Periferia, COVID-19 e Cultura: apontamentos sobre a Lei Aldir Blanc na Baixada Fluminense

Boletim nº 38 – 28 de outubro de 2020

 

O artigo aborda os impactos da pandemia, através da ótica da periferia, tendo em vista os trabalhadores do setor cultural, na Baixada Fluminense. Os autores apontam que essa é uma localidade cujos problemas são estruturais, devido à ausência de políticas públicas. Sendo assim, especificidades, como um movimento pendular maior e o caráter informal dos vínculos empregatícios da população da região, proporcionam uma intensa exposição ao vírus.

Em linhas gerais, propõe-se relacionar as particularidades, no âmbito econômico e social, que fomentam a segregação do espaço urbano periférico e, principalmente, a repercussão enfrentada pelo setor da cultura. À medida que apresenta dados referentes aos trabalhadores assistidos pelo Auxílio Emergencial, o texto ilustra que os artistas, através de pressão ao Congresso, conseguiram aprovar a Lei emergencial Aldir Blanc (Lei Federal nº 14.017/20), que assegura subsistência aos espaços artísticos, bem como aos trabalhadores do ramo.

Abaixo, o artigo encontra-se na íntegra.

Por Utanaan Reis Barbosa Filho¹ e Bruno Duarte²

1. Covid-19 e o trabalhador periférico

A chegada da Covid-19 no Brasil desnudou algo que muitos brasileiros vivenciam diariamente: as disparidades socioespaciais e econômicas. No entanto, este ato provocado pelo vírus, não se expôs logo de início. Com a promulgação do isolamento social no Rio de Janeiro, as primeiras informações que circulavam nos grandes meios de comunicação anunciavam que o vírus chegou ao Brasil através dos ricos; e, também, que tinha um caráter democrático. Ou seja, que ele não fazia escolha de suas vítimas, sendo visto como um fenômeno que atinge a todos da mesma forma, permitindo prevenção e tratamento igualitários.

Deve-se dizer que esta análise não leva em consideração a realidade das periferias, das favelas e, especialmente, da Baixada Fluminense. Em primeiro lugar, pensar a Baixada Fluminense requer empreender um esforço de analisar algumas características que a difere das áreas centrais e nobres da cidade. Destarte, o primeiro passo fundamental é avaliar a sociabilidade presente nesta, isto é, pensar o cotidiano, os fluxos, encontros, festas, resistência dos corpos, resolução de problemas, no tempo e no espaço; é entender a rua e o convívio como abrigo para além dos metros quadrados da casa (RAMOS, 2003).

A sociabilidade que se conserva nesta área difere bastante da sociabilidade dentro dos “enclaves fortificados” (CALDEIRA, 1997) presentes nas áreas nobres carioca, pois enquanto um grupo pode se isolar dentro de casa e desfrutar os equipamentos dentro de condomínios, os moradores da Baixada não possuem essa possibilidade, já que sua relação com a rua está ligada à condição do trabalhador periférico.

A noção de periferia é caracterizada pelo espaço geográfico onde se sobressai um conjunto de carências, seja de serviços públicos ou de políticas públicas, que formam uma combinação de diferença urbana, social, econômica e cultural. Diferente das áreas nobres, a ocupação do território baixadense pelas camadas mais pobres ocorreu sem apoio estatal. Consequentemente, converteu-se em um provedor de trabalhadores precarizadospara o Rio de Janeiro, visto a grande concentração de empregos nas áreas centrais da cidade, colaborando para a metropolização no Estado (SOUZA, 2014).

