Ensaio COVID-19: Reflexões do campo teórico da História

Boletim nº 14 – 03 de abril de 2020

 

Por Diana Lacs Sichel

 

Introdução

O COVID-19 é um novo vírus que está afetando o globo de tal forma que a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou o status de Pandemia a essa doença. Não irei me alongar sobre o que é o COVID-19, sua origem, o que define ser uma pandemia, visto que, sobre isso já existe inúmeros artigos disponibilizados na internet. Meu interesse neste ensaio é de trazer reflexões do campo teórico da História – e com isso da teoria social e política. Pretendo abordar três ideias que parecem ser extremamente distintas por natureza, porém observaremos que elas têm muito em comum. Para isso, o texto será subdividido da seguinte forma: o tempo; a carga horária de trabalho; o pós guerra – a parte mais importante da guerra e a conclusão.

O Tempo

O tempo é um fator – diferencial – que se estuda no campo da História. Ele é uma categoria explicativa, que nos permite compreender o contexto em que um fato histórico aconteceu ou acontece. A cada época, a sociedade vivencia o tempo de uma forma distinta e com isso ela o transforma historicamente. Trata-se de uma experiência social, coletiva. O tempo que conhecemos na contemporaneidade, é o tempo cronometrado, o do relógio. Ele é construído diante da lógica de produção capitalista, sua origem se dá quando o capitalismo industrial está se consolidando. O tempo do relógio só é possível de ser igualmente sentido por todos quando o relógio se torna acessível (nas paróquias, igrejas, os sinos das cidades, etc.). Na virada do século XIX, os relógios portáteis se popularizam por conta da revolução industrial, que incentiva o desenvolvimento tecnológico e a popularização de tal item. Assim, mais pessoas têm acesso ao relógio e conseguem cronometrar sua hora de entrada e saída do trabalho.

Antes do trabalho ser medido no tempo quantitativo, ele era medido a partir do fator qualitativo. O trabalho se dava por tarefas a serem cumpridas. Com a consolidação da sociedade industrial se solidifica o tempo mecânico. Logo, o tempo, como experienciamos na atualidade, é um tempo regido, controlado e criado. Era nesse ponto que eu queria chegar. O tempo – como observamos e experimentamos – é uma construção social. Ele é abstraído, em várias ocasiões, como uma linha do tempo.

A linha do tempo, que é desenhada em forma de seta e que permite o imaginário de estarmos sempre indo para frente1, para o melhor, sempre em desenvolvimento (como uma idade positiva), é fruto de nossa sociedade ocidental capitalista, a partir do século XIX. Ela é – também – uma construção social.

O filósofo Walter Benjamin reúne várias teses sobre a História2, nas quais ele desenvolve a ideia sobre a linha do tempo dominante, descrevendo-a repleta de flamas, incendiada por opressões de classes e que estaríamos caminhando na direção do fogo, da derrocada da sociedade. Isso ocorre em razão da história dominante ser a narrativa dos mais poderosos se utilizando da força em cima das classes subalternas. Por isso, a necessidade de puxar a alavanca do aviso de incêndio, para não colapsarmos como sociedade. Para que se pare esse percurso (para que se puxe a alavanca de incêndio) seria necessária a interrupção do tempo, de um calendário – e foi o que aconteceu na Revolução Francesa, ou como o autor chama “a grande revolução”. Essa interrupção seria possível com a força do ser humano, porém hoje estamos observando um novo fenômeno. O que está conseguindo parar esse tempo de produtividade, quantitativo, é um vírus, COVID- 19.

Esse vírus está sendo capaz de interromper o tempo do relógio, mesmo que por um dia. Trabalhadores não podem mais ir trabalhar, alunos não vão às escolas por conta da quarentena. Alguns fazem trabalho remoto, o que já extrapola a ideia de tempo fabril.

