Reflexões necessárias num 13 de maio em contexto de pandemia

Boletim nº 20 – 14 de maio de 2020

 

Por Renato Emerson dos Santos¹

 

Vivemos um tempo esquisito neste 13 de maio de 2020. Tempo de quarentena, de isolamento. O isolamento foi mobilizado ao longo da história em diferentes sociedades como castigo, mas agora é medida de proteção de vidas, que altera nossas rotinas, vivências, sociabilidades e relações. Mexe com as dinâmicas de nossos corpos, corações e mentes. Mexe (desigualmente) com liberdades.

13 de maio é a data que foi ensinada, a muit@s de nós, como de celebração da liberdade para um dos principais grupos que compõem a nossa nação, os negros, por ser o dia da assinatura em 1888 da Lei Áurea, a Lei da Abolição da Escravidão. Mas, desde que em 1971 em Porto Alegre, o poeta Oliveira Silveira junto com um grupo de militantes propôs celebrar a liberdade a partir de um marco da luta negra, o dia 20 de novembro, data que marca o assassinato do líder Zumbi dos Palmares, mudanças de significado vem ganhando força. Chamamos a atenção para duas a seguir.

Primeiramente, o significado da construção da liberdade. De uma dádiva da princesa branca no dia 13 de maio de 1888, o 20 de novembro devolve a construção da liberdade como fruto da luta negra contra a escravidão. Este deslocamento de sentido instaura um regime de visibilização das diversas formas de resistência à escravidão, desde a sabotagem produtiva à fuga e ao aquilombamento. Desmente a tese, muito reproduzida em formações escolares de gerações, de que os negros foram escravizados por terem “se adaptado”, ou mesmo “aceito” a escravidão. Evidenciar as resistências, mostrar que elas existiram onde quer que tenha havido escravidão, é reler as histórias de sujeitos, é ressignificar ancestralidades e combater o mito da passividade. Talvez então, não seja por acaso que a proposta do 20 de novembro tenha partido de gaúchos, indivíduos que sentiram literalmente “na pele” o peso do hino do Rio Grande do Sul, que num trecho diz que “povo que não tem virtude / acaba por ser escravo”. O que tal trecho diz aos descendentes daqueles que foram escravizados após serem sequestrados na África e à fórceps trazidos/traficados para as Américas? Mais do que uma mudança de datas apenas, este deslocamento de sentido restitui dignidade a sentimentos de pertencimento.

Em segundo lugar, desloca-se também o sentido atribuído a ambas as datas: de celebração enquanto comemoração, fortalece-se o espírito da crítica social. A própria nomeação de “Dia da Consciência Negra” ao 20 de novembro, atribuída ao Movimento Negro Unificado em sua criação no ano de 1978, tem na crítica à permanência do racismo a chave para o bordão repetido a cada ano: “não temos nada a comemorar!”. Com efeito, o fim da escravidão em 1888 deu lugar a um projeto de branqueamento da população na nossa sociedade, projeto este que já vinha ganhando força nas décadas anteriores e que fez, inclusive, uma parte das elites de então aderirem ao abolicionismo, por acreditarem que enquanto se mantivesse a escravidão seria mais difícil branquear a população. Os negros, portanto, não foram apenas “abandonados à sua própria sorte” com a abolição, mas sim, objeto de campanhas e ações dirigidas contra a sua presença na sociedade. Além das iniciativas de mudanças na composição demográfica, como a importação (em grande parte, subsidiada pelo Estado) de europeus e orientais, repressão e violência policial aos corpos e às práticas culturais negras, discriminação e vedação do acesso a espaços (no mercado de trabalho, por exemplo) foram práticas mobilizadas num contexto em que a “eugenia” ganhou legitimidade pela ciência e hegemonizou ideologias de formação da nação.

A emergência do discurso da democracia racial no século XX não eliminou tais práticas, ao contrário, instaurou uma ambiência de negação do racismo que lhe servia como disfarce, ajudando a garantir sua permanência. O Movimento Social Negro denuncia o “Mito da Democracia Racial”, mostrando como o racismo permanece sendo um traço central nas relações sociais no Brasil, através de práticas, de visões de mundo e da permanência de desigualdades raciais. Mostra que, por dentro das rupturas históricas entre estes regimes racializados de relações sociais – a escravidão, o branqueamento e a democracia racial – há continuidades, permanências, que deixam pouco a comemorar. E, tais permanências são escancaradas no contexto da pandemia.

