Quando o desenvolvimento vai pelo ralo: como a pandemia do Covid-19 evidencia a importância de se pensar em saneamento básico
Boletim nº 35 – 16 de setembro de 2020
Por Vinícius de Santana Lopes¹
Resumo
O setor de saneamento básico brasileiro, apesar das políticas públicas e de desenvolvimento, continua tendo uma abrangência desigual. No contexto pandêmico vivenciado em 2020, evidencia-se a importância da universalização desse setor para assegurar a saúde e o bem-estar da população. Desse modo, o presente briefing faz uma análise do saneamento básico no Brasil, evidenciando as desigualdades presentes nesse e a necessidade de um enquadramento desse setor aos Direitos Humanos.
Introdução
Nas últimas duas décadas, o acesso à água e ao esgotamento sanitário começou a receber maior atenção no Brasil. Os motivos para isso podem ser apontados, respectivamente, pela implementação de um marco regulatório para o setor, em 2007, e pelo reconhecimento desse como um direito humano pelas Nações Unidas, em 2010.
No entanto, vê-se que mesmo com os avanços tidos a partir dessas constatações, o acesso à água e ao esgotamento sanitário ainda não alcançou a universalização, como almejado, e nem sequer a média observada no setor na América Latina (FREITAS, 2016). Destarte, no presente ano, 2020, a pandemia do COVID-19 surge e traz consigo a necessidade de se pensar em saneamento básico; primeiro como uma questão de saúde pública, mas como apontar-se-á, não somente. Desse modo, o briefing visa ilustrar a importância de se pensar em saneamento básico e a articulação desse a partir de uma abordagem de desenvolvimento baseada em direitos humanos.
Para isso, a primeira seção discute introdutoriamente os aspectos legais, a nível nacional e internacional, da área de saneamento básico no Brasil, evidenciando a articulação entre desenvolvimento e direitos humanos. Em um segundo momento, se apresenta o paradoxo presente na democracia do coronavírus, e, a partir desse, como o debate em torno do saneamento básico se põe em voga atualmente. A terceira seção discute a desigualdade presente no acesso à água e esgotamento sanitário no Brasil, assim como os avanços e retrocessos no setor. Nessa parte, discute-se a importância do saneamento básico para além de questões de saúde pública e profilaxia, evidenciando as interseções entre saneamento e educação, economia e bem-estar social. Por fim, a última seção apresenta as considerações finais e os possíveis caminhos a serem percorridos no pós-pandemia. Nessa parte se comenta os prognósticos a nível nacional e internacional, e põe em evidência o papel da abordagem de desenvolvimento baseada em direitos humanos.
Entre o direito e o desenvolvimento: uma síntese do saneamento básico no Brasil
Desde o ano de 2010 o acesso à água e ao esgotamento sanitário passou a ser listado como um direito humano pela Organização das Nações Unidas (ONU), e passou a ter, tal como os outros direitos, características como a integralidade e a inalienabilidade. Anteriormente, o acesso à água e ao esgotamento sanitário era tido como subentendido, pois atestava-se que esse já estava previsto no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948, no qual se garantia que todo ser humano deveria ter um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar [1].
Em 2010, a ONU especificou e singularizou esse direito através da Resolução A/RES/64/292, e ao fazê-lo, tornou possível que os mecanismos da organização – como comissariados, relatores e comitês – pudessem ser usados de modo a acompanhar o progresso e responsabilizar os governos [2].
A partir dessa transição, viu-se no sistema internacional um crescente impulso às políticas voltadas para a promoção desse direito, assim como avanços no setor. A nível internacional, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis são um exemplo, como será apresentado. Já a nível nacional, segundo a Agência Nacional de Águas, também houve alguns avanços: como apontado no gráfico 1, no período compreendido entre 2009 e 2017 foi possível perceber um crescimento de 5% na população com acesso à água potável, ou seja, cerca de 25 milhões de pessoas; da mesma forma, vê-se no gráfico 2 que o acesso ao esgotamento sanitário cresceu 7% entre 2011 e 2016, representando uma ampliação do acesso para cerca de 21 milhões de pessoas [3]. Nesse sentido, possibilita-se falar da abordagem ao desenvolvimento baseada em direitos humanos.
Gráfico 1 – Evolução no número de brasileiros com acesso à água potável segura.
Fonte: Agência Nacional de Águas, 2019.
Gráfico 2 – Evolução no número de brasileiros com acesso ao esgotamento sanitário de forma segura.
Fonte: Agência Nacional de Águas, 2019.
