Mulheres na Produção do Conhecimento

Boletim nº 11 – 04 de março de 2020

 

Quantas referências bibliográficas eram mulheres nos cursos em que realizou? Quantas mulheres foram indicadas a prêmios nacionais e internacionais? Essas e outras perguntas nos direcionam a uma reflexão sobre o reconhecimento e a participação das mulheres na ciência, que contribuem substancialmente ao universo científico e continuam sendo invisibilizadas.

Segundo os dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), no Brasil as mulheres correspondem a 60% do ensino superior. No que se refere à concessão de bolsas, elas são maioria: 55% na  Iniciação Científica , 52% no mestrado, 50% no doutorado e 53% no pós-doutorado, segundo dados do CNPq, Inep e Parent in Science. No entanto, as bolsas de Produtividade em Pesquisa (PQ) para mulheres correspondem a apenas 36% do total e na categoria mais alta estabelecidas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), temos uma proporção de 1 a cada 4 pesquisadores sênior A1, de acordo com a organização Gênero e Número. Outra preocupação está relacionado ao campo da ciência, tecnologia, engenharia e matemática que possui apenas 35% dos estudantes do mundo mulheres, como mostra o estudo ‘Decifrar o código: educação de meninas e mulheres em ciências, tecnologia, engenharia e matemática (STEM)’, publicado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência ea Cultura (Unesco).

Ainda mais alarmante são os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2018, que mostram a assimetria em relação às mulheres negras. Apenas 10,4% das mulheres negras com idade entre 25 a 44 anos concluíram o ensino superior e segundo o Inep, o percentual de mulheres negras (pretas e pardas) doutoras e professoras de programa de pós graduação é inferior a 3%.  No CNPq, em 2015, apenas 7% das bolsas de produtividade eram destinadas às mulheres negras. Neste sentido, os estereótipos de gênero associados a certas carreiras e a falta de referências do que é ser cientista e de intelectuais mulheres, mantêm mulheres distantes de determinados cursos universitários e carreiras, principalmente as mulheres negras. As dificuldades econômicas, o racismo, o preconceito, o assédio moral e sexual, as tarefas socialmente associadas às mulheres como trabalho doméstico, cuidado com familiares e maternidade impactam significativamente a carreira da cientista mulher.

Torna imperativo visibilizar a produção científica dos múltiplos modelos de mulher (branca, negra, indígena, etc.) para quebrar estereótipos através do reconhecimento, experimentação, apoio, inspiração e representação.  Reconhecendo a importância da diversidade para a ciência, pois proporciona análises de outras perspectivas, expandindo as fronteiras do conhecimento e possibilitando novas descobertas e soluções.

Com o intuito de pautar essas questões, o Boletim IPPUR convidou, no mês do Dia Internacional das Mulheres, profissionais de distintas áreas, professoras, pesquisadoras e gestoras para refletir sobre a Mulher nos espaços de produção do Conhecimento e da Ciência. Elas trazem suas perspectivas sobre relações de gênero, desafios para as mulheres na produção do conhecimento, políticas públicas e outros temas. Nessa edição, contamos com Bianca Dieile da Silva, Pesquisadora em Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz e Poliana  Monteiro, Arquiteta Popular e Pesquisadora Feminista, na Universidade Federal Fluminense, que compartilharam suas perspectivas sobre a questão de gênero, desafios para as mulheres na produção do conhecimento, carreira, políticas públicas e outros temas.

A partir de uma reflexão sobre a divisão sexual do trabalho na produção do conhecimento, Poliana Monteiro destaca que um dos principais desafios das mulheres nessa disputa consiste em feminizar e racializar as pesquisas e práticas dentro das universidades, “o que significa também ocupar espaços não somente para pesquisar com mulheres ou pesquisar sobre mulheres, mas principalmente pesquisar como mulheres epistemicamente situadas e engajadas em uma perspectiva de conhecimento libertária, dialógica e popular, tenciona e desestabiliza as formas hegemônicas de produção do conhecimento”. Para Poliana, compreender de forma mais profunda os desafios de ocupar esses espaços requer pensar o que significa a promoção das mulheres no mercado de trabalho de forma geral, e nas universidades especificamente. “E ainda como a divisão sexual do trabalho, um mecanismo de opressão e exploração patriarcal, pode operar na produção do conhecimento”.

Vindo do campo das exatas, mais precisamente da Engenharia Civil, Bianca ressalta a resistência em se reconhecer a produção do conhecimento das mulheres, a possibilidade de discriminação de gênero ainda em processos seletivos e a desigualdade salarial, que pode chegar a 15% nas carreiras “mais procuradas por homens”. “Presenciei muitas falas machistas e vi a consequência na saúde mental e na redução do desempenho acadêmico de diversas mulheres, temos muito o que fazer ainda”, reflete Bianca.