Coronavírus & raça

Há, no debate público, o argumento de que a pandemia causada pelo vírus COVID-19 tem, como um de seus aspectos mais marcantes, o fato de todas as pessoas correrem risco – afinal, o vírus não “escolhe” os corpos. Ainda que haja debates sobre fatores biológicos que levariam a distinguir risco de infecção e risco de morte entre infectados (idade, portar outra doença, etc.), a ideia de que o vírus nos iguala enquanto membros de uma comunidade seres biológicos tem força. Entretanto, fatores sociais de desigualação enfraquecem tal argumento. E, vem ganhando espaço o argumento de que, entre os fatores sociais de desigualação, o dado racial é importante marcador. Não apenas no Brasil, em diversos países do mundo vem sendo apontada a importância de desigualdades sociais preexistentes em termos de classe, raça, gênero e outros recortes, como nos diz Judith Butler: “A desigualdade social e econômica assegurará que o vírus discrimine. O vírus por si só não discrimina, mas nós humanos seguramente o fazemos, modelados como estamos pelos poderes entrelaçados do nacionalismo, racismo, xenofobia e capitalismo” [2]. Não há como, num 13 de maio em contexto de pandemia, nos furtarmos a pensar sobre de que formas o racismo desiguala na atual situação de catástrofe social.

Os dados que vêm sendo publicizados indicam que estamos à beira de uma catástrofe que será ainda pior para as populações negras. Os Boletins Epidemiológicos Especiais COE-COVID19, do Ministério da Saúde, vem evidenciando tal situação. Uma análise dos dados percentuais de hospitalizações e óbitos por raça/cor das edições de 10/04, 26/04 e 08/05 indicam algumas tendências na comparação entre os diferentes grupos. Brancos representavam respectivamente nestas datas, 73,9%, 60,3% e 54,7% das pessoas hospitalizadas, e 64,5%, 52,3% e 47,7% dos óbitos. Pardos eram 18,9%, 31,5% e 36,3% das hospitalizações e 28,5%, 34,8% e 42,7% dos óbitos. Pretos eram 4,2%, 5,9% e 6,8% das hospitalizações e 4,3%, 6,4% e 7,4% dos óbitos. Amarelos eram 2,8%, 2,0% e 1,9% das hospitalizações e 2,5%; 2,2% e 1,9% dos óbitos, enquanto indígenas eram 0,2%; 0,2% e 0,3% das hospitalizações e 0,2%; 0,3% e 0,3% dos óbitos. Observa-se, neste intervalo, que os percentuais de brancos e amarelos tanto nas hospitalizações quanto nos óbitos vem se reduzindo, enquanto aumentam os de internações e óbitos de pardos e pretos – que, somados, são lidos pelos IBGE como negros. Além deste avanço da doença entre negros, é possível observar que enquanto entre os brancos os percentuais de hospitalização são sempre superiores aos de óbitos, para os negros (pretos e pardos) a percentagem dos óbitos sempre é mais significativa do que sua proporção entre os hospitalizados.

É fato que este quadro poderia ser mais complexificado caso as bases de dados fossem mais completas. Além da subnotificação tanto no número de infecções quanto de mortes por COVID-19 (há estudos estimando que o número de casos pode chegar a ser até 14 vezes maior do que o reportado pelo Ministério da Saúde [3]), o quesito cor/raça também é uma lacuna presente em boa parte dos próprios dados oficiais – o Boletim COE-COVID 15 do Ministério aponta que, dos 9.897 óbitos confirmados até 08/05, algo entre um quarto e um terço, 2.896 tiveram a variável raça/cor ignorada e não foram incluídos na análise. A constituição cadastros e de bases de dados de cor/raça, uma condição para a proposição, formulação e execução de políticas públicas de boa qualidade contra desigualdades raciais, é uma luta antiga do Movimento Negro Brasileiro (que enfrenta resistências de instituições, depoentes que muitas vezes se recusam a preencher os dados e às vezes até mesmo de pesquisadores), e volta à baila no cenário do coronavírus: desde que a pandemia chegou ao país, já houve manifestos solicitando elaboração e divulgação de dados desagregados por raça e cruzamentos com outras variáveis por agentes como a Coalizão Negra por Direitos (manifesto assinado por 150 entidades de todo o país, participantes da Coalizão e parceiros), a ABRASCO (Associação Brasileira de Saúde Coletiva, através do seu GT Racismo) e a SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, através de seu GT de Saúde da População Negra). Além da luta contra o coronavírus, a luta por dados e informações.

