Setembro amarelo e saúde mental: uma reflexão de proteção à vida na pandemia

Boletim nº 35 – 16 de setembro de 2020

 

Por Pollyanna de Souza Carvalho¹

 

Diante de várias interpretações sobre a pintura expressionista do norueguês Edvard Munch, “O Grito” (1893), aos olhos de quem analisa a linguagem corporal do sujeito, se percebe o desespero e agonia que alimentam a alma do personagem[2]. As cores intensas e o cenário retratam um mundo que transparece a ausência de alegria, assemelhando-se a uma “prisão” externa e sua junção ao casulo interno dos sujeitos. Esta “prisão” externa pode ser ocasionada por diversos elementos que incidem no comportamento dos indivíduos, como a dimensão econômica, social, sanitária, política, cultural e ambiental.  Assim, o mundo que contorna os seus habitantes é um fator fundante do estabelecimento de sentimentos, relações sociais e produtivas, construção de projetos pessoais e profissionais, além da constituição de personalidades e coletividades.

Os sentimentos de agonia e desespero quando associados à sobrevivência de milhões de brasileiros, têm significado dores profundas e marcas que podem não ser sanadas sem o auxílio profissional e laços de solidariedade, mesmo a distância. Este quadro no atual contexto brasileiro, permeado pela até então crise sanitária acompanhada pelo COVID-19, representa o que muitos brasileiros estão passando em virtude do isolamento social, ausência de contatos afetivos e profissionais, desemprego, luto, sobrecarga de tarefas domésticas e de cuidados, violência doméstica e intra-familiares, entre outras questões que perpassam a quarentena na própria residência.

Se possível, é requerido que não haja aglomeração entre as pessoas nos espaços públicos, diferentemente do que se tem presenciado, todavia, no mês do Dia Mundial de Prevenção do Suicídio (10/09), em que diversos sujeitos foram às praias brasileiras, sabendo que ainda há exposição de riscos e contaminação ante crise sanitária.

O país, acompanhado por um governo que demonstra não valorizar a vida da classe trabalhadora, nem de famílias, idosos, crianças e adolescentes, tem se enfraquecido pelo avanço dos pressupostos neoliberais, mais ainda, pelo desfinanciamento de políticas e serviços sociais. Estas políticas poderiam ser, por outro lado, garantidoras dos direitos de cidadania e redução das desigualdades entre os brasileiros.

O próprio auxílio emergencial, como foi veiculado recentemente pela mídia, apesar de conter regras seletivas e pouco equitativas entre as camadas empobrecidas, foi reduzido para os beneficiários, sendo que muitos destes precisam pagar dívidas, aluguel, alimentação, transporte público e mercadorias para reprodução social. Mais uma vez, os brasileiros arcaram com o ônus dos atos públicos e descaso com a população, principalmente os segmentos populares.

Dessa forma, sob falas baseadas no autoritarismo pungente e desqualificação de práticas cidadãs, as ações públicas estão reforçando os princípios ancorados no Consenso de Washington (1989), destilando intolerância, mercantilizando serviços, e onerando a população pela tarefa de proteção e cuidados pessoais.

Estas decisões políticas e debruçadas em relações de poder, em uma sociedade cuja colonização exterminou índios, negros e dizimou famílias, têm refletido diretamente na saúde mental e suscitando práticas que desfaçam com a vida, e uma delas é o suicídio. O mês de setembro é reconhecido nacionalmente por conter um saldo positivo em buscar sensibilizar à população sobre a necessidade de proteção à vida, seja em todos os sentidos, para que haja a ressignificação e tratamento do sofrimento e das dores físicas e mentais, causadas por diversos fatores, não somente provenientes da própria sociedade. Neste sentido do setembro amarelo, para Cavalcante (2019), o movimento foi constituído no Brasil, no ano de 2015, pelo CVV (Centro de Valorização da Vida) em parceria com o CFM (Conselho Federal de Medicina) e a ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), com a finalidade de conscientizar sobre a prevenção do suicídio.

Atualmente com a pandemia, Giovanaz (2020) manifesta que ela intensificou a crise global no âmbito da saúde mental. Muitas pesquisas ao redor do mundo já têm mostrado os efeitos psíquicos, não apenas da doença, porém, das próprias ações de contenção.

Além do suicídio não fica de fora o uso de álcool. Nessa direção, houve o aumento de 38% na venda de bebidas alcóolicas durante o isolamento, tendo em vista os dados da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead), no mês de maio. Caso como esse, de consumo insalubre de álcool na residência, requer cuidado não somente pelo viés sanitário, uma vez que pode estar relacionado ao aumento do índice de violência doméstica, ou no que concerne ao uso insalubre de substâncias ilícitas (GIOVANAZ, 2020).

