“Territórios do Planejamento” e a invenção cultural das sociedades: grandes questões para pensar passado, presente e futuro do país

Boletim nº 23 – 04 de junho de 2020

 

Por Beatriz Tamaso Mioto¹

 

Na crise, quando alguns liberais debatem o teor da atuação direta do Estado sobre os mercados, é obrigação do campo progressista resgatar a potência do planejamento. É isso que o documentário Territórios do Planejamento (2020) faz, dando relevância não apenas à capacidade de mulheres e homens agirem e pensarem sobre seu destino, mas mostrando como isso tem de, necessariamente, dialogar com a dimensão mais concreta e sintética das invenções humanas: a produção do espaço. Parece óbvio, mas não é, uma vez que as determinações políticas e econômicas muitas vezes insistem em ignorar o papel que o território tem sobre as (im)possibilidades de, como diria Celso Furtado, “invenção cultural” das sociedades, ou, mais diretamente, de desenvolvimento.

Dou um exemplo do campo da economia, que me é familiar: a defesa por diversos economistas da expansão do investimento autônomo do Estado via incentivos à construção civil, hoje, pouco considera as necessárias relações que deve travar com o planejamento regional e urbano. Infraestrutura e habitação, por exemplo, são temas urgentes na agenda de desenvolvimento, mas, quando tratados de maneira a-espacial (ou por uma visão abstrata de espaço) tendem, de um lado, a ampliar o investimento e o emprego (e seus efeitos multiplicadores) mas, de outro, a reproduzir/acentuar desigualdades territoriais (que articulam as dimensões social, econômica e ambiental) e/ou reduzir a eficiência e efetividade do investimento público que, por princípio, deveria ampliar seus objetivos para além do estímulo e sustentação da acumulação. Isso implica uma reflexão essencial que não é apenas econômica, mas moral e ética, configurada na relação entre o fundo público, acumulação e democracia.

Especialmente em um momento de crise aguda como a que vivemos, não deveríamos repetir o erro de instar o Estado a socializar as perdas (correntes e futuras) advindas da crise sem cobrar que isso incremente os esforços para a redução das desigualdades em sentido multidimensional e, portanto, com conteúdo territorial importante. Nesse projeto, cabe responder com precisão: vamos financiar infraestrutura rodoviária para escoamento da produção voltada à exportação ou vamos financiar infraestrutura de transporte capaz de ampliar a capacidade de regiões de produção agrícola familiar acessarem o mercado interno? Vamos, mais uma vez, priorizar a construção de novas unidades habitacionais que pressionam os preços dos imóveis e da terra para cima e reproduzem, muitas vezes, o déficit habitacional e a periferização da população ou vamos combinar a produção de novas unidades (necessárias), habitação pública para aluguel popular com projetos amplos de urbanização de favelas? Vamos adotar, para investimentos públicos na ampliação do acesso ao saneamento, as métricas do mercado de capitais para taxa interna de retorno dos investimentos e para precificação das tarifas (concentrando os investimentos em áreas de interesse do mercado) ou vamos, também através dos investimentos públicos, buscar a universalização do direito à água e esgoto tão importantes para o enfrentamento de diversas doenças, em especial da Covid-19?

A oposição contida nesses questionamentos, embora simplifique bastante os problemas, mostra que precisamos ir muito além da defesa abstrata do gasto público e da expansão fiscal para dar conta dos problemas seculares que as crises têm agudizado, especialmente a que enfrentamos em razão da pandemia. Nesse sentido, além da temática do planejamento como instrumento de ação concreta e como possibilidade de alargar o horizonte utópico de uma sociedade, o documentário lança outra ideia fundamental: se o território deve ser entendido como uma síntese da produção da vida, essa síntese só pode ser (re)construída a partir de múltiplas áreas e perspectivas. Como forma de render homenagem ao Professor Wilson Cano, reproduzo um trecho do documentário no qual ele faz referência ao exercício do planejamento “O que é preciso um sujeito entender para mexer com essas coisas? Ele não pode ser apenas um geógrafo, um antropólogo, um agrônomo ou um economista. Ele tem que ter um entendimento de como essas complexidades se juntam na cabeça.”. Isso quer dizer que o enfrentamento dos problemas concretos através do planejamento vai ser tão melhor sucedido quanto maior for a interação do conhecimento produzido sob diferentes batutas. Voltando às nossas questões, posso dizer que nosso economista defensor da política anticíclica da construção civil, sem a ajuda de um urbanista ou um geógrafo, por exemplo, seria incapaz de entender a necessidade de disputar a narrativa do investimento público para além dos efeitos multiplicadores na economia. Da mesma forma, estabelecer os cenários do drama social e econômico que vivemos hoje não faz sentido se não houver diálogo estreito entre o campo das humanidades e das ciências biológicas, médicas, matemáticas etc.

Por fim, o documentário ensina mais uma lição. A de que é urgente a formulação de um projeto nacional que contemple a diversidade de possibilidades de desenvolvimento dos territórios do país. No entanto, ao passo que não devemos desconsiderar a especificidade na formulação das propostas de planejamento, é impossível ir adiante sem entender que elas não devem ser tratadas de maneira tão particular e/ou competitiva que incentivem, no limite, a fragmentação dos problemas nacionais. Curiosa e dramaticamente, o cenário atual mostra, do ponto de vista institucional, a dificuldade de equacionar essa relação; pois os conflitos federativos – que se tornaram mais vívidos na pandemia – têm, ao mesmo tempo, ampliado iniciativas inovadoras de formulação de projetos em novas escalas (como o Consórcio do Nordeste; a articulação entre os governadores ou a frente de prefeitos) e escancarado a necessidade de fazê-lo a partir de um debate nacional, minimamente convergente, e que contenha instrumentos (políticos, econômicos, de recursos humanos, etc.) que só a escala nacional detém.

Com essas reflexões, portanto, gostaria de convidar a todos e todas para assistir o documentário. Agradeço também às produtoras e realizadoras desse belo trabalho, Luciana Travassos, Silvana Zioni, Bruna Fernandes e Amanda Clemente pela oportunidade de não deixar escapar minhas esperanças em tempos tão difíceis. Como mentes questionadoras e ousadas que são, essas mulheres ainda fazem parte, como professoras e alunas, de um dos projetos mais inovadores que conheço e que tenho o privilégio de integrar, o Bacharelado em Planejamento Territorial da Universidade Federal do ABC. Descaradamente puxando a sardinha para o nosso lado: não me surpreende que da construção desse curso, único no país, tenha saído um trabalho tão comprometido com as ideias e técnicas capazes de fazer frente aos desafios que precisamos enfrentar.

¹Doutora em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp, Professora Adjunta do Bacharelado em Planejamento Territorial da UFABC e Professora da Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território da mesma instituição. (bea.mioto@gmail.com).