Planejamento regional no Brasil: pistas para uma nova agenda a partir da síntese histórica

Boletim nº 65, 02 de agosto de 2022

 

Planejamento regional no Brasil: pistas para uma nova agenda a partir da síntese histórica.

Por Glaucy Hellen Herdy Ferreira Gomes

Este trabalho foi produzido no âmbito da disciplina de Planejamento Urbano e Regional II, ministrada pela professora Hipólita Siqueira, no formato de resenha, com base no texto “A (des)institucionalização das políticas regionais no Brasil” de Maria Regina Nabuco 

A economista Maria Regina Nabuco (1942-2004) foi professora integrante dos quadros de duas importantes universidades mineiras, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Pontifícia Universidade Católica, de Minas Gerais (PUC-MG), nas áreas de ciências sociais, econômicas e políticas, além de uma das responsáveis pela criação do curso de mestrado em Gestão na PUC-MG. Participou também da administração pública, tendo sido na década de 1990, Secretária de Abastecimento da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte e presidente do Conselho Municipal de Segurança Alimentar, reconhecida pela implementação do programa de abastecimento popular dos restaurantes populares da cidade, e do programa Direto da Roça. Destaca-se em sua produção, uma solidez teórica e engajamento na busca pela superação de temas crônicos no Brasil, principalmente em se tratando de alargar o debate acerca do planejamento territorial e da questão regional no país.

Este artigo foi apresentado originalmente em uma mesa redonda do VI ANPUR Brasília em 1995, foi publicado postumamente com autorização da filha da economista na Revista Revista Eletrônica de Ciências Humanas e Sociais e outras coisas (etc…), em 2007.  O trabalho foi desenvolvido sobre um recorte histórico bem delimitado, desde o período do Pós II Guerra Mundial até meados dos anos 1990, buscando analisar e discutir as políticas econômicas norteadoras das grandes linhas do planejamento regional brasileiro, e desenvolver também uma necessária sistematização dos principais programas regionais deste período. Investigou-se também a hipótese básica de que o Governo Federal brasileiro interveio para apoiar e desenvolver políticas regionais que expressaram, consideravelmente, a forte pressão política das elites regionais. Em relação à estrutura, os quadros históricos propostos para análise norteiam toda a discussão, que é dividida em: Introdução; Pós-guerra e o princípio do planejamento regional no Brasil; O golpe militar de 1964 e um novo ciclo de políticas regionais; A transição democrática dos anos oitenta: irrigação e a “desconcentração concentrada”; A constituição de 1988 e o governo Collor: regionalismo versus localismo; Emergência do municipalismo; O Município: “território democrático da ingovernabilidade?”; finalizando com as Conclusões e Referências. 

De acordo com Nabuco, inicialmente, os primeiros passos do Brasil em direção ao planejamento regional, no período do Pós II Guerra, se deram sob teorias de desenvolvimento de regiões atrasadas e da escassez de recursos, acrescidas de novas discussões e interpretações acerca das possibilidades de intervenção no mercado, contidas principalmente na teoria da “causação cumulativa e circular” de Myrdal. Os objetivos centrais das ações de planejamento, neste momento, visavam a redução de diferenças regionais e criar infraestrutura mínima para atração de investimentos. As regiões Norte e Nordeste foram as privilegiadas na recepção dos recursos direcionados para essas finalidades, sendo este o momento da criação de importantes instituições de planejamento e financiamento para a região Nordeste, tais como o BNB, o FNE e a SUDENE. No decorrer das décadas de 1950 e 1960, a política regional passa a se configurar como uma política assistencial, de caráter territorial, mas não alterando a lógica acumulação desenvolvimentista já observada anteriormente.

Já com o golpe militar em 1964 até os anos 1970, há um período de grande concentração de poder e recursos no Governo Federal, e a inauguração de um novo ciclo de políticas regionais no Brasil, caracterizado por forte estímulo institucional às políticas regionais, mas buscando outras áreas para além do Norte e Nordeste, como a Amazônia legal e as fronteiras agrícolas do Centro-Oeste. Nesse ciclo, foram criados e implementados diversos programas federais e regionais, com diversos objetivos e metas, mas o que se viu de maneira geral, foi um rompimento dos novos programas implementados com os anteriores, estabelecendo abordagens diferenciadas em cada região: enquanto nas fronteiras do Centro-Oeste eram enaltecidos os aspectos geográficos/locacionais, no Nordeste a ênfase era dada apenas nos problemas e dificuldades enfrentadas pela região. Houve uma perda generalizada no destaque dado pelos planos anteriores à questão dos desequilíbrios regionais. No que tange às influências da teoria econômica nos planejamentos deste período, Nabuco aponta um otimismo inicial com teorias das vantagens comparativas , mas que, de maneira geral, as políticas regionais dos anos 1970 basearam-se num tripé constituído pelas teorias econômicas de polarização, aglomeração e modernização agrícola.