Segundo o médico peruano Jeff Huarcaya-Victoria:

Nossos estudos demonstram, por exemplo, que um dos principais fatores de risco é ser mulher. Elas têm manifestado maiores níveis de depressão, ansiedade e estresse, por diferentes motivos. A proporção é de três para um, em relação aos homens […]. Então, as estratégias de saúde mental devem priorizar a atenção às mulheres. Lembrando que, na América Latina, os casos de violência doméstica também cresceram na quarentena (GIOVANAZ, 2020).

Relacionado ao debate de extrema urgência, que é a violência contra a mulher e um maior nível a doenças, se encontra outra dimensão: classe social. Na visão de Sakamoto (2020), o atendimento do Samu ligado ao suicídio aumentou durante a pandemia. Um socorrista do estado de São Paulo explana que “aqui os casos atingiram principalmente pessoas de classes C e D”. Ainda há o relato dele de que “temos ouvido muito sobre a falta de diálogo dentro de casa, situação aprofundada pela crise, com famílias sendo obrigadas a conviver o tempo todo, muitas vezes em residências muito pequenas” (SAKAMOTO, 2020).

É sabido, como Cavalcante (2019) pontua que, entre os sinais amarelos que podem ocasionar o suicídio, o isolamento é um deles, na medida em que a pessoa evita encontros sociais e refuta convites. Nesse quadro pandêmico é necessário, por outro lado, que as pessoas possam se comunicar e realizar encontros em outras modalidades, seja mediado por canais virtuais, seja favorecido pelo diálogo e entretenimento nas moradias. Um foco destacado são os “exercícios que distraiam a mente e tirem o foco de todas as questões negativas da vida” (CAVALCANTE, 2019), além de falar sobre o tema, já que nem todas as pessoas entendem o que estão sofrendo.

Com a intensificação do sofrimento sozinho, sem se sentir acolhido por perto de alguém, até mesmo no contexto contemporâneo em que as pessoas estão passando mais tempo em casa e, podem com isso, ter conflitos e desentendimentos, casos envolvendo tentativas de suicídio surgiram no país. O primeiro remonta à Uberlândia, no dia 16/08/2020, quando uma mulher de 26 anos ameaçava a se lançar pela janela do apartamento, no terceiro andar. Para conter essa tentativa, o bombeiro deu salto pela janela de apartamento e conseguiu empurrar a mulher, como pontua Pires (2020). Outra notícia veiculou-se no Jornal On-line da cidade de Campos dos Goytacazes/RJ, quando policiais militares salvaram a vida de um homem de 40 anos, que teve a intenção de pular da ponte Leonel Brizola (Jornal On-line Campos 24 horas, 2020).

Não é à toa que uma pesquisa desenvolvida e publicada pelo Pine Rest Christian Mental Health Services, um hospital psiquiátrico e de saúde comportamental, situado em Michigan (EUA), demonstrou que o número de suicídios ampliou em 32% no decorrer do contexto pandêmico. No caso brasileiro, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), por meio de um estudo com 1.460 indivíduos em 23 estados do país, registrou um crescimento de 90,5% em casos de depressão, somando um aumento em casos de ansiedade, de 8,7% para 14,9%, e estresse, de 6,9% para 9,7% (Exitoína/UOL, 2020).

Além de pensar que a instabilidade econômica é um dos motivos centrais para as mortes, salienta a psicóloga Ana Gabriela Andriani que a: “insegurança e o sentimento de vulnerabilidade vividos por conta da pandemia somados à instabilidade econômica aumentou o número de casos de depressão no mundo […]” (Exitoína/UOL, 2020).

Complementa a análise, a opinião do psiquiatra e diretor médico do Hospital Universitário Onofre Lopes (HUOL), Emerson Arcoverde, que afirma que a pandemia pode ter contribuído para a expansão dos índices de suicídio e pode ter sido seguida, essencialmente, pela falta de acesso dos indivíduos ao suporte adequado. Deste modo, para o médico“(…) não só pelo estresse que isso está causando na população, pelo adoecimento não só físico como emocional, mas também pela diminuição do acesso à saúde” (LOBO, 2020).

Arcoverde apontou que em mais de 90% dos casos, o suicídio está associado a algum transtorno mental, e que com o fechamento de ambulatórios e clínicas especializadas como medida de prevenção durante a pandemia, muitas pessoas ficaram ‘descobertas’ de tratamento. Ele ainda comentou que a rede pública não está preparada para um potencial aumento de casos de transtornos mentais, desencadeados pelo estresse na pandemia (LOBO, 2020).

