato.info/a-toupeira-e-o-joao-de-barro/, acesso em 14/04/2020. Este Emir Sader…sem comentários.

10. A primeira data corresponde ao calendário juliano e a segunda data ao calendário gregoriano. O calendário juliano permaneceu vigente na Rússia até 10 de fevereiro de 1918, quando houve o ajuste com o calendário gregoriano, já utilizado no restante da Europa, cf. Aarão Reis, Daniel(org.) Manifesto Vermelhos e outros textos históricos da revolução russa. Companhia das Letras, São Paulo, 2017, p. 11).