Resenha: A dialética das Contradições/Rupturas – Resenha Crítica da obra “17 contradições e o fim do capitalismo”, de David Harvey.

A dialética das Contradições/Rupturas – Resenha Crítica da obra “17 contradições e o fim do capitalismo”, de David Harvey. 

Por Breno Serodio¹

Esse trabalho foi produzido a partir das discussões acerca dos Estudos Regionais, durante a disciplina Planejamento Urbano e Regional no Brasil II, ministrada pela Professora Hipólita Siqueira. 

O geógrafo David Harvey, que também atua no campo da Economia Política, é autor da obra “17 contradições e o fim do capitalismo”. Harvey é um dos pensadores no campo analítico e reflexivo da teoria marxista contemporânea. Sua literatura abrange temáticas como os Estudos Urbanos, Neoliberalismo, Imperialismo, Geografia Econômica e outras frentes de pesquisa. Na obra resenhada, David Harvey tem como objetivo principal discutir sobre o funcionamento do modo de produção capitalista a partir de contradições e efeitos econômicos, sociais e políticos oriundos das diversas crises que o sistema do capital tem enfrentado ao longo da história. Ademais, o autor perpassa por possíveis mecanismos de superação destas contradições e em última instancia, da estrutura do capitalismo.

Inicialmente, Harvey apresenta o processo metodológico de abstração que norteia sua argumentação. O autor divide capital e capitalismo em dois elementos diferentes, dando ênfase ao termo/categoria “contradição”, que é essencial na teoria marxista (HARVEY, 2017, p.19-22). Uma abordagem que pode surpreender o leitor se configura no entendimento das contradições como elementos que fogem da dicotomia bom/ruim. Em outras palavras: o autor não apresenta uma perspectiva moralista das contradições (e do próprio capitalismo), mas as enxerga como pontos de partidas que podem vir a originar mudanças e transformações sociais, se configurando em “devir superação”.  

Com esse fim, é realizado o movimento analítico de desmistificação destas contradições presentes no seio da sociedade capitalista. Esse desafio teórico é apresentado de forma coerente, por meio das inflexões entre a dialética essência/aparência, buscando elucidar alguns processos que entrecorrem de forma alienada no cotidiano social. Para isso, o conceito de fetiche (em Marx) aparece como espectro da discussão estabelecido pelo autor, mesmo não sendo seu escopo de pesquisa central. 

Nesse contexto, o autor salienta que essas contradições não possuem a natureza de serem situações pontuais ou solucionáveis, mas se apresentam como estruturas que se acumulam e se deslocam de diferentes formas e em diferentes contextos (HARVEY, 2017, p. 17). No geral, a partir do referencial marxista, o autor defende que essas contradições perpassam pelo modo de produção do capital em sua totalidade, pois são sua força motriz, abrangendo diversas localidades pelo mundo. Assim, Harvey busca identificar as contradições internas e imanentes ao capital, que são a origem das crises do capitalismo contemporâneo. Nesse contexto, o cenário de continuidade do avanço capitalista se atrela, intrinsicamente, a destruição da vida de pessoas ao redor do mundo (HARVEY, 2017, p.21). Consoante ao movimento de crise social, Thiago Canettieri (2022) utiliza o aporte conceitual de autores como Karl Marx, Henri Lefebvre e Francisco de Oliveira, a fim de construir a ideia de devir-periferia, que trata do processo de “periferização do mundo” pautada na lógica de colapso sistêmico engendrado pelas contradições do capitalismo. 

A apresentação das contradições, que é o ponto central da obra de Harvey, se divide em três partes. Essas partes são subdivididas em: (i) Contradições fundamentais; (1) valor de uso e valor de troca, (2) valor social do trabalho e sua representação pelo dinheiro, (3) propriedade privada e o Estado capitalista, (4) apropriação privada e riqueza comum, (5) capital e trabalho, (6) capital como processo ou como coisa, (7) a unidade contraditória entre produção e realização. (ii) Contradições mutáveis; (8) tecnologia, trabalho e descartabilidade humana, (9) divisões do trabalho, (10) monopólio e competição: centralização e descentralização, (11) desenvolvimentos geográficos desiguais e produção de espaços, (12) disparidades de renda e riqueza, (13) reprodução social, (14) liberdade e dominação. (iii) Contradições perigosas; (15) crescimento exponencial infinito, (16) relação do capital com a natureza, (17) a revolta da natureza humana: alienação universal. 

Resumidamente, as contradições fundamentais se referem ao processo de atuação do capitalismo, de modo que a existência dessas contradições permite a produção e reprodução do círculo do capital (HARVEY, 2017, p. 90). Essa subdivisão demonstra a mais aparente conversação com os conceitos presente no Livro 1 d´O Capital, de Marx. A partir desses conceitos marxistas fundamentais, Harvey consegue abordar as contradições que até os tempos atuais geram inflexão na materialidade, dando um “frescor contemporâneo” ao materialismo histórico dialético. Já as contradições mutáveis são aquelas que não se estabilizam ou apresentam-se de forma estática, alterando seu espaço de desdobramento (HARVEY, 2017, p. 101). Além delas, Harvey denomina como contradições perigosas aquelas que podem engendrar a superação do capitalismo, abrindo terreno para trabalhar algumas estratégias de superação. 

Ao longo da exposição das contradições, Harvey utiliza exemplos de casos cotidianos, tornando os conceitos palatáveis de forma didática, citando casos no âmbito da saúde e educação a fim de estabelecer um diálogo sobre valor de troca e valor de uso. Sob o ponto de vista do campo do Planejamento Urbano e Regional, a contradição (11) “Desenvolvimentos Geográficos Desiguais e Produção do Espaço”, inserida na categoria de contradições mutáveis, chama atenção.