Como compreender tais desigualdades? Quais as variáveis envolvidas? O problema é a raça ou o racismo? Se a epidemia se iniciou com transmissões a partir de pessoas vindas do exterior, na virada do mês de março para abril já era marcada pela transmissão interna. Os dados dos Boletins COE-COVID analisados, portanto, captam o que acreditamos ser o início dos movimentos de difusão nas grandes metrópoles e interiorização. Acreditamos que os próximos devem refletir mais o aprofundamento da chegada do vírus em periferias e favelas, além de cidades menores. Assim, se no início a doença afetava uma proporção maior de brancos e nas classes média e alta (perfil predominante entre os que viajaram para o exterior, primeiro vetor de disseminação da doença ao país), a transição do perfil racial se relaciona com a maneira como as formas de transmissão interna refletem (e, talvez, reforçam) as mazelas da nossa sociedade.

Por que tal quadro de evolução desperta preocupações em termos de desigualdades raciais? Precisamos atentar para o fato de que, se de um lado o vírus não discrimina corpos humanos, combinado com variáveis biológicas (outras doenças) e sociais, resulta em forte fator de discriminação racial do tipo indireta ou por impacto desproporcional, nos termos trazidos por Joaquim Barbosa Gomes [4].

Diversas são as desigualdades raciais existentes na sociedade brasileira que, certamente, elevarão os impactos do coronavírus entre os grupos já prejudicados pelo racismo. A “distribuição desigual de riscos” do COVID, termo proposto para analisar a atual situação pelo cientista social camaronês Achille Mbembe[5], autor do importante livro “Necropolítica”, advém das diversas resultantes do cruzamento das clivagens sociais de raça, classe e espaço no Brasil. A condição urbana predominante para populações negras é marcada pela segregação social e racial nas nossas grandes cidades. Desigualdades de padrões de habitação (que envolvem não apenas padrões construtivos, mas também densidades de pessoas por habitação, cômodos e metragens), bem como infraestruturas diversas de circulação (desde padrões de vias, de ruas largas e arborizadas de condomínios fechados aos becos e vielas em favelas) e transporte, além de condições econômicas e inserções profissionais que permitam ou não a permanência em casa durante a vigência de políticas de quarentena e isolamento, já implicam em profundos diferenciais no controle da transmissão. E, aqui, controle tem propositalmente duplo sentido: monitoramento e redução. O padrão de difusão nesta nova fase do COVID certamente traz uma bomba relógio que afetará mais a negros, sobrerepresentados na pobreza e nas periferias. As primeiras análises espaciais cruzando raça e os casos da epidemia já começam a mostrar tal quadro[6]. Confirma o que já era previsto, e por isso a constituição e divulgação de dados nos bancos oficiais desagregados por bairros nos municípios, além de raça e cor (para casos confirmados mas também para os suspeitos), foi reivindicação em manifestos das entidades citadas acima. O da Coalizão Negra por Direitos reivindicou ainda estudos específicos destes dados em quilombos e comunidades tradicionais, territórios portadores de especificidades culturais e sociais. Melhores diagnósticos podem revelar situações ainda mais graves do que já é possível detectar.

A dimensão econômica também pesa de maneira mais forte sobre os negros. Precarização trabalhista, salários em média mais baixos, maiores índices de desemprego e informalidade colocam negros entre os que, diante da necessidade da manutenção de renda cotidiana, apresentam mais dificuldades de entrar em isolamento. Além disso, a inserção profissional prejudicada pela discriminação racial ativada sobre gerações de trabalhadores negros após a abolição da escravidão faz com que eles também estejam sobrerepresentados nas chamadas “atividades essenciais”, aquelas que não param durante as políticas de quarentena, isolamento ou fechamento total (“lockdown”) na pandemia, condicionando maior exposição ao contágio. Destaque, aqui, para a inserção de trabalhadores negros e negras no próprio setor de saúde, também marcada por desigualdades raciais de remuneração e tipo de vínculo de trabalho – ou seja, mais precarizados[7]. Numa sociedade hierárquica como a nossa, terão menor atendimento na distribuição de equipamentos de proteção individual e, portanto, maior exposição ao risco de contágio e fragilidade na própria oferta de tratamento.

Outra dimensão que vem sendo indicada pelas entidades do campo da medicina é a desigualação biológica de origem social. A incidência de comorbidades, outras doenças anteriores que agravam o quadro e o risco para pacientes infectados com o coronavírus, faz aumentar a preocupação racial. O manifesto da SBMFC já indicava que a maioria dos pacientes com Diabetes Melittus, Tuberculose, Hipertensão Essencial Primária e doença Renal Crônica, que configuram grupo de risco para COVID 19, são negros. O manifesto do GT Racismo da ABRASCO propunha que, como medida de controle preventivo, agentes comunitários de saúde fossem orientados para a busca ativa de pessoas com tais comorbidades. O mais recente Boletim COE-COVID indica que, dos 9.897 registros de óbitos (até o dia 08/05), estiveram presentes comorbidades como a cardiopatia (3.425 dos óbitos), seguida de diabetes (em 2.660 óbitos), doença renal (621), doença neurológica (550) e pneumopatia (544). O Coronavírus se soma, então, reforçando desigualdades raciais de saúde já existentes.