Dado o caráter periférico do território, duas situações se colocam para o morador da Baixada Fluminense. Primeiro, os trabalhadores que rumam para o centro da cidade são os mais expostos ao risco de pegarem covid-19 devido a maior circulação entre municípios que precisam fazer dada a distância espacial entre a casa e o trabalho, aumentando o potencial da transmissão do vírus (RAMOS, 2020). Segundo, os moradores da Baixada que trabalham na região, em sua maioria, estão empregados em trabalhos informais, trabalhando em condições precarizadas, seja no setor de serviços, circulando com suas mercadorias pelas ruas ou pelos transportes públicos da região. Logo, com a pandemia, a tendência nacional do aumento do desemprego, da informalidade e do trabalho sem direitos possuem um impacto mais severo na Baixada Fluminense.

Somado a isso, a Baixada Fluminense não possui políticas de saúde adequadas as demandas existentes, também, há a convivência com problemas de saneamento e coleta seletiva de lixo o que traz à baila endemias como a Dengue e outras doenças tropicais, além das ligadas à má nutrição. Enquanto isso, as partes abastardas do estado contam com a possibilidade de uma manutenção da qualidade de vida devido a sua maior proteção diante do vírus.

Portanto, a diferença na sociabilidade e na relação com a rua do povo da Baixada Fluminense é explicitada pela condição de periferia do território, pois os moradores, já imersos em uma pandemia de carências, com o coronavírus se encontraram em uma nova encruzilhada: escolher entre trabalhar burlando a quarentena e correndo o risco de se contaminar; ou não trabalhar e morrer de fome devido à falta de assistência do Estado.

Nesse sentido, é fundamental destacar uma das categorias de trabalhadores da Baixada Fluminense: os trabalhadores da cultura. E, também, convém analisar os efeitos da pandemia em suas atividades. O setor da economia criativa é marcado por um alto grau de informalidade e trabalho precarizado. Na Baixada Fluminense, os trabalhadores da cultura dividem a mesma situação de vida do resto da população de baixa renda, sendo necessário, na maioria dos casos, outra atividade para complementar a renda.

Segundo Simões (2020), a segregação social no espaço urbano expressa pela relação entre a metrópole e a periferia marca também uma concentração de equipamentos culturais na área central e zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Logo, a dificuldade do acesso à cultura gerou uma gama de formas alternativas de cultura e lazer na região. Longe dos aparelhos de cultura do grande centro e devido aos recursos escassos para a produção cultural, surgem os aglomerados de diversão: conceito que visa identificar locais ou estabelecimentos que concentram atividades voltadas para a arte e cultura, marcados pela informalidade e originalidade das ofertas de serviços culturais (SIMÕES, 2020).

Contudo, diante de todas essas especificidades do trabalhador e morador da baixada, foi de fundamental importância a criação do auxílio emergencial para complementar a renda daqueles que foram demitidos ou tiveram uma diminuição em sua renda com a impossibilidade de trabalhar devido aos riscos do contágio. Além disso, na Baixada Fluminense, o auxílio pode ter sido a solução para algumas famílias, ainda que seja um valor baixo, para se escapar da encruzilhada entre a fome e o vírus já citada.

2. Lei Aldir Blanc e o trabalhador da cultura

Inobstante, o auxílio emergencial não contemplou todos os trabalhadores, haja visto que os trabalhadores da cultura não foram incluídos. Não se sabe ao certo o motivo deste seguimento ficar de fora do auxílio, pois, por quesito de relevância para além dos fatores subjetivos, segundo o Sistema de Informações e Indicadores Culturais do IBGE (2019), é um setor que empregou, em 2017, 1,9 milhão de pessoas e contabilizou 325,4 mil organizações.

Estes dados, mesmo que não representem a totalidade do setor cultural, dimensionam a quantidade de trabalhadores que direta e indiretamente atuam nele. Dito isto, vale ressaltar que a cultura foi o primeiro setor a parar suas atividades presenciais diante da pandemia do COVID-19 e, provavelmente, será a última a retornar, visto que shows, exposições, teatro, cinema, rodas, etc. são atividades que costumam aglomerar muitos indivíduos.