A abordagem de desenvolvimento baseada em direitos se alicerça nos Direitos Humanos e busca promover a justiça, igualdade, redução da pobreza e da exploração [4], e por isso traz em seu âmago princípios como: (i) universalidade; (ii) interdependência e (iii) inalienabilidade. Em suma, isso quer dizer, respectivamente, que (i) tais direitos devem ser garantidos para todas as pessoas, sem discriminação; (ii) é necessário o cumprimento de todos os direitos, sem que haja sobreposição ou detrimento de um ao outro; (iii) ninguém pode ser privado desses direitos [5]. Portanto, pode-se dizer que além dessa abordagem ser uma maneira de diminuir a extrema pobreza e a desigualdade, essa tem o papel de se contrapor ao desenvolvimento tido pela lógica neoliberal [4], que frequentemente abordava o serviço de saneamento básico a partir de uma perspectiva econômico-financeira [6].
Entretanto, nem sempre foi assim. Nelson e Dorsey [4] apontam que até o final do século XX, direitos humanos e desenvolvimento eram considerados campos totalmente distintos, sendo somente nas últimas décadas que tais áreas passaram a ser juntamente articuladas. Um marco que pode ser apontado para essa interseção são os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), produzidos a partir da Cúpula do Milênio das Nações Unidas em setembro de 2000. Nesse momento promulgavam-se oito objetivos de desenvolvimento que visavam desde a redução da extrema pobreza à equidade de gênero, devendo esses serem cumpridos até o ano de 2015 [7].
Nesse sentido, pode-se destacar também os Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis (ODS), criados em 2015 na ONU após os bons resultados provenientes dos ODM. Os ODS trazem consigo dezessete novas metas para o desenvolvimento e o lema “não deixar ninguém para trás” [8], e, portanto, ecoa os princípios basilares dos direitos humanos. Dentro dos ODS, a sexta meta apresenta como fim assegurar água e saneamento de qualidade para todos até 2030; nesse momento, vê-se precisamente uma abordagem de desenvolvimento baseada em direitos humanos para o saneamento básico.
No Brasil, o saneamento passou a ter um marco regulatório somente em 2007, a partir da lei 11.445. Essa lei busca garantir que o saneamento básico seja universalizado, e antes de mais nada, evidencia que por saneamento básico entende-se: (i) abastecimento de água; (ii) esgotamento sanitário; (iii) limpeza urbana; (iv) drenagem urbana; (v) manejo de resíduos sólidos e águas pluviais [9].
Para alcançar a universalização, delega-se à União o dever de montar um plano de ação para orientar as ações e investimentos do Governo Federal; o Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB) [9]. Esse deve ser revisado a cada quatro anos e, se necessário, reestruturado de modo a atender as possíveis demandas. Outra atribuição desse é servir como um guia para os investimentos do Governo Federal na área, para que então os governadores possam fazer uso desse. Cabe dizer, entretanto, que os investimentos no setor apresentam alguma instabilidade; fazendo uma síntese desses a partir da segunda metade do século XX, o Instituto Trata Brasil [10] aponta: nos anos 1950, os investimentos na área de saneamento básico eram feitos a partir do orçamento para recursos gerais e/ou empréstimos externos; já nos anos 1970, há o início do Plano Nacional de Saneamento (PLANASA), que angariou maiores investimentos a partir da adjeção ao Banco Nacional da Habitação e ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço; como consequência, esses logravam repassar maiores montantes às Companhias Estaduais de Saneamento Básico. Já a partir dos anos 80, iniciou-se um constante esfacelamento dessas dinâmicas, sobretudo influenciados pela dívida externa e pelo início das concessões privadas, até que, em 2007, após as ODMs e o início do Programa de Aceleração do Crescimento, o setor seria regulamentado e voltaria a ser alvo de novos investimentos [11].
A partir desse histórico, evidenciam-se as bases para a desigualdade presente no setor no Brasil. Dados do Sistema Nacional de Informações em Saneamento apontam que ainda que o índice médio de abastecimento de água no país seja de 82,3%, o acesso ao esgotamento sanitário em termos de coleta é de 53%; e de tratamento, 46% [12]. Em termos numéricos, essas porcentagens indicam dizer que 35 milhões de brasileiros não possuem acesso à água e cerca de 100 milhões não possuem acesso ao esgotamento sanitário [12]; ou seja, grande parte da população brasileira ainda não possui acesso aos serviços que corroboram, essencialmente, para o padrão de vida e bem-estar que é garantido tanto no âmbito internacional, pela DUDH, quanto pelo próprio marco regulatório brasileiro, de 2007, no qual consta a exigência da universalidade e integralidade do serviço de saneamento básico.