Neste sentido, para Giovanaz (2020), os países subdesenvolvidos possuem sistemas de saúde e assistência social frágeis, além de terem desconstruído e reduzido investimentos nos últimos anos, como é a situação brasileira. Nessa direção, a Emenda Constitucional 95, do “Teto de Gastos”, ratificada pelo ex-presidente Temer, fez com que o Sistema Único de Saúde (SUS) perdesse o saldo de R$ 13,5% bilhões no ano passado.

Nestas lentes, o sofrimento situado além do corpo, na dimensão psíquica dos brasileiros, demonstra a necessidade de cuidados no período de pandemia. Isso porque o isolamento social, de extrema urgência, é também um fator que inibe a aglomeração e encontros entre as pessoas. Consequentemente, a diversão, conversas, discussões e festividades foram duramente afetadas. Entretanto, a casa, como significado de “morada” e experiências empíricas, deve ser um canal de acolhimento e abertura ao ouvir os seus residentes. E estes podem realizar as possíveis intervenções no campo da saúde mental através da busca de profissionais especializados.

Para a professora de Psicologia Clínica da PUC-SP Maria Helena Pereira Franco, as pessoas devem buscar a rede de apoio, como a família, amigos, vizinhos, igreja (SAKAMOTO, 2020).

Válido dizer que um sinal de risco como a depressão, crises de pânico, ansiedade excessiva e transtornos mentais, pode se associar à outros distúrbios, como os alimentares. O ganho de peso por excesso de alimentos inadequados é um exemplo disso, no momento em que a pessoa não possui controle dos alimentos ingeridos e, até mesmo, quando não percebe o nível de ansiedade e o que isso está lhe causando. Algumas queixas de brasileiros têm ocorrido neste período de pandemia, já que as incertezas pairam no ar em relação à vacina contra o COVID-19, e o descontrole de uma alimentação saudável se alinha à falta de exercícios físicos. No tocante aos exercícios, estes podem ser realizados na própria moradia, na ressignificação de práticas cotidianas, somando-se ao uso de alimentos e comidas saudáveis, como frutas, verduras e legumes.

Nem mesmo os próprios profissionais de áreas como a enfermagem, psicologia, psiquiatria e nutrição que lidam precisamente com saúde, ficam isentos de todos os fatores mencionados. A indagação: “quem cuida deles?”, precisa ser levada em consideração ao pensar sobre o sofrimento e a sobrecarga de trabalho a que estão submetidos, ainda mais na conjuntura de (des)proteção e desmonte das políticas e serviços sociais, pelo avanço do neoconservadorismo e Estado penal (WACQUANT, 2012).

Tais profissionais devem ser cuidados por outros e valorizados pelo governo, na perspectiva de que a saúde vai além do corpo e mente, requerendo outros cuidados em relação aos equipamentos de trabalho, recursos, equipe, efetividade das políticas, pagamentos salariais dignos, benefícios, entre outros. Soma-se a isso, outros profissionais e trabalhadores deste país, os quais, diariamente, precisam sair de casa para garantir sustento de seus membros, pagamento de impostos (regressivos) e compras para casa.

O governo, ao enxergar essas questões vinculadas à sobrevivência da classe trabalhadora, realiza discursos que legitimam a necessidade do trabalho – especialmente o precarizado –, com taxas de contaminação ainda mais elevadas. Claramente se percebe o despreparo público em áreas tão importantes para o desenvolvimento social do país, como é o caso da produção e reprodução social, geração de renda com cidadania, gestão e planejamento urbano, além de questões mais específicas como as políticas urbanas.

Pelos dados em discussão, observa-se como o tema do suicídio e saúde mental dos brasileiros, aqui relembrando a campanha do setembro amarelo, precisa ser levado a cabo pelo Estado e sociedade. Sem conscientização e debate, muitas vidas serão desperdiçadas e não acolhidas. As instituições e profissionais devem relacionar um trabalho educativo e social com a população atendida, explicitando o tratamento e consequências das doenças e transtornos. O Estado, não obstante, deve realizar o seu dever de ente protetivo, diagnosticando subnotificações e efetivando os direitos sociais de cidadania. A sociedade, por último, precisa se solidarizar com causas do próximo que também a acomete, como é a situação da saúde. É através da união, luta política e coletividade da classe trabalhadora que as mudanças sociais poderão ser tecidas para a socialização da riqueza e cuidados de todos.

