Precisamos ser Smart? Breves considerações sobre a agenda nacional para Cidades Inteligentes

Boletim nº 40 – 21 de dezembro de 2020

 

Por Alexandre Henrique N. da S. Almeida e Tainá Farias da Silva Maciel¹

 

Resumo

O presente ensaio busca discutir a respeito da estruturação do plano nacional para implementação e financiamento de projetos de cidades inteligentes nos municípios brasileiros. A partir de uma breve análise da Carta Brasileira para Cidades Inteligentes – um documento desenvolvido para unificar e orientar a construção desse novo modelo de gestão – propomos uma reflexão acerca das estratégias de “smartificação” do território brasileiro e as possíveis implicações de um gerenciamento urbano mediado por inovações tecnológicas e narrativas mercadológicas.

Palavras-chave: Cidades Inteligentes, Carta Brasileira, inovação urbana, sustentabilidade.

 

Introdução 

A necessidade de “transformar ‘cidades tradicionais’ em cidades inteligentes” (BOUSKELA, M et al., 2016) começou a ser uma demanda a partir dos anos 1990, quando o rápido crescimento urbano e as mudanças climáticas evidenciaram a iminência de um plano internacional de desenvolvimento sustentável. Com o transcorrer dos anos, cúpulas multilaterais conceberam estratégias e ações para transformar as cidades em territórios inclusivos, resilientes e sustentáveis. Nesse contexto, surgiram propostas como a Agenda 2030, um acordo entre os 193 países da Organização das Nações Unidas que estabeleceu 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS); e a Nova Agenda Urbana, um documento que alinhado com os ODS – em especial ao objetivo 11: cidades e comunidades sustentáveis – recomenda à governos, autoridades municipais e organizações, “padrões e princípios para o planejamento, construção, desenvolvimento, administração e melhora das áreas urbanas” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2019, p. 8). A NAU (Nova Agenda Urbana) traz, inclusive, em seu corpo o compromisso das nações que a compõem de adotar abordagens do que seria uma “cidade inteligente” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2019, p. 19). Outrossim, tanto a NAU (2019) como a Agenda 2030 (2015) contêm diversas diretrizes sobre a adoção de tecnologias, sobretudo da informação e comunicação, além de possuírem em seu escopo o fomento da transformação das cidades e assentamentos humanos em ambientes mais “verdes”, “acessíveis” e “seguros”.

Assim, com o propósito de mitigar os problemas urbanísticos e tornar as cidades mais “eficientes”, “humanas” e “sustentáveis”, governanças globais empreenderam por um processo de smartificação dos territórios, no qual a transformação digital apresentou-se como solução indispensável para a gestão e o planejamento urbano. No entanto, apesar dos inúmeros projetos de Smart City que emergem pelo mundo, não existe – até o momento – um conceito uníssono que delimite o que seja uma cidade inteligente.

Essa falta de definição padronizada sobre o tema, contribui para que os projetos nomeados smart sejam vinculados a agendas heterogêneas que se articulam de acordo com interesses e interpretações específicos de cada governança. Ou seja, os atributos inteligentes podem ser incorporados de diferentes formas e enfoque, de modo que cada gestão acabe por selecionar as estratégias que considere mais importante ou mais conveniente do ponto de vista político, econômico e social. Alguns governos podem, por exemplo, implementar ações smart que priorizem demandas mais técnicas, como o uso de dispositivos eletrônicos que otimizem operações e serviços de mobilidade, segurança ou sistema de energia; enquanto outros, podem ser mais sensível à questões ambientais, de transparência, participação etc.

Outra característica significativa, que diferencia esses novos modelos de gestão, diz respeito ao nível de implementação no qual se encontram. Apesar de a maioria das estratégias smart serem organizadas a nível local, países e nações vêm a cada dia se reestruturando para tornarem-se um “país inteligente” (ANGELIDOU, 2014). Um dos motivos para essa mudança reside na possibilidade de ampliar a coordenação entre as políticas de smartificação, visto que na corrida rumo à inovação, algumas cidades acabam desenvolvendo projetos smart com base em conceitos e metodologias díspares. Em alguns casos, um município ou até mesmo um bairro se diz inteligente sem efetivamente promover políticas urbanas inteligentes e sustentáveis.