A estipulação dos ODS, como supracitado, é um notório exemplo da interseção entre desenvolvimento e direitos humanos. Nesse sentido, cabe dizer que a estipulação da ODS6, visando a garantia de água potável e saneamento a todos, vai de encontro direto aos princípios da Lei do Saneamento Básico (11.445/2007), e desse modo se permite observar o que seria a abordagem ao desenvolvimento baseada em direitos na prática.
A literatura dessa área propõe que tratar saneamento à luz dessa abordagem implica o reconhecimento fulcral que os direitos humanos são indivisíveis e interdependentes, e aponta que tal abordagem deve ser focada nas raízes do problema, ou seja, na discriminação estrutural presente no sistema [13]. Os preceitos de indivisibilidade e interdependência se fazem claros à medida que se estabelece as relações entre o desenvolvimento da ODS6 com as demais áreas fundamentadas nos direitos humanos. Como aponta Heller [14], países com um maior grau de desenvolvimento em termos de saneamento apresentam populações mais saudáveis; logo, pode-se apontar a primeira e mais básica confluência entre saneamento e saúde, respectivamente, ODS6 e ODS3 – a última indica a necessidade de garantir a promoção de saúde e bem estar para toda a população, sem nenhum tipo de discriminação.
No entanto, como será mostrado nas próximas seções, ainda que o saneamento tenha uma influência direta com as questões de saúde, em especial no momento em que a pandemia do COVID-19 assola o país, o progresso na área de saneamento também traria múltiplos benefícios econômicos e sociais, como por exemplo, a redução de gastos em outras áreas (como a da saúde, ao atuar na prevenção de diversas enfermidades), a melhora na frequência escolar e na qualidade de vida, especialmente das mulheres, idosos e crianças [15].
A democracia da COVID-19
Corriqueiramente veem-se notícias que alegam que a pandemia do COVID-19 coloca o globo em situação de plena igualdade, visto que o vírus não faz nenhuma discriminação e atinge a todo o mundo, em alcance e escala, de maneira igual.
No entanto, ainda que o coronavírus de fato infecte a todos da mesma maneira, ou seja, democraticamente, vê-se que populações que não contam com um serviço de saneamento básico de qualidade podem ter suas chances de infecção aumentadas, haja vista que uma das principais vias de prevenção do coronavírus, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), se dá pela lavagem das mãos [16]. Nesse sentido, em entrevista ao Leo Heller{1}, epidemiologista e relator especial das Nações Unidas sobre o acesso à água e ao saneamento básico, esse destacou que historicamente há grupos no Brasil que são mais afetados por conta da disparidade de alcance das políticas de desenvolvimento; desde as favelas urbanas às áreas rurais. Todavia, Heller ressalta que o acesso à água e saneamento é apenas uma camada da desigualdade enraizada no país, pois essas populações são afetadas também por outras dificuldades, em certa medida estruturais, tais como habitações precárias e aglomeradas, e privações socioeconômicas que não permitem o isolamento social [17].
Não obstante, recentemente a OMS elaborou um documento que traz evidências da presença de fragmentos do vírus da COVID-19 em matéria fecal de pacientes que tiveram a doença [18]. Uma vez que, como supracitado, cerca de 100 milhões de brasileiros não possuem serviços de esgotamento sanitário adequados, certamente esses teriam uma maior probabilidade de infecção pelo coronavírus em caso de transmissão fecal-oral desse. Enquanto não há uma concretude sobre a transmissão fecal-oral da COVID-19, ressalta-se que não é a primeira vez que se aponta a possibilidade de elevação de contaminação de um vírus corona por conta de estruturas sanitárias deficientes. Em 2012, como aponta Ferreira [19], a epidemia da MERS, vírus da mesma família viral do novo coronavírus, apresentou a mesma característica.
A partir dos argumentos supracitados, torna-se a evidenciar a importância de se promover um maior desenvolvimento no setor de saneamento básico, que por ser muitas vezes invisibilizado e tido como dispendioso, os não-avanços resultam em danos que poderiam ser evitados. Caso não se vivenciasse uma pandemia na qual a atuação desse setor se tornasse crucial para o enfrentamento, será que esse não continuaria invisibilizado?
