Racializando o olhar (sociológico) sobre a saúde ambiental em saneamento da população negra

Boletim nº 25 – 18 de junho de 2020

Racializando o olhar (sociológico) sobre a saúde ambiental em saneamento da população negra: um continuum colonial chamado racismo ambiental

Por Victor de Jesus

 

Atualmente, compreende-se como saneamento básico o conjunto de serviços, infraestruturas e instalações operacionais de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, drenagem e manejo das águas pluviais urbanas, esgotamento sanitário e abastecimento de água potável. Saneamento ambiental, por sua vez, compreende o saneamento como instrumento de promoção à saúde que, além do saneamento básico, inclui os resíduos gasosos, a promoção da disciplina sanitária de uso do solo, o controle de doenças transmissíveis e demaisserviços e obras cuja finalidade seja a qualidade de vida e bem-estar urbano e rural (Brasil, 2007; Funasa, 2015).

Desse modo, torna-se evidente a estreita relação entre saneamento, saúde e meio ambiente, cuja relevância e comprovação estão evidenciadas na existência de áreas e conceitos como epidemiologia ambiental, saúde ambiental, salubridade ambiental e promoção de saúde, ainda que na prática o planejamento não seja integrado (Funasa, 2015; Heller, 1998; Soares; Bernardes; Cordeiro Netto, 2002). Merece atenção ainda o conceito de saúde ambiental em saneamento, que se refere à promoção da saúde e qualidade de vida da população por meio das ações em saneamento e intervenções em educação, conforme o Manual de saneamento (Funasa, 2015).

No arcabouço legal, a saúde ambiental em saneamento é assegurada tanto a nível nacional quanto internacional. Constitucionalmente (Brasil, 1988), a saúde é assegurada como direito de todos e dever do Estado (art. 196), sendo a participação na formulação da política de saneamento e a execução das ações do setor (art. 200) como parte do escopo do Sistema Único de Saúde (SUS). Já o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é garantido como requisito para a sadia qualidade de vida daspresentes e futuras gerações (art. 225). Já o direito ao saneamento e à saúde ambiental, bem como a universalização do acesso ao saneamento básico, são instituídos pela lei 11.445/2007 (Brasil, 2007), conhecida como lei do saneamento básico por estabelecer as diretrizes do setor.

No entanto, a saúde ambiental em saneamento enquanto direito não garante o seu cumprimento legal. Em virtude desse aspecto, as discussões sobre determinantes sociais da saúde, iniquidades em saúde e justiça ambiental têm contribuído de forma significativa na politização dos processos sociais de saúde-doença, denunciando o caráter injusto, evitável, inaceitável e desumano que acomete as condições de saúde de alguns segmentos sociais situados em contextos espaciais de desigualdades socioeconômicas, ambientais e culturais (Barata, 2001, 2009; CNDSS, 2008; Porto, 2004).

Assim, a falta de acesso à moradia digna e ao saneamento emergem como determinantes do processo saúde-adoecimento no país (Brasil, 2010; CNDSS, 2008) e, consequentemente, produzem quadros epidemiológicos cujos perfis predominantes são grupos destituídos de poder e propriedade (Barata, 2001, 2009). Nesse sentido, algumas autoras têm destacado que a população negra2 constitui um desses grupos vulnerabilizados e ressaltado a necessidade de pesquisas sobre as condições de saneamento e seu impacto na saúde da população negra (Cunha, 2012; Garcia, 2009; Lopes, 2005a, 2005b; Rosemberg; Pinto, 1995; Santos, 2013), já que o enfoque na relação saneamento e raça é bastante limitado3 na bibliografia nacional. E, quando o fazem, as pesquisas não trazem o contexto histórico, tampouco a colocam na discussão teórica e política do racismo (estrutural, institucional, ambiental). Aliás, a própria discussão sobre racismo ambiental no Brasil é ainda muito insipiente e somente mais recentemente a discussão sobre racismo institucional tem ganhado força.

Somado a isso, não se deve perder de vista que, numa escala maior, a variável racial e a discussão sobre racismo e desigualdades raciais no campo da epidemiologia e da saúde pública, bem como o diálogo com a interface ambiental, seguem negligenciadas nas agendas hegemônicas de pesquisa das ciências sociais em saúde, de tal modo que colocam demandas como fomento de pesquisas sobre o quadro epidemiológico da população negra, abordagem, identificação e combate às formas de racismo institucional e identificaçãodas necessidades de saúde da população negra das áreas urbanas (Barata, 2009; Bastos; Faerstein, 2012; Brasil, 2013; Cunha, 2012; Lopes, 2005a, 2005b; Soares Filho, 2012; Werneck, 2016).

Este artigo, portanto, visa preencher (sem a pretensão de esgotar) essa lacuna, na medida em que busca ressaltar a importância da variável racial na análise da relação saneamento e saúde e situar essa temática na discussão sobre racismo ambiental a partir de uma perspectiva político- histórica que realce a importância das doenças de saneamento na composição do quadro de morbimortalidade da população negra. Assim, racializar a discussão sobre saneamento e saúde (ambiental) e politizar a discussão sobre racismo constituem o mote deste artigo.

Ademais, implicitamente objetiva-se elevar esse problema social a problema sociológico, isto é, empreender um esforço de pesquisa que o coloque como um problema científico e como alvo de políticas sociais, como assinala Silva (1967). Para isso, é importante considerar que a pesquisa científica precisa estar relacionada à vida real e aos interesses e circunstâncias sociais, pois “nada pode ser intelectualmente um problema se não tiver sido, em primeiro lugar, um problema da vida prática” (Minayo, 2012, p. 16).

Nesse sentido, convém apontar que este artigo foi produzido a partir de questões-incômodos de minha experiência individual durante a ida para o Rio de Janeiro nos dois anos de mestrado. Na “cidade maravilhosa” vivenciei problemas cotidianos oriundos da falta de saneamento, desde baixa pressão e falta d’água à não utilização da água por sair excessivamente quente da caixa, passando ainda por convívio com o excesso de lixos, ratos e baratas. A preocupação de chover e não ter como entrar em casa, sair de casa sem poder tomar banho, neurose em fechar todos os buracos possíveis para não entrar barata e enchimento de vasilhas d’água na universidade para consumir em casa foram algumas experiências que marcaram minha passagem pelo Rio de Janeiro. Essa narrativa é minha, mas não só minha.

Longe de ser um problema individual e uma realidade oculta, essa é uma realidade social evidente e facilmente verificável quando se anda em periferias, favelas, subúrbios e quebradas. Em face disso, busco, portanto, a macroescala, os dados gerais que alcem esse fenômeno social a problema sociológico de abrangência nacional. Para isso, utilizo-me da pesquisa bibliográfica de nível exploratório, conforme sugere Gil (2009), na medida em que constitui uma apropriação de material já elaborado, sobretudo livros e artigos científicos, para produzir uma visão geral e aproximativa sobre o fato, sobretudo quando o tema é pouco explorado, a fim de recolocar o problema sob um novo prisma. Além disso, analiso os dados atuais de acesso a saneamento e morbimortalidade por doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado segundo cor/raça, utilizando as bases de dados do Censo 2010, do IBGE, e do Tabnet DataSUS, do SUS.

Inicio com uma reflexão sobre o que se entende por racismo institucional e qual sua relação com a saúde. Em seguida, abordo o racismo ambiental como uma dimensão do racismo institucional e sua relação com o saneamento e a insalubridade ambiental. Por fim, situo a histórica e colonial relação da população negra com o não acesso a saneamento e seu impacto na morbimortalidade dessa população.

 

 

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