Desse modo, um setor de grande importância com pujante paralização de atividades iniciou movimentos de pressão – em nível municipal, estadual e federal – a fim de garantir razoavelmente a renda, a manutenção dos espaços e a dignidade dos artistas e pessoas envolvidas no geral. Nessa seara é articulada e aprovada a Lei emergencial cultural Aldir Blanc (Lei 1417/20) fruto de intenso diálogo entre movimentos artísticos e deputados e mobilização nas redes sociais.

A vitória do setor foi festejada por todos como alternativa num cenário tão incerto, porém, as disparidades entre o centro e a periferia se manifestaram no jogo. Apesar de alguns avanços em nível nacional, como a aprovação do Sistema Nacional de Cultura em 2012 que “organizou” a cultura, as grandes metrópoles absorveram os investimentos e a articulação empreendida pelo MINC, muito, deve-se dizer, pelas expertises consagradas em áreas historicamente beneficiadas pelo turismo, pelos equipamentos e circuitos culturais e por toda legislação construída. Por outro lado, a Baixada Fluminense enfrenta problemas para tanto.

Durante anos, os governos municipais da Baixada Fluminense deram pouca importância à área cultural, o que pode ser visto sobre várias formas: falta de infraestrutura física e burocrática, pouco diálogo com artistas e agentes culturais, carência de leis de regulamentação e estímulo, a secretaria de cultura em vários municípios aglutinadas em outras (Secretaria de Esporte, Cultura e Lazer, por exemplo) e descaso com os conselhos municipais e fóruns.

Os conselhos municipais de cultura sublinham bem este cenário. Como aponta Gonçalves e Simões (2017), os conselhos da Baixada Fluminense são desmobilizados, sem quórum, centralizados na figura do presidente e de integrantes do poder público sem debate de ideias, sendo, no limite, um instrumento de votação para legitimar algum interesse disperso, pouco esclarecido e publicizado.

Além disso, dos treze municípios que compõem a Baixada Fluminense [1] apenas Nova Iguaçu possuía o CPF da Cultura (conselho, plano e fundo) antes da aprovação da Lei Aldir Blanc, mesmo que a recomendação do Plano Nacional de Cultura fosse que todas as cidades e municípios o tivessem. Este é mais um dos fatores que dificultou a chegada dos recursos da Lei. A lentidão do poder público se manteria estática no que tange à cultura não fosse o montante de recursos anunciados.

A Baixada Fluminense, segundo a Confederação Nacional de Municípios (CNM), vai receber R$ 23.649.950,70 milhões da Lei Aldir Blanc, algo que no agregado pode parecer pouco, mas no desagregado e em comparação com o orçamento de cultura dos municípios de 2018 evidencia o argumento. Alguns exemplos emblemáticos sustentam o explicitado: Nova Iguaçu que recebia do Orçamento Público para a Cultura R$ 1.363,784 irá receber R$ 4.876.670,66 pela Lei Aldir Blanc; da mesma forma que Belford Roxo recebia R$ 308,784 vai receber R$ 3.105.537,65.

A Lei aprovada seguirá três frentes de ação: 1) pagamento de auxílio aos trabalhadores de cultura no valor de R$ 600,00; 2) subsídio mensal aos espaços artístico e culturais, microempresas, cooperativas e organizações culturais e; 3) Ações de fomento por meio de editais ou prêmios para realização de atividades artísticas que possam ser transmitidas ou disponibilizadas pela internet. Uma preocupação fruto das mobilizações foi a descentralização dos recursos, isto é, o auxílio ficou a cargo do estado enquanto editais e subsídios aos espaços culturais ficaram com os municípios. Essa estratégia foi fundamental, pois em ano de eleições municipais os recursos poderiam servir como troca de votos.

Considerações Finais 

Diante de todas as dificuldades para recebimento do Auxílio Emergencial da Cultura, a Baixada Fluminense vivenciou uma intensa e profícua mobilização para mapear os artistas e coletivos. Criou-se uma rede de apoio para compartilhar dúvidas e saná-las, os artistas e coletivos articularam-se para efetuar o cadastramento frente a problemas de conexão de internet e falta de conhecimento das plataformas; montaram estratégias de atuação perante ao poder público, reativaram fóruns e conselhos municipais e intensificaram as atuações nas redes sociais.