Nesta contradição, Harvey discute acerca da produção do espaço geográfico por parte do capital, que tem como intuito desenvolver seu processo de reprodução. Ou seja, o cerne desta contradição se concentra na compreensão do papel do Capital e do Estado na paisagem geográfica, que é inserida no circuito de produção e reprodução do capital, como instrumento de acumulação e não apenas “palco de transformações”. A discussão acerca do papel “empreendedor” da governança urbana também é elaborada no texto “Do administrativismo ao empreendedorismo: a transformação da governança urbana no capitalismo tardio” (HARVEY, 2005).

Segundo Harvey “a paisagem geográfica construída pelo capital não é um produto passivo” (HARVEY, 2017, p.139). Porém, o autor chama atenção, desde o início de sua argumentação, para a lógica de instabilidade dessa paisagem geográfica. Essa instabilidade seria decorrente das variações naturais – ao modo de produção do capital – nos âmbitos econômicos, sociais e políticos. Assim, as mais diversificadas contradições presentes no núcleo do funcionamento do capitalismo ganham amplitude se materializando na paisagem geográfica.

Á vista disso, o próprio capital deve se adaptar ao mundo em constante evolução que ele mesmo ajuda a criar. Nesse sentido, há uma interação contraditória entre capital e transformações, pois ao mesmo tempo que o capital contribui para a criação dessas transformações, ele deve acompanha-las em prol da manutenção de seu processo de reprodução, pois sem a movimentação de valor e criação de mais-valor não há capital. Harvey analisa o impacto de novos padrões geográficos de produção em diferentes localidades, englobando startups na Coreia do Sul aos grãos mais baratos na América do Norte. Os exemplos concretos utilizados apresentam de forma didática a transmutação de pequenas diferenças de custos em mais lucro para o capital, tendo em vista o aprofundamento das especializações regionais e divisões do trabalho. 

Outra forma de otimização de tempo e redução de custos ocorre por meio da fixação das atividades em uma localidade estratégica, que busca atender a demanda pela diminuição de custos com meios de produção, mão de obra e acesso ao mercado. Esse mecanismo proporciona o surgimento das economias de aglomeração, que se efetivam através do agrupamento de diferentes capitais. Harvey argumenta que essa aglomeração gera centralização geográfica e nesse cenário, o núcleo do movimento acumulativo produz regiões econômicas, impactando as dinâmicas socioespaciais diretamente. “As aglomerações urbanas são ambientes construídos que favorecem a sustentação coletiva de grupos particulares de atividades produtivas” (HARVEY, 2017, p. 141), e assim, as produções de algodão em Manchester e lã em Leeds são resgatadas como exemplos do século XIX. 

Na esteira do exposto, os nascimentos dessas economias regionais geram importantes desdobramentos. Um dos principais é sua interligação ao desenvolvimento geográfico desigual, onde regiões ricas tendem a ficar mais ricas e regiões pobres tendem a ficar mais pobres. Um movimento praticamente metafórico a criação de mais-valor e exploração de trabalho abstrato. Regiões desenvolvidas atraem novas atividades econômicas, logo, atraem mais capital. Regiões subdesenvolvidas carecem de serviços e atividades, entrando em uma espiral de decadência. Portanto, a concentração de riqueza e poder é o resultado gestado nesse movimento de aglomeração. 

Mas como o próprio modo de produção capitalista, há uma contradição na essência deste processo: os limites da aglomeração contínua e irrestrita. Poluição, aumento dos custos de vida, organização contra exploração e aumento do preço da terra (em decorrência do aproveitamento da classe rentista) são exemplos materiais destes limites. Quando essas consequências negativas se intensificam, os capitalistas buscam novos espaços na economia global, gerando crises de desvalorização que influenciam outras regiões econômicas. Com isso, crises regionais de produção e emprego sintetizam uma mudança de poder nas forças produtivas responsáveis pela paisagem geográfica, demonstrando uma mudança na própria estrutura de evolução do capital.  

Na perspectiva do autor, o capital busca pela produção de espaços que favorecem seu movimento de reprodução e por essa razão, afeta diferentes localidades espalhadas pelo mundo de forma diversificada. Por conta disso, o circuito do capital concebe um espaço geográfico que atende suas demandas. “Sem o desenvolvimento geográfico desigual e suas contradições, há muito tempo o capital já estaria ossificado e se tornado caótico” (HARVEY, 2017, p. 149).

Portanto, a contradição 11 se concentra na relação espaço/capital e busca alinhar como a estrutura do capitalismo e a busca intrínseca de circulação pelo capital se desdobra nas diferentes regiões, deixando rastros de destruição geradores de crises. Na presente resenha não será possível abordar todas as reflexões levantadas pelo texto, por isso fica a forte recomendação da leitura do livro, bem como dos outros textos referenciados. 

Em linhas gerais, a obra transmite a noção de que a dialética contradição/superação constitui um elemento natural ao capitalismo, pois o desenvolvimento capitalista é necessariamente contraditório. O movimento de acumulação é, simultaneamente, o movimento de sua própria dissolução. Por conta disso, a sistematização das contradições e elaborações de superação, mesmo que ensaísticas, são grandes méritos da obra. 

Nota

  1. Bacharel em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (UFRJ) e Mestrando em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ)

Referências 

CANETTIERI, Thiago. O DEVIR-PERIFERIA DO MUNDO: CRISE DO CAPITAL E A CONDIÇÃO PERIFÉRICA. GEOgraphia, v. 24, n. 52, 2022.

HARVEY, David. 17 contradições e o fim do capitalismo. Boitempo Editorial, 2017.

HARVEY, David. Do administrativismo ao empreendedorismo: a transformação da governança urbana no capitalismo tardio. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, p.163-190, 2005.