No contexto brasileiro, tal situação não é diferente. Na cidade de São Gonçalo do Amarante no Ceará, por exemplo, existe o projeto Smart City Laguna (figura 1) que se denomina como “a primeira cidade inteligente inclusiva do mundo”. O empreendimento [1], construído do zero por uma empresa Italiana, se apresenta como uma Smart City pelo simples fato de utilizar dispositivos tecnológicos em seus lotes residenciais. Mas, seria isso uma cidade inteligente? Será que apenas esses recursos são suficientes para garantir que São Gonçalo do Amarante seja um território desenvolvido e sustentável? O que uma empresa privada é capaz de garantir em termos de moradia e qualidade de vida?

Captura de Tela 2020 12 20 as 07.40.29Figura 1 – Imagem por Planet Smart City

Esses projetos dispersos e pontuais, que alegam possuir o “certificado de inteligência”, podem deixar em segundo plano questões primordiais para um planejamento voltado para a redução das desigualdades socioespaciais e uma gestão pública voltada para a inclusão e o acesso democrático aos serviços públicos. Uma visão mais completa do conceito de cidades inteligentes demandaria a junção de um uso estratégico de todo tipo de recurso, inclusive, do capital humano, de modo a incentivar a educação, a criatividade e a participação política de seus cidadãos, promovendo soluções inovadoras que priorizem a qualidade de vida da população (ANGELIDOU, 2014).

Assim, no intuito de evitar essas controvérsias, o Governo Federal começou a articular a produção de diretrizes e políticas públicas sobre o tema das cidades inteligentes. A Secretaria Nacional de Desenvolvimento Urbano e o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) em parceria com o Ministério das Comunicações (MC), o Ministério do Meio Ambiente (MMA), a Agência Alemã de Cooperação (GIZ) e representantes da sociedade civil, elaboraram recentemente um documento que visa unificar, orientar e articular os programas, iniciativas e investimentos público em cidades inteligentes: a Carta Brasileira Para Cidades Inteligentes.

 

A Carta Brasileira para Cidades Inteligentes

A Carta Brasileira apresenta-se como “um documento político que expressa uma agenda pública brasileira.” (BRASIL, 2020, p.14). Como supracitado, este documento foi redigido por diversos setores da sociedades, dentre eles: agências internacionais, agentes do setor privado, órgãos do setor público das três esferas – municipal, estadual e federal–, entidades de ensino e pesquisa e membros da sociedades civil. O processo de criar este documento foi iniciado em março de 2019 e foi concluído em setembro de 2020, sob a gerência da Secretaria Nacional de Mobilidade e Desenvolvimento Regional e Urbano do Ministério do Desenvolvimento Regional (SMDRU/MDR).

A Carta é o produto de atividades, dentre elas oficinas, realizadas entre atores que a compuseram com a finalidade de “apoiar a promoção de padrões de desenvolvimento urbano sustentável” (BRASIL, 2020, p.16), e estabelecer um conceito nacionalmente unificado sobre o que são cidades inteligentes. O documento é dividido em três seções – Contexto brasileiro, Agenda pública e Perspectivas futuras –, que nos mostram um breve panorama sobre a situação brasileira acerca deste tema e declara algumas características que deseja que as cidades inteligentes tenham, dentre elas: diversidade, inovação no uso de tecnologias, inclusão de sua população, economia fértil e padrões sustentáveis de produção e consumo.

Seu conteúdo é resultado de uma ação prática motivada pela assinatura do Brasil em acordos internacionais, como por exemplo as já supracitadas Nova Agenda Urbana (BRASIL, 2020, p.10) e a Agenda 2030. Além disso, a carta afirma ser um instrumento “para que o país se desenvolva com redução das desigualdades em todos os níveis, formas e dimensões.” (BRASIL, 2020, p.15). Por fim, outro motivo apresentado seria a adoção de TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação) que estão frequentemente surgindo e transformando nossa sociedade atual, para que haja diminuição da exclusão digital e pleno direito de acesso a internet.