Neste momento editais e prêmios começam a serem distribuídos e apesar da burocracia e dificuldade para com a linguagem dos documentos, o ambiente é de otimismo diante da desmobilização e dispersão que os municípios vivenciavam; talvez um dos saldos positivos – além do dinheiro – tenha sido a aglutinação coletiva em prol de um objetivo comum. Por exemplo, o Instituto Enraizados [2], um dos pouquíssimos aparelhos de cultura situados na Baixada Fluminense, buscou cadastrar todos os artistas e profissionais da cultura que se encontravam em situação de vulnerabilidade de modo a formar uma rede cultural integrada na Baixada Fluminense. É devido a ações como esta que, apesar da pandemia, a cultura em território baixadense resiste e no futuro há a esperança de uma maior integração na cena cultural.

Referências

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Enclaves Fortificados: a nova segregação urbana. Novos Estudos Cebrap, n. 47, 1997.

CNM. CNM divulga estimativa de repasse para ações emergenciais na cultura. 05/06/2020. Disponível em: https://www.cnm.org.br/comunicacao/noticias/cnm-divulga-estimativa-de-repasse-para-acoes-emergenciais-na-cultura

GONÇALVES, M. T.; SIMÕES, J. M. A dinâmica de participação social nos Conselhos Municipais de Cultura da Baixada Fluminense. Revista Pensamento Contemporâneo em Administração, v. 11, n. 4, p. 56-71, 2017.

ITAÚ CULTURAL. Observatório Itaú Cultural – Painel de Dados. Disponível em < https://www.itaucultural.org.br/observatorio/paineldedados/pesquisa/financiamento >. Acesso em: 30 de agosto de 2020.

RAMOS, T. T. A geografia dos conflictos sociais da América Latina e Caribe. Informe final del concurso: Movimientos sociales y nuevos conflictos en América Latina y el Caribe. Programa Regional de Becas CLACSO. 2003 Disponible en la World Wide Web: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/becas/2002/mov/tramon.pdf

RAMOS, T. T. Pandemia é pandemia em qualquer lugar – vivendo a crise da Covid-19 de fora dos grandes centros.  Espaço e Economia [Online], 18 | 2020, posto online no dia 17 abril 2020, consultado em 30 agosto 2020. URL: http://journals.openedition.org/espacoeconomia/11406;

SIMÕES, M. R. Uso do tempo livre e distribuição espacial dos equipamentos e manifestações culturais na metrópole carioca. In. Rocha, A. S. da (Orgs). Baixada Fluminense: estudos contemporâneos e (re)descobertas históricogeográficas. Duque de Caxias: ASAMIH. 2020,

SOUZA, R. S. Sobre o poder na Baixada Fluminense: o exemplo do município de Nilópolis/RJ. 2014. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

IBGE. Sistema de informações e indicadores culturais: 2007-2018 / IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. – Rio de Janeiro. IBGE, 2019.

Notas

1. Nilópolis, Nova Iguaçu, Queimados, Belford Roxa, São Joao de Meriti, Paracambi, Mesquita, Seropédica, Japeri, Duque de Caxias, Magé, Guapimirim e Itaguaí.

2. Ver em: https://www.enraizados.org.br/

¹Graduado em Ciências Econômicas pela UFRRJ. Pesquisador do coletivo Marxista da Rural (MAR/UFRRJ). E-mail: Utanaan.reis@gmail.com.

²Graduado em Ciências Econômicas pela UFRRJ. Pesquisador do Coletivo Marxista da Rural (MAR/UFRRJ) e do Observatório de Carnaval (OBCAR/UFRJ). E-mail: lima.bsd@gmail.com.