Benjamin, além de escrever sobre a opressão do ser humano, alerta-nos sobre a exploração da natureza, do meio ambiente. Esse debate sobre como a natureza não é um bem infinito já está presente na ágora pública. Porém, só com a proliferação do COVID-19, o mundo já notou algumas mudanças, a saber: houve uma redução significativa da emissão do dióxido de nitrogênio (NO2) na China (observado via satélite) e uma redução de mais ou menos 25% de emissões de CO2, o que significa uma redução de 6% das emissões totais de gases estufas.3 Não é difícil presumir que mais taxas nos impressionem com a desaceleração de inúmeros países, que começou nessa última semana (16/03/2020).

Nesta parte do texto, gostaria de explorar sobre a pausa do tempo cronológico. Não por pura força humana, e sim por conta de um vírus. Isso, apesar de estar sendo visto negativamente, me parece um perfeito momento de trazer a nossa força humana e o fazer parar, de fato. Afinal, a parte mais difícil o vírus fez para nós, que foi dar o primeiro passo. É necessário aproveitar que o meio ambiente está sofrendo impactos positivos e repensar nossa forma de produção e de trabalho; só com a diminuição do consumo e do deslocamento até o labor já há (em menos de seis meses) índices impressionantes. É um momento de se repensar o nosso tempo, sobre como o encaramos. Com essa ideia chego na segunda parte deste ensaio.

A carga horária de trabalho

Como exposto anteriormente, o tempo que experienciamos na atualidade é o tempo quantitativo, o do relógio. O tempo que visa o lucro e que carrega a ideia “tempo é dinheiro”.

A quarentena fez esse tempo dar uma leve estagnada e com isso muitas ideias afloraram. Entre elas, certos trabalhadores vivenciaram o fato de que o seu labor é essencial para a movimentação da economia, alimentando o capitalismo. Sem eles não há produção, diminuindo a margem de lucro e isso, em forma de cadeia, chega no atual colapso financeiro. Sendo assim, o proletariado percebe a magnitude do seu trabalho e, com isso, a força que ele tem em suas mãos.

Outra questão que essa quarentena trouxe foi a reflexão sobre a rotina de trabalho os cinco dias úteis e as oito horas diárias foram abalados. (Parece quase um campo das ideias o que vem a seguir). Essa forma pode ser reconstruída de duas maneiras. A primeira, com um olhar extremamente negativo, em que logo após a crise, o trabalhador terá que trabalhar ainda mais horas para repor o “tempo perdido”. Já a segunda, com um olhar romântico, em que os trabalhadores observarão o tempo que “gastavam” em seus trabalhos e no deslocamento, que poderiam usufruir em casa ou em outros ambientes (fora o trabalho) e pleitear pelo direito de trabalhar menos tempo4. Poderiam ser geradas ideias com força política para a diminuição da carga horária de trabalho5.

Isto posto, a pergunta que se gera neste momento é: será que mesmo com a evidência – empírica – de que a mão invisível do mercado não consegue controlar, efetivamente, tudo, sem o Estado, os capitalistas vão querer repensar esse sistema? Manteremos essa rotina de trabalho insana? Iremos compreender que a vida merece ser degustada fora do labor também? Ou continuaremos à deriva desse caos que intitulamos de capitalismo?

O pós guerra – a parte mais importante da guerra

Após qualquer guerra, ou mesmo após momentos que geram instabilidade (como a queda das torres gêmeas), observamos que se elabora um protocolo internacional, com novas medidas a serem tomadas pelos países.

Países que não estão sob ataque direto só entram em uma guerra por quererem ter participação nas negociações que irão ocorrer ao final. O Brasil – assim como quase todo o resto do globo – está sendo atacado pelo vírus e provavelmente não irá participar de nenhuma negociação/criação de protocolo ao final da pandemia. Creio que há dois motivos principais para sustentar essa hipótese.

O primeiro é por conta de um deputado federal que está melindrando as relações diplomáticas entre o Brasil e a China via Twitter. A China é de grande importância pois, além de ser um dos maiores parceiros comerciais do Brasil, tem a origem do vírus no seu território. Portanto, certamente estará presente na futura mesa de negociação sobre os protocolos de saúde globais.