As faces que a pandemia desvela
O Brasil possui um amplo histórico de discriminação na formulação e aplicação de políticas públicas ligadas ao setor de saneamento e acesso à água. Ao fazer uma análise dessa área à luz de condições socioeconômicas, Quintslr [20] aponta quais são os grupos que mais sofrem com a falta de acesso a esse serviço: a população não branca, com menor renda e menor nível de instrução. Ainda, por não ter um bom acesso ao serviço público de água e saneamento, essa parcela é apontada como a mais propensa a recorrer a empresas privadas que fornecem o serviço. Nesse sentido, visto que essa população já apresenta privações econômicas, essa acaba por ter sua economia doméstica ainda mais afetada ao se ver necessitada a recorrer ao serviço privado [20]. Portanto, no momento atual, no qual a pandemia do COVID-19 impõe medidas que afetam a economia nacional e, consequentemente, acarretam uma possível redução de renda da população, infere-se que a população que já se encontrava em situação de vulnerabilidade pode ter sua situação agravada.
A deficiência presente no setor de saneamento básico brasileiro põe em pauta novos debates, que vão desde o questionamento da efetividade da implementação das políticas de desenvolvimento, até o fortalecimento do discurso favorável à privatização como uma solução. Como exposto anteriormente, o Brasil tem obrigações legais a nível nacional e internacional que deveriam garantir a universalização do acesso à água e ao saneamento básico de qualidade; entretanto, percebe-se que ainda há um longo caminho para alcançar essa [17].
A região Sudeste, segundo o SNIS, é a que conta com o maior índice de desenvolvimento do setor no país: 91,3% dos habitantes possuem acesso à rede de água, 79,2% à coleta de esgoto, e 50% ao tratamento de esgoto [12]. No entanto, mesmo com sua primazia, frequentemente veem-se situações que corroboram com a proposição de [17] no que diz respeito ao longo caminho a ser trilhado rumo à universalização; um exemplo é a intermitência no fornecimento de água em algumas áreas do município do Rio de Janeiro, onde já houve interrupções que duraram três meses [20].
Situações como essa justificam as recentes movimentações da sociedade civil que, autonomamente, começou a se reunir visando uma maior promoção e implementação desse serviço, o qual se apresenta imprescindível na prevenção da COVID-19 [21]. Todavia, é importante frisar que, da mesma forma que o saneamento básico exerce um papel importante na prevenção da COVID-19, como supracitado, a promoção desse também é vital para a prevenção de outras inúmeras enfermidades. Dados do Instituto Trata Brasil apontam que entre 2010 e 2017 o país apresentou uma média de 396 mil internações por doenças associadas à falta de saneamento, vide gráfico 3, totalizando um custo de aproximadamente 1,1 bilhão ao Estado [22].
Gráfico 3 – Média anual de internações entre 2010 e 2017.
Fonte: Igor Estrella/G1, 2019.
Nesse sentido, percebe-se que essa tendência segue vigente em 2020. Nesse ano, a Agência Brasileira de Engenharia Sanitária Ambiental aponta que o país já teve mais de 40 mil internações associadas à falta de saneamento básico somente nos três primeiros meses, como aponta o gráfico 4 [23].
Gráfico 4 – Internações associadas à falta de saneamento básico no primeiro trimestre de 2020.
Fonte: Fernanda Garrafiel/G1, 2020.
Destarte, o Instituto Trata Brasil [10] ressalta que o número de infecções gastrointestinais, caracteristicamente relacionadas a um serviço ineficaz de saneamento básico, poderia ser reduzido à metade caso houvesse a universalização na coleta de esgoto, o que acarretaria, consequentemente, em uma economia de até R$ 745 milhões ao longo dos anos.
Até o momento foi apresentado, em termos gerais, a relação entre saneamento e saúde. No entanto, como apontado na introdução, há outros benefícios a serem advindos da universalização do saneamento básico.
Em termos de educação, vê-se que menos da metade das escolas brasileiras possuem serviço de coleta de esgoto; esse indicativo, associado ao das crianças que vivem em áreas que possuem saneamento básico disfuncional, evidenciam a redução de aproximadamente 20% no aproveitamento escolar dessas em comparação às que possuem esse serviço [10]; logo, em termos de educação, a universalização do saneamento traria um maior índice de aproveitamento escolar. Em termos de trabalho e produtividade, o Instituto Trata Brasil, com apoio da Fundação Getúlio Vargas, aponta que uma vez que o saneamento promove uma melhora na saúde, a probabilidade de afastamentos de pessoas com acesso à rede de esgoto é 19,2% menor daqueles que não possuem acesso; nessa linha, trabalhadores que têm acesso à rede de esgoto conseguem aumentar sua produtividade, e, consequentemente, adquirem um crescimento em sua renda [10]. Por fim, a universalização desses serviços colabora com a valorização no setor imobiliário, no qual aponta-se que imóveis ligados à rede de esgoto alcançam uma valorização de cerca de 18% em detrimento dos que não são ligados à essa rede [10].