A Universidade reproduz a divisão sexual do trabalho de uma sociedade machista e patriarcal, o que irá implicar na produção do conhecimento. Para Bianca, apesar de as mulheres sempre terem produzido conhecimento, o reconhecimento na autoria deste conhecimento produzido e a inserção das mulheres nas instituições acadêmicas é que é tardio e, às vezes, ainda incipiente, a exemplo do  Brasil, como podemos ver ainda na maioria dos programas de pós-graduação, onde o número de mulheres cresce cada vez mais, porém os cargos de coordenação ainda estão majoritariamente ocupados por homens. “Acredito que o desafio esteja em rever os processos de produção e reprodução das pirâmides de poder que estruturam os grupos de pesquisa, marcados pelo patriarcado e pelo machismo, onde um homem ocupa o topo e as mulheres, que alimentam este grupo, se mantém embaixo”, alega Bianca.

Poliana reconhece a recente conquista de mães pesquisadoras junto ao CNPQ, que acatou o pedido de inclusão da licença a maternidade no currículo acadêmico, visto que “a queda na produção não é um fator de capacidade, mas de um afastamento natural por um período. Sem entrar no mérito de quão problemática é essa perspectiva produtivista, é fato que, para as mulheres, ocupar certos espaços pode significar transitar entre a interdição, a invisibilização ou até mesmo o assédio”.  Por sua vez, Bianca defende a necessidade de políticas que identifiquem e alterem as discrepâncias nos diversos campos de ação dos acadêmicos, como acesso aos recursos, pois são poucos os editais que endereçam esta questão. No entanto, ressalta avanços, como o edital do CNPq para incentivar meninas na carreira de exatas  e a criação do Dia Internacional das Meninas e Mulheres na Ciência.

Mencionando pesquisadoras decoloniais e/ou feministas, Poliana Monteiro  enfatiza o silenciamento das mulheres tanto como sujeitas epistêmicas quanto como pesquisadoras, aspecto que se torna ainda mais violento quando se trata de mulheres negras. Poliana avalia como exemplo de misoginia, racismo e eurocentrismo na produção do conhecimento as traduções.

 “Michel Foucault foi traduzido e publicado no Brasil, em geral, pouquíssimo tempo depois da publicação de seu original na França. Mal comparando, 2016 foi a primeira vez em que vimos uma obra de Angela Davis ser traduzida para o português e publicada no Brasil: a obra original havia sido publicada em 1981. Trinta e cinco anos de diferença! A geógrafa feminista britânica Doreen Massey tem apenas um livro traduzido para o português. Quantos outros casos? Isso não é irrelevante. Quem está fazendo as escolhas editoriais? Quem escolhe qual conhecimento acessamos? Quem lemos? Quando lemos? Compreender se e como isso ocorre com outras autoras, principalmente não-brancas e provenientes do sul global, é uma tarefa de pesquisa urgente. Entender como a divisão sexual do trabalho opera nesse processo é igualmente importante”, afirma Poliana.

O assédio moral e sexual também é uma questão no campo acadêmico. Como coloca Bianca Dieile, as mulheres sempre terão um relato sobre isso. Ter a coragem de denunciar, relatar histórias de assédio, por sua vez, pode ter contribuído para pressionar a criação de ferramentas e políticas por parte de órgãos que inibam e punem o assediador. A Fiocruz, por exemplo, elaborou uma cartilha que descreve o que é assédio. Apesar das resistência, é apenas pela luta que se conquistam as mudanças. “No entanto, mudanças nas relações de gênero ainda sofrem resistência: “como no triste episódio que um colega buscando criticar as ideias, chamou outra pesquisadora de agressiva e feia”, atesta Bianca.

Com relação às políticas afirmativas, Bianca Dieile enfatiza a importância de se reconhecer a dificuldade de acesso às Universidades e aos programas de pós-graduação por parte das populações pobres, negras e indígenas, historicamente excluídas. “acho que temos que fortalecer este reconhecimento e a inserção de cotas em todos os níveis incluindo a pós-graduação, temos que agir ativamente no processo da inclusão destas pessoas e não esperar a meritocracia manter tudo como está. “No meu departamento (DSSA/ENSP) temos dois pesquisadores negros em um universo de mais de vinte pesquisadores, além de termos um recorte de classe muito forte, como se os mais ricos tivessem um “gene” acadêmico”, em uma área em que grande parte dos atuais pesquisadores vieram de famílias que tiveram acesso a oportunidades que a grande maioria das pessoas não tiveram. “Por isso também os programas de bolsa são tão importantes na democratização do acesso”.

Nessa perspectiva, Poliana Monteiro defende que a compreensão de sexo, raça e classe não podem ser analisados separadamente. Tal perspectiva permite compreender que a desejável ampliação do campo de estudos feministas que observamos nos últimos anos se relaciona, por um lado, com a implementação das cotas nos programas de pós-graduação em todo o Brasil, e por outro, com o fortalecimento das lutas anti-racistas e feministas amplificadas pelo mundo principalmente a partir de 2014. Ou seja, se há algum avanço ele decorre da luta popular.