Já na primeira seção, a Carta Brasileira apresenta seus alvos ao elencar os atores a quem se dirigem – políticos e gestores públicos, órgãos de controle, organizações sociais, instituições de ensino e pesquisa e o setor privado. É importante destacar que o documento versa sobre o que cada agente deve realizar: instituições de ensino e pesquisa devem “gerar e disseminar conhecimento, além de apoiar agentes locais por meio de atividades acadêmicas de extensão”(BRASIL, 2020, p.14); gestores e órgãos públicos devem implementar estratégias, articular iniciativas e dar suporte financeiro para a criação das cidades inteligentes; e o setor privado deve “oferecer soluções criativas e inovadoras para as cidades enfrentarem problemas públicos relevantes, indicados e reconhecidos pela população local e socialmente legitimados”(BRASIL, 2020, p.14). Outras diretrizes abrangem o fomento para que toda a população das cidades tenha acesso a internet, o estímulo à participação popular em todo o processo de implantação de tecnologias, e o estabelecimento de padrões para uso de sistemas de governança de dados e uso da tecnologia visando a transparência, a segurança e a privacidade.

O ponto central da Carta são os Oitos Objetivos Estratégicos para cidades inteligentes. Que nada mais são do que diretrizes que visam “a transformação digital sustentável nas cidades brasileiras.” (BRASIL, 2020, p.27) Além disso, trazem detalhes de como atingir cada um dos objetivos e como cada ator previamente mencionado deve se portar para alcançar tais realizações.

Alguns objetivos se tornam contraditórios, pois, ao mesmo tempo que a Carta revela uma preocupação com a segurança e o uso consciente e transparente dos dados, em outro propõe a implementação de políticas, leis, regulamentos e outros instrumentos que estabeleçam um mercado de dados ético e inclusivo (BRASIL, 2020, p. 53). O que nos leva a questionar se tal mercado não poderia criar uma problemática acerca do uso dos dados, afinal: como comercializar dados com setores que visam primordialmente o lucro e mantém seu modo de operação fechado e longe da observação da população de maneira geral e, ainda assim, manter o controle e a ética no uso dos dados? E, além disso, qual seria o papel do poder público e outras instituições públicas ou regulatórias na gestão e controle dos dados em uma eventual “venda” desses ativos? Seguindo esta linha de pensamento da Carta, podemos questionar e problematizar inclusive o uso do termo “mercado de dados” para um ponto tão crucial acerca da gestão de uma cidade.

Como Morozov e Bria (2019, p. 36) destacam, a maioria das cidades que se aventuraram pelo universo das Smart Cities foram capturadas pelos dispositivos regulatórios do neoliberalismo, onde o “empresariamento da gestão urbana” (HARVEY, 1996 apud VAINER, 2007, p. 5), permite que agentes privados passem a ser encarregados de funções que antes eram restritas às instituições públicas. Nessa nova dinâmica mercadológica os dados atuam como moedas de troca, um elemento crucial para selar acordos.

Para cidades depauperadas que já estão sob o suplício fiscal da austeridade, esta é uma proposta muito mais atraente: dados não entram em considerações ou em suas medições e, assim, podem ser facilmente cedidos em troca da oferta de wi-fi ‘grátis’ para cidadãos ou de softwares avançados de análise de tráfego para o planejamento urbano. (MOROZOV; BRIA, 2019, p. 67)

Para mais, a Carta recomenda o uso de TICs de processamento de dados para identificação de fenômenos urbanos e a sistematização de dados que sejam relevantes para o desenvolvimento urbano e sustentável; a criação e utilização de indicadores que avaliem a situação das cidades; e também a criação de um Sistema Brasileiro de Maturidade para Cidades Inteligentes – uma plataforma de monitoramento das ações que cada cidade estaria tomando frente aos objetivos propostos.