Como exposto, a universalização do acesso à água e ao saneamento traria benefícios nos mais diversos âmbitos sociais e econômicos. Em contrapartida, a não promoção desses serviços põe em xeque a credibilidade das instituições governamentais responsáveis por esta universalização – e é nesse momento que as propostas de privatização e destituição do primado estatal ganham força. Uma das faces que a pandemia desvela traz os dois lados desse discurso: a dispensabilidade do Estado e a necessidade do Estado. O primeiro lado do discurso aponta que, uma vez que o Estado não consegue promover universalmente o bem-estar e a saúde da população, esse se torna dispensável, podendo então conceder suas responsabilidades às instituições privadas. O segundo, por sua vez, realça a necessidade de imposição e regulação estatal, ou seja, de um Estado mais presente, que além de garantir os direitos humanos, se desenvolva objetivando a promoção desses [17]. Apesar de outros, esse é um dos paradoxos que mais evidentemente pautam as discussões contemporâneas na área de saneamento no Brasil, principalmente a partir do Projeto de Lei (PL) 4.162, elaborado em 2019, no qual se debate um novo marco regulatório para o saneamento.
Considerações finais: perspectivas, desafios e caminhos
A nível internacional, apesar de ser esperado que o desenvolvimento na perspectiva econômica experiencie uma série de não avanços no pós-pandemia [24], é possível visar uma maior diligência no progresso relacionado aos ODS, sobretudo ao ODS6, haja vista que a ONU enfatizou a necessidade de proteger os serviços básicos e de saúde no mundo pós-pandemia, para assim ser possível mitigar os impactos da COVID-19 [25].
No caso brasileiro, indica-se que os caminhos rumo à universalização do setor de saneamento podem de fato voltar a voga no pós-pandemia, uma vez que já está em andamento a PL 4.162/2019, que visa um novo marco regulatório para o setor. Entretanto, aponta-se criticamente nesse projeto uma panaceia pela qual busca-se, através da privatização, que todos os problemas relacionados a essa área sejam resolvidos [17], o que pode se impor como um desafio à aprovação e continuidade dessa PL. De todo modo, é imprescindível que os avanços se sobreponham aos retrocessos, para que seja enfim possível rumar à universalização, pois essa, caso os investimentos no setor se mantenham no mesmo nível que se manteve nos últimos anos, só seria possível em 2050 [26], ou seja, vinte anos após a data estipulada pelos ODS e quase trinta anos após a meta estipulada pelo PLANSAB.
A COVID-19 traz à tona algo que deveria ser um consenso: o saneamento básico é e deve ser tido como basilar. E para além disso, põe em evidência que a necessidade da universalização não somente trará benefícios para a saúde pública, senão para o bem-estar como um todo – tal como propagam as políticas de desenvolvimento baseadas em direitos humanos. Sabe-se que há um caminho longo a ser trilhado, mas há de se ater aos princípios integralidade, igualdade e não discriminação, assim como espera-se que o Estado, em toda sua esfera, implemente o direito ao saneamento básico, o defenda e o proteja [6], assim como passe a produzir de um planejamento de curto, médio e longo prazo de modo a lograr avanços no setor [27] para, então, alcançar um acesso integral e universal.
Portanto, ainda que não haja uma fórmula mágica para alcançar tais objetivos, esses caminhos podem ser indicados como um meio para que todos os progressos tidos até então, não acabem indo pelo ralo.
¹Graduando em Relações Internacionais na PUC-RIO. Bolsista do PET/TEPP-IRI.
Notas
{1}. Entrevista concedida ao autor do briefing. Leo Heller é mestre em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos e doutor em Epidemiologia, ambos pela UFMG. Atualmente é Relator Especial do Direito Humano à Água e ao Esgotamento Sanitário na ONU e pesquisador do Instituto René Rachou – Fiocruz, atuando principalmente nas áreas de saneamento básico, direitos humanos, saúde ambiental e políticas públicas.
Referências
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16 – MELO, J. O Coronavírus não é “democrático”: O caso das comunidades de Fortaleza sem acesso ao sistema público de saneamento básico. ONDAS, Brasília, 2020. Disponível em <https://ondasbrasil.org/o-coronavirus-nao-e-democratico-artigo/> Acesso em 11 jun 2020.
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