A carreira das mulheres fora da academia também se apresenta como uma questão. Poliana Monteiro avalia que o feminismo liberal tem defendido a inserção das mulheres no mercado de trabalho e a geração de renda autônoma como forma de alcançar a igualdade entre mulheres e homens, a exemplo do slogan da ONU Mulheres, que defende abertamente que “igualdade de gênero significa negócios” quando apresenta os princípios de empoderamento das mulheres: mulheres microempreendedoras individuais, hiper-responsabilizadas pela produção e pela reprodução social, ou como mercado consumidor em potencial.  A conjuntura de avanço neoliberal, por sua vez, retira direitos e aprofunda a violência. Para Poliana, a igualdade de gênero, pautada no “empoderamento” individual, portanto, se consolidou no imaginário e no discurso como um objetivo a ser alcançado e tem reverberado de forma cada vez mais recorrente inclusive nos espaços de produção do conhecimento.

“A figura das CEOs, mulheres imensamente privilegiadas que se inseriram no mundo corporativo em posição de destaque, hoje monopoliza o imaginário social sobre o que é ser uma mulher que alcançou a igualdade social. Uma pesquisa da Universidade Cambridge, entretanto, demonstra que a presença feminina na diretoria das corporações é de pouco mais de 10%, em média”. Por outro lado, ressalta Poliana Monteiro “as badaladas CEOs utilizam invariavelmente a mão de obra de outras mulheres, em geral, periféricas e não brancas, para manter o cuidado com os dependentes e a reprodução social, na produção do viver, nos dizeres de Kergoat e Hirata. Enquanto isso, metade das mulheres da classe trabalhadora que engravidam e voltam para seus empregos são demitidas em até 12 meses, de acordo com uma pesquisa da Fundação Getulio Vargas (FGV)”. Citando Dworkin, atesta que “não há justiça e liberdade, a igualdade só existe na figura do oprimido que se torna igual ao opressor”.

A partir da vivência em outros campos profissionais que não o acadêmico, Bianca Dieile vê este campo muito fechado e meritocrático, as habilidades de interação social e solidariedade são pouco valorizadas. Para ela, as mulheres precisam se organizar também no campo acadêmico, “para trabalharmos juntas e não cedermos a competição. Mesmo que a estrutura nos coloque em lugares opostos, seja na disputa por fundos ou por cargos, precisamos ser criativas para encontrarmos modos e práticas de encontro e trabalho conjunto. Para as mulheres que almejam este campo, aconselho que estudem e se organizem, para podermos estudar cada vez mais sobre os problemas que nos atingem, e, para buscarmos a partir de nós, as soluções”, defende Bianca.

Poliana enfatiza, por sua vez, que o avanço na construção de um ambiente paritário de gênero, não somente em termos quantitativos mas também qualitativos, ou seja, “para garantir que nós mulheres estejamos nos espaços de produção do conhecimento, mas que estejamos nos espaços de decisão sobre como vamos produzir, é necessário abrir espaço para o debate sobre violência epistêmica, que ainda é bastante rechaçado no ambiente acadêmico”. Citando o relatório da Elsevier sobre  distribuição das mulheres nas ciências, atesta que essa distribuição ainda é desequilibrada e embora sejam maioria nas universidade, em geral não coordenam estudos científicos, são menos convidadas para pesquisas internacionais e não participam da gestão de financiamentos. “Algo mudou certamente, conquistamos mais espaço. Mas se não compreendermos em profundidade a materialidade das desigualdades que nos violentam os retrocessos são iminentes, principalmente em tempos de clara retirada de direitos e autoritarismo”, atesta Poliana.

Há avanços, mas ainda há espaço para muitas lutas, que só podem ser bem-sucedidas na emancipação das mulheres se forem travadas de maneira coletivas. Essas e outras reflexões nos inspiram e convidam ao engajamento. As contribuições das pesquisadoras Bianca Dieile e Poliana Monteiro podem ser encontradas em anexo.

Aguardem a próxima edição, com novas contribuições sobre as Mulheres na Produção de Conhecimento e Pesquisa.

Entrevistas completas:

Bianca Dieile

Poliana Monteiro

Referências

1. https://oglobo.globo.com/economia/nas-tres-carreiras-mais-procuradas-homens-ganham-ate-23-mais-que-mulheres-23192233

2. http://portal.sbpcnet.org.br/noticias/cnpq-publica-edital-para-incentivar-meninas-na-carreira-de-ciencias-exatas/

3. https://portal.fiocruz.br/documento/cartilha-assedio-moral-e-sexual-no-trabalho-prevencao-e-enfrentamento-na-fiocruz

4. Disponível em (https://infograficos.oglobo.globo.com/economia/representatividade-e-longevidade-das-mulheres-em-cargos-de-chefia.html)

5. https://portal.fgv.br/think-tank/mulheres-perdem-trabalho-apos-terem-filhos

6. https://oglobo.globo.com/sociedade/mulheres-sao-maioria-nas-universidades-mas-nao-coordenam-estudos-cientificos-23440708