As práticas de discriminação racial cotidianas em nossa sociedade devem agravar este quadro. E, neste momento é particularmente preocupante a insuficiência das políticas até o momento adotadas para reduzir o racismo e seus impactos sociais no âmbito do próprio Sistema Único de Saúde. Este traço, que há tempos vem sendo denunciado e tornado objeto de preocupação por gestores [8], volta à baila num momento em que o colapso do sistema de atendimento, com o esgotamento da capacidade de leitos e equipamentos, já começa a ser sentido em algumas cidades, e começam a serem elaborados protocolos de priorização de pacientes. Há, em outros campos do atendimento em saúde, registros do critério racial como fator desigualador, denunciando este efeito do racismo[9]. Aqui, o cruzamento de raça, classe, gênero, idade e endereço do domicílio pode produzir efeitos adicionalmente catastróficos.

Mais do que nunca, este 13 de maio, num contexto de pandemia, é de preocupação e de luta. Se há algo a celebrar, é a luta contra o racismo e seus impactos sociais. Além da disputa dentro do campo da saúde, da qual trouxemos alguns exemplos protagonizados por entidades e grupos de trabalho dedicados ao combate ao racismo, o contexto do avanço do coronavírus tem evidenciado também a sempre presente luta pela sobrevivência dos grupos e comunidades socialmente desfavorecidos. Na medida que os impactos sanitários e econômicos do COVID-19 avança sobre esta realidade, vemos grupos se mobilizando em comunidades, redes sociais e favelas para produção, distribuição e compartilhamento de alimentos, realização coletiva de trabalho viabilizando condições sanitárias (como a limpeza de vias, construção/instalação de pias com água e sabão para lavagem das mãos, produção e distribuição de máscaras, etc.), iniciativas nas quais se mostra presente, mais uma vez, o protagonismo comunitário de mulheres negras. Tais iniciativas, muitas vezes invisibilizadas, salvarão muitas vidas – e não apenas vidas negras.

Notas:

1. Professor do IPPUR/UFRJ. Pesquisador do Laboratório ETTERN/IPPUR. Coordenador do NEGRAM (Núcleo de Estudos sobre Geografia, Relações Raciais e Movimentos Sociais).

2. Butler, Judith. “El capitalismo tiene sus límites”. In: Agambem, Giorgio (Org.) Sopa de Wuhan: pensamiento contemporaneo en tiempos de pandemia. Madrid: ASPO, 2020. P. 62.

3. https://saude.abril.com.br/medicina/coronavirus-estimativa-aponta-numero-de-casos-14x-maior-do-que-o-oficial/. Acesso em 08/05.

4. Gomes, Joaquim Barbosa. Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade. Rio de Janeiro/são Paulo: Renovar, 2001.

5. https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/pandemia-democratizou-poder-de-matar-diz-autor-da-teoria-da-necropolitica.shtml. Acesso em 08/05.

6. Ver, por exemplo, os mapas da Cidade de São Paulo no artigo “Cartografias da Pandemia”, de Aluízio Marino, que mostram que os bairros com maior quantidade de habitantes negros são os que já apresentam também maiores números de óbitos por coronavírus. Não por coincidência, são áreas da cidade que também tem menor oferta de leitos hospitalares, como também mostram os mapas do artigo. Disponível em https://www.quatrocincoum.com.br/br/artigos/a/cartografias-da-pandemia?fbclid=IwAR3MVXqwzdoiJq-HmcxnC1A5cs2FexXQXawng2ZKAVXZnYL0-GGiELvRiY8, Acesso em 09/05/2020.

7. Lombardi, Maria Rosa; Campos, Veridiana Parahyba. A enfermagem no Brasil e os  contornos de gênero, raça/cor e classe social na formação do campo profissional. Revista da ABET, v. 17, n. 1, Janeiro a Junho de 2018.

8. Destacamos, aqui, a publicação em 2009 pela Fundação Nacional de Saúde do caderno “Saúde da População Negra no Brasil”. Disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/pop_negra/pdf/saudepopneg.pdf. Acesso em 08/05/2020.

9. As publicações “Saúde da População Negra: Brasil ano 2001”, de Fátima Oliveira (Brasília: Organização Pan-Americana de Saúde, 2003) e a coletânea “Saúde da População Negra” organizada por Luís Eduardo Batista, Jurema Werneck e Fernanda Lopes e publicada pela Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (Brasília: ABPN, 2012) são dois exemplos de como pesquisas vêm aprofundando esta temática.