Sobre a crise do planejamento urbano ou o que esperar de um planejamento insurgente

Boletim nº 63, 30 de junho de 2022

 

Por Gustavo Rodrigo Faccin Araujo de Souza

(Arquiteto e urbanista e Mestrando no IPPUR/UFRJ)

Buscarei neste texto estabelecer um diálogo crítico com a proposta teórica de um “urbanismo humano” ou “planejamento insurgente” elaborada pela pesquisadora Miraftab Faranak em texto publicado em 2016 na Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. Esta teoria do planejamento, se pudermos assim chamar, não foi inaugurada pelo texto em questão, tendo sido desenvolvida pelo menos desde o final dos anos 80 por autores como John Fridman, Leonie Sandercock e a própria Faranak. Entretanto, pela pouca intimidade que tenho com a toda a literatura, me resignarei a comentar este texto apenas, reduzindo os riscos de extrapolar meus comentários sobre aspectos ou abordagens que desconheço. 

A nível de contextualização, minha percepção geral é que, apesar de ter sido inicialmente desenvolvida  por autores americanos e europeus , a teoria do planejamento insurgente (ou conflitual, como propõem  alguns autores brasileiros) foi efetivamente incorporada pelos estudos brasileiros sobre planejamento urbano a partir da segunda metade da década de 2000, momento em que o entusiasmo com o governo progressista de Luís Inácio Lula da Silva diminuiu e as conquistas institucionais no campo se mostraram frustrantes e pouco efetivas. Além disso, megaeventos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 mostraram a face mais crítica do chamado planejamento estratégico que lançou mão de instrumentos institucionais para provocar remoções e realocações à revelia dos interesses das populações mais pobres. Neste ensejo, pesquisadores comprometidos com a valorização da resistência a  processos de espoliação viram na discussão sobre as insurgências urbanas uma forma de potencializar e lançar luz sobre  as diversas formas de resistência e construção coletiva de propostas alternativas, algo que talvez tenha parecido mais consequente do que a pesquisa sobre a participação em  planos diretores  ou a avaliação sobre a eficácia dos instrumentos urbanísticos. Assim, essa incorporação da teoria se refletiu inclusive na temática do encontro da Associação Nacional de Planejamento Urbano e Regional de 2015, que teve como tema “Desenvolvimento, Planejamento e Insurgências”.

Dito isso, posso retornar ao texto de Miraftab para comentar exclusivamente os argumentos trazidos pela autora. As constatações iniciais são enfáticas: vivemos uma era de desterro global e de crise de legitimidade e identidade do planejamento, precisamos de uma virada ontológica que possibilite 1) reconhecer o leque de práticas sancionadas para além do Estado e poderes corporativos e 2) descolonizar a imaginação e as possibilidades para o futuro. Aí, então, a autora organiza o resto do texto em três atos, sendo o primeiro sobre a esquizofrenia do planejamento, o segundo sobre as práticas insurgentes e o terceiro sobre a imaginação e a urgência em descolonizar o futuro. 

Meu método aqui será o de comentar cada um dos três atos em relação a minha experiência como pesquisador e planejador urbano. Farei uma análise a partir das minhas percepções sobre como a teoria do planejamento insurgente serve ou não para pensar a prática de planejamento, a partir das minhas percepções sobre a prática profissional. 

O primeiro ato, ou argumento, acerca da esquizofrenia do planejamento, toca num ponto onde tenho pleníssimo acordo. A questão é, entretanto, mais complexa do que parece, já que a autora se propõe basicamente trazer alguns casos para mostrar como o suposto interesse público do planejamento tradicional é mobilizado para atender aos interesses privados. De todo modo, isso é absolutamente verdade. O planejamento de Estado que conhecemos, seja tratando do espaço ou de outras esferas da vida social, surge de uma necessidade de mediar e organizar os interesses dos diferentes tipos de capitalistas para mitigar problemas do próprio processo de acumulação, sejam problemas de política econômica ou problemas de “disfuncionalidades espaciais”: a casa perto da indústria, a moradia insalubre que deixa o trabalhador doente e dificulta a reprodução da força de trabalho, a fragmentação e dispersão dos espaços de consumo ou de valorização imobiliária, entre outros casos. Os momentos de crise aguda do capital impuseram a necessidade de um Estado forte capaz de implementar reformas através do planejamento. Nesses casos, foi possível um Estado relativamente destacado dos interesses imediatos do capitalista e disposto a agir orientado por valores supostamente universais, científicos, o famigerado “interesse público”. É desse contexto que surge o planejamento tecnocrático, do servidor público isolado na administração, autônomo e racionalizador, descolado das percepções da população mais pobre e das resistências à modernização. Ademais, a política real, entretanto, sempre achou um jeito de utilizar da tecnocracia apenas quando ela atendia aos interesses em jogo, e isolar ou atenuar os possíveis impactos de um planejamento anticapitalista ou de um reformismo em prol dos mais pobres.  

Esse cenário se intensificou com o planejamento estratégico e o capitalismo neoliberal após a década de 1980. O servidor público tecnocrata foi “exonerado” e o capital passou a negociar o planejamento urbano diretamente com o prefeito ou o secretário municipal. Isso, obviamente, já era feito, mas o constrangimento parece ter se tornado menor, e a interferência via parceria público-privada provavelmente se tornou um incentivo a essa prática. No Brasil, apesar de os arranjos institucionais pós-1988 terem produzido alguma resistência, predominou a cultura da intervenção direta do capital sobre o planejamento urbano. Com a saída dos governos petistas do poder, esse quadro se agravou até o descrédito completo da estrutura de planejamento. 