Para nós esse é um dos pontos mais problemáticos do documento. A concepção de um método de avaliação pautado pelo “grau de maturidade” de indicadores pode acirrar a competitividade entre as cidades e ampliar as desigualdades territoriais. Como citado anteriormente, o uso de métodos avaliativos – rankings, premiações, indicadores etc. – fazem parte de uma estratégia que movimenta um mercado global de empreendimentos e inovações tecnológicas, no qual cidades concorrem entre si para atrair capital. Os rankings aumentariam a dependência dos municípios por linhas de crédito e fundos financiados pelo Governo Federal. Por consequência, grande parte das cidades ficariam dependentes desse processo, uma vez que muitas já passam por períodos de condições econômicas desfavoráveis, permeadas por crises fiscais e financeiras, que podem ser agravadas se levarmos em conta que uma parcela de seus orçamentos são estipulados pelo governo federal e são passíveis de cortes. Além disso, é preciso considerar que, no geral, as classificações são construídas a partir de diretrizes internacionais, como o International Telecommunication Union (ITU) e o ISO 37122/2019, que não consideram as particularidades brasileiras e podem até camuflar algumas realidades.

A título de exemplo podemos citar o caso da cidade do Rio de Janeiro que já recebeu o prêmio de cidade mais inteligente do mundo pelo Smart City Expo World Congress de 2013, mas até hoje enfrenta inúmeros problemas, como os elevados índices de criminalidade, saturação do sistema de saúde, sucateamento do transporte público e ausência de esgotamento em vários pontos do município. Como uma premiação baseada nos critérios de inovação, impacto e viabilidade, que tinha entre seus princípios o estímulo à sustentabilidade, qualidade de vida, competitividade e eficiência administrativa pode considerar inteligente uma cidade que não consegue transformar positivamente a realidade de sua população? Como podemos atribuir inteligência a cidade cujo projeto de gestão Smart amplia as lacunas sociais (ANGELIDOU, 2014)?

 

Considerações finais

A Carta Brasileira considera que “O futuro das cidades brasileiras depende de entender que a transformação digital é um processo dinâmico, inédito e capaz de ser gerido. E também entender os impactos que essa transformação causa nas cidades e nas pessoas” (BRASIL, 2020, p. 68). Sua proposta é ser um produto base que incentivem outras instituições e organizações a construírem produtos similares que fomentem o desenvolvimento sustentável e a construção de cidades que façam uso de governança inteligente. Contudo, acreditamos que para além de pensar o que seria uma Smart City no contexto brasileiro, deveríamos refletir sobre os caminhos que queremos percorrer na busca pela cidade do futuro e por fim nos perguntarmos: precisamos ser Smart?

 

Referências Bibliográficas 

ANGELIDOU, M. Smart city policies: A spatial approach. Cities, v. 41, p. S3-S11, 2014.

BRASIL. Carta Brasileira para Cidades Inteligentes. Brasília-DF: Ministério do Desenvolvimento Regional, 2020.

BOUSKELA, M; CASSEB, M; BASSI, S; DE LUCA, C; FACCHINA, M. Caminho para as Smart Cities: da gestão tradicional para a cidade inteligente. BID, 2016.

MOROZOV, E; BRIA, F. (2019). A cidade inteligente: tecnologias urbanas e democracia. São Paulo: UBU editora, p. 24-75.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Habitat III: nova agenda urbana. Quito (Equador), 2016. Tradução: Brasil, 2019. Disponível em: https://habitat3.org/wp-content/uploads/NUA-Portuguese.pdf Acesso em: 06 out. 2020.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Nova York (EUA), 2015. Tradução: UNIC Rio, 2015. Disponível em:

http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_desenvsust/Agenda2030-completo-site.pdf

VAINER, C. B. Pátria, empresa e mercadoria. Notas sobre a estratégia discursiva do Planejamento Estratégico Urbano. In: Org. ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. 4a. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

 

————————————

[1]Disponível em: https://www.planetsmartcity.com.br/cidades-inteligentes-o-que-sao-e-quais-existem-no-brasil/. Acesso em: 06 out. 2020.

 

¹GPDES/UFRJ