O segundo diz respeito ao fato de que ano passado o Brasil expulsou os médicos cubanos, que estão agora colaborando com a Itália6. Apesar de não termos suficientes informações sobre o COVID-19 na ilha cubana, os médicos – que estão representando o país – estão atuando para colaborar. Portanto, provavelmente, eles poderão pleitear por voz na elaboração desse futuro documento.

Sendo assim, o Brasil, além de sofrer com a desigualdade global, está lidando com um (des)governo que não colabora em nada com a sua imagem no exterior. Isso torna mais difícil que façamos parte de uma mesa que vá discutir novos protocolos internacionais, tendo em vista a conjuntura que a pandemia criou.

Conclusão

Parece que essas três ideias são completamente aleatórias e diferentes umas das outras, porém há uma conexão entre elas. Será que não deveríamos aproveitar esse momento de caos para repensar ideias que já são enraizadas de tal forma em nossa sociedade que esquecemos que são uma construção? Como a nossa relação com o tempo, com o desenvolvimento, com a exploração da mão de obra assalariada e da natureza.

E por fim, o Brasil, além de ser o maior país da América Latina, tem dentro das suas fronteiras a maior – e mais rica – floresta do mundo. Neste momento em que os índices relacionados a destruição da natureza estão mudando de caráter, a nação que dispõe da maior parte da Amazônia não deveria lutar por visibilidade? Lutar pela preservação de tal ecossistema? Ou, de fato, o nosso (des)governo, só se preocupa com a economia liberal, e além de não pensar fora do seu próprio nicho ou a longo prazo, vai tirar a máscara e mostrar que na realidade o que o interessa é a manutenção total do status quo.

Notas:

1. O tempo, é linear, apesar de ter ciclos internos nele. Como é o caso do tempo cristão, que conta os anos em ideias de acréscimo, mas todos os anos têm: natal, páscoa, etc.

2. Essas teses se encontram no livro: LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Boitempo Editorial, 2005.

3. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/opiniao/2020/03/19/o-que-o-coronavirus-pode- nos-ensinar-no-enfrentamento-a-crise- climatica.htm?fbclid=IwAR0sic2P4rBAn2caQmXbiXaFpcvlUUbeRBKLp5tNDd2MK_sD0WdE2f9A4qs . Acesso em:23/03/2020.

4. Evidentemente ignoro os casos de pessoas que sofrem alguma forma de abuso em sua própria casa, onde as quatro paredes deixam de ser um ambiente seguro e confortável.

5. Edward Palmer Thompson, em seu texto “Tempo, Disciplina de Trabalho e capitalismo industrial” observa como o tempo e com isso a popularização do relógio ajudou na padronização do tempo de trabalho. Como se deu a criação da rotina industrial na Inglaterra e como tiveram inúmeros momento de resistência, como é o caso da Santa Segunda, as segundas-feiras, ao longo do século XIX eram vistas como feriado, só do meio para o final do século XX que se conseguiu instaurá-la como dia útil.

6. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-03-23/cuba-envia-brigadas-medicas-contra-o- coronavirus-a-italia-e-america-latina.html>. Acesso em:25.03.2020.

Referências:

LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Boitempo Editorial, 2005.

MORAES, Cassia; CUNHA, Bruno. O que o coronavírus pode nos ensinar no enfrentamento à crise climática? UOL notícias, s.l., 19.03.2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/opiniao/2020/03/19/o-que-o-coronavirus-pode-nos-ensinar-no-enfrentamento-a-crise-climatica.htm?fbclid=IwAR0sic2P4rBAn2caQmXbiXaFpcvlUUbeRBKLp5tNDd2MK_sD0WdE2f9A4qs. Acesso em: 23.03.2020.

PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Autêntica, 2008.

THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

VICENTE, Mauricio. Cuba envia brigadas médicas contra o coronavírus a Itália e América Latina. El País, Havana, 23.03.2020. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-03-23/cuba-envia-brigadas-medicas-contra-o- coronavirus-a-italia-e-america-latina.html>. Acesso em: 25.03.2020.