Cabe enfatizar que a tristeza não é sinal de depressão ou outra doença correlacionada, pois é comum que as pessoas se sintam tristes em momentos de suas vidas, ainda mais neste contexto pandêmico. No entanto, quando essa tristeza passa a ser cotidiana e profunda, é necessário tomar medidas e buscar apoio. Assim, os “alertas amarelos”, como a depressão, isolamento, ansiedade, estresse, insônias, crises de pânicos, se não forem problematizados e debatidos com a sociedade, sem atos de discriminação, os índices de suicídio podem aumentar.

O país possui um serviço gratuito de apoio emocional e prevenção ao suicídio, que é o Centro de Valorização da Vida (CVV), auxiliando sujeitos com pensamentos suicidas a partir do número 188, além de atendimentos através de e-mail, chat e presenciais, em clínicas distribuídas por todo país (Exitoína/UOL, 2020).

Por fim, o setembro amarelo, além de representar uma campanha que visa alertar sobre casos de suicídio e prevenção, é uma forma de socorrer a muitos que estão passando pelo silêncio e não sabem o que fazer diante disso. A tendência que se busca, portanto, é que o silêncio seja transformado em alegria e desabafo, ancorado em tratamentos e apoio psicológico, psiquiátrico e também familiar.

 

¹Bacharel em Serviço Social pela UFF de Campos dos Goytacazes/RJ. Mestranda em Serviço Social (PPGSS/Universidade Federal do Rio de Janeiro). Pesquisadora do NUFSTEV/UFF (Núcleo em Famílias, Sujeitos Sociais e Territórios Vulneráveis). E-mail: pollyannacecf@gmail.com.

 

Notas
1. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/o-grito/. Acesso em: 10 set. 2020.

2. Concepção interessante foi pensada pela arte-educadora e artista visual Laura Aidar, de que a obra de Munch capta os sentimentos de angústia e solidão que se encontram na humanidade. Outros detalhes sobre a obra ela menciona em (https://www.todamateria.com.br/o-grito/. Acesso em: 10 set. 2020).

 

Referências

CAVALCANTE, L. Setembro amarelo: a importância de levar a campanha para as empresas. Telemedicina Conexa, 2019. Bem estar. Disponível em: https://blog.conexasaude.com.br/setembro-amarelo/. Acesso em: 10 set. 2020.

Cresce em 32% o número de suicídios durante a quarentena. UOL, Exitoína, 24 jul. 2020. Triste. Disponível em: https://exitoina.uol.com.br/noticias/news/cresce-em-32-o-numero-de-suicidios-durante-quarentena.phtml. Acesso em: 10 set. 2020.

GIOVANAZ, D. Ansiedade, abuso de álcool, suicídios: pandemia agrava crise global de saúde mental. Brasil de Fato, Nova Delhi (Índia), 14 jun. 2020. Saúde. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/06/14/ansiedade-abuso-de-alcool-suicidios-pandemia-agrava-crise-global-de-saude-mental. Acesso em: 10 set. 2020.

LOBO, T. Com pandemia, casos de suicídios aumentam no RN. Tribuna do Norte, 2020. Disponível em: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/com-pandemia-casos-de-suica-dios-aumentam-no-rn/488892. Acesso em: 10 set. 2020.

PIRES, V. Bombeiro salva jovem que ameaçava se jogar do 3º andar em Uberlândia; assista a vídeo do resgate. Globo, G1 Triângulo e Alto Paranaíba, 17 ago. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/triangulo-mineiro/noticia/2020/08/17/video-mostra-resgate-impressionante-dos-bombeiros-para-salvar-vida-em-uberlandia.ghtml. Acesso em: 10 set. 2020.

PMs evitam suicídio de homem em Campos no início do Setembro Amarelo. Jornal On-line Campos 24 horas, 1 set. 2020. Disponível em: https://campos24horas.com.br/noticia/pms-evitam-suicidio-homem-em-campos-no-inicio-do-setembro-amarelo. Acesso em: 10 set. 2020.

SAKAMOTO, L. Atendimento do Samu relacionado a suicídio cresce durante a pandemia. UOL, 31 maio 2020. Coluna Leonardo Sakamoto. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2020/05/31/atendimento-de-urgencia-relacionado-a-suicidio-cresce-durante-a-pandemia.htm. Acesso em: 10 set. 2020.

WACQUANT, L. Forjando o estado neoliberal: trabalho social, regime prisional e insegurança social. In: BATISTA, V. M. (org.). Loic Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 2012. p. 11-42.