A tal “esquizofrenia” fez parte de todo esse percurso histórico. Fica a questão sobre qual seria a saída para o problema, algo tratado pela autora no segundo ato do texto. Para Faranak, trata-se de romper epistemologicamente com o planejamento tradicional e propor um planejamento alternativo pautado nas práticas cidadãs, por fora do Estado, vinculado às comunidades subordinadas e que resistem aos processos de elitização e expulsão. Seria uma forma de preservar e qualificar as paisagens para vida, para utilizar as palavras de Raquel Rolnik, diante das paisagens para a renda produzidas pelo planejamento tradicional. O desenvolvimento da teoria passa ainda por alguns pares conceituais, como espaços de ação convidados (planejamento tradicional) e espaços de ação inventados (planejamento insurgente), democracia representativa e democracia participativa, representação e autodeterminação.

Alguns pontos sobre esse quadro teórico que acho problemáticos. Primeiro, considero que a autora parte de uma compreensão muito alargada sobre o papel do urbanismo ou do planejamento urbano como disciplina. Essa compreensão está na origem do urbanismo, que foi basicamente fundado por reformadores sociais no século XIX, dedicados a reorganizar todos os âmbitos da sociedade. Essa percepção implica que a teoria do planejamento insurgente por vezes ignore os limites da prática profissional e a importância da dimensão técnica, esperando do planejamento urbano algo que ele nunca entrega, e que, por isso mesmo, é sempre mais um sintoma da crise. No planejamento urbano tradicional, embora exista uma dimensão do pensar coletivamente o futuro, boa parte do trabalho está limitado pela forma de um Estado específico: uma constituição, um código civil, leis federais e estaduais sobre parcelamento do solo e meio ambiente, os órgãos de controle, judicialização, enfim, uma série de constrangimentos e determinações sobre o que é possível fazer ou não fazer dentro daquele arranjo jurídico e administrativo. Ora, a tal virada epistemológica e ontológica do planejamento, até por adotar uma perspectiva radical e transnacional, ignora esses constrangimentos técnicos ou coloca-os num plano secundário. Seria o caso do planejamento insurgente não ter esperanças na estrutura do Estado? Teria desistido do poder do Estado, para incentivar as fissuras no sistema através de grupos autônomos e autodeterminados? Existe algo de foucaultiano ou pós-estruturalista nesta compreensão. Algo que superestima o papel da resistência simbólica em detrimento da ação concreta sobre o espaço através de obras, leis, planos, etc. 

Outro ponto problemático é o fato de ser uma teoria do planejamento pautada em movimentos sociais que incidem sobre a metrópole. O planejamento urbano deve considerá-los, sem dúvida, mas o universo da disciplina vai muito além das metrópoles ou dos processos de luta característicos das cidades globais. No Brasil ao menos, em muitas cidades pequenas e médias inexistem movimentos sociais organizados e pautas claras que conformem uma resistência aos processos tradicionais de planejamento. Nesses casos, a teoria do planejamento insurgente parece tocar o território sem tanta capacidade explicativa ou operacional. Ainda, parece oferecer à prática de planejamento um certo olhar de desincentivo. 

O último ato do texto trata da urgência de descolonizar o futuro. Aqui a ideia central é que, nas últimas décadas, o neoliberalismo teria encerrado a produção de horizontes alternativos, em outras palavras, teria reduzido a capacidade criadora e utópica das forças sociais de contestação do capitalismo, sintoma diretamente relacionado ao fim da guerra fria. O planejamento insurgente teria o potencial de renovar esses horizontes, especialmente na medida em que potencializa os espaços de insurgência, heterotópicos, para utilizar uma expressão de Henri Lefebvre.

Novamente, apesar de concordar com o conceito proposto, entendo que ele incorpora um caráter demasiadamente idealista e subjetivo. Obviamente, a história não acabou e a própria ideia de seu fim é nitidamente conservadora. Mas não basta fortalecer insurgências. É preciso querer tomar o poder político para fazer planejamento. É preciso, ainda, que a teoria do planejamento incorpore uma análise material das forças em jogo, e não mera esperança na criação de futuros alternativos. 

Em síntese, o que gostaria de trazer para o debate é que a teoria do planejamento insurgente, ao menos no que pude apreender a partir do texto apontado, não deixa muito claro o que se espera dela e que relações ela pretende construir com o planejamento tradicional. Ou ainda, diante da esquizofrenia apontada, antevê uma virada ontológica que me parece tratar de forma muito abstrata o universo da profissão de planejador. A superação de velhos paradigmas e a criação de novos são processos positivos para o campo, ainda mais diante da sua crise, mas precisam ser amplamente criticados para que não se incorra no erro de apostar em propostas meramente discursivas ou evasivas. Independente dos erros históricos, o planejamento institucionalizado no Brasil segue aprimorando técnicas, instrumentos e métodos de trabalho. Cabe ao campo teórico olhar para o que está realmente acontecendo e estabelecer pontes mais claras, capazes de um diálogo construtivo com a prática profissional.