A partir dos anos 1980, uma década marcada pela crise econômica, começa a se desenhar uma transição democrática ainda dentro do governo militar. O cenário de acirramento das desigualdades, de escassez de recursos e de má gestão pública, acarretou no encerramento de muitos dos programas de planejamento federais e regionais criados nos anos anteriores, reforçando desequilíbrios espaciais e ocasionando o espraiamento da industrialização paulista em direção às regiões vizinhas, a chamada “desconcentração concentrada”, e com a presença de algumas manchas espaçadas de industrialização especializada nos estados da Bahia, Espírito Santo, Rio Grande do Norte e Ceará. Os poucos projetos regionais resistentes, situavam-se em estados do Sul, Sudeste e partes do Mato Grosso, enquanto na região da SUDENE, sobreviveram alguns poucos programas ligados à pequena produção agrícola. A conjuntura de acirramento das desigualdades e de degradação das condições de vida, alinhado à uma maior movimentação popular em prol da luta pela democratização, colaboraram para aumentar a pressão sobre o governo militar e as reivindicações de maior participação social, pavimentando o caminho para a democratização.

O período entre a promulgação da Constituição de 1988 e o governo Collor (1990-1992), foi um marcado pelo conflito entre regionalismo e localismo. O “lobby regional” teve uma participação significativa no processo da constituinte, alcançando conquistas inéditas para as regiões menos desenvolvidas do país, mas em contraponto, esses ganhos legais não tiveram impacto territorial por um bom tempo após a promulgação da Carta devido à  dependência da formulação de leis complementares de regulamentação. Em contrapartida, há o resgate do investimento contínuo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, a partir da regulamentação do artigo nº159 pela LC 7827/1989, numa proporção somente vista anteriormente no período do Pós II Guerra. No governo Collor, utilizando-se de políticas neoliberais e social-democratas, vislumbrou-se questões macroeconômicas de curto prazo ou conjunturais, tomando atitudes no sentido de revogações/reduções de impostos e suspensão temporária de benefícios fiscais relacionados diretamente com fundos de financiamento regionais, principalmente do Norte e Nordeste, impactando diretamente na elevação de custos de importação e na paralisação de implantação de projetos.

A descentralização administrativa da Constituição de 1988 gerou uma nova territorialidade que não se limita aos contornos físicos e políticos estabelecidos. Ela também colaborou para a maior autonomia dos municípios que, num contexto mundial de globalização e surgimento de “cidades mundiais”, passam a ocupar papel de destaque no jogo político e econômico do país. O mito de moralidade e autonomia das comunidades, em contraposição à corrupção e degradação dos Estados, enraizado no neoliberalismo dos anos 1980, colabora para um fortalecimento municipalista em contraponto à intensificação da ação estatal, dificultando a ampliação do debate regional e de médio e longo prazo que, para Nabuco, passa necessariamente pela existência de um Estado fortalecido. O municipalismo não dá conta, sozinho, de resolver questões que ultrapassam os limites estabelecidos e, mesmo questões que aparentemente dizem respeito apenas à questão individual da cidade, impactam e são impactadas pelo contexto regional em que está inserida. 

Concluindo o artigo, Nabuco reforça que, após quase 50 anos de políticas regionais no Brasil, em meados da década de 1990 se observava uma paralisia na agenda dos governantes em relação a tais políticas, motivada por razões globais (reestruturação da divisão internacional do trabalho) e nacionais (descentralização administrativa da constituinte, escassez de recursos e redução do papel do Estado). A questão latente deixada pela autora, passa pelo dilema acerca da possibilidade de convivência entre capitalismo e democracia, e pelos desafios de governabilidade enfrentados pelos municípios, convertidos em “quase-estados”, tamanha importância a eles conferidos. Para os dias atuais, tanto os dados históricos sistematizados, quanto a discussão acerca do histórico de planejamento regional no Brasil colocados por Nabuco, colaboram para uma visão mais ampla acerca do tema, principalmente num momento histórico em que se vê cada vez mais a necessidade de desenvolver planos regionais, ao mesmo tempo em que se discorre sobre o assunto muitas vezes sob uma lente municipalista. Os problemas colocados pelas questões regionais do Brasil, seja da fragmentação territorial como discutido por Francisco de Oliveira (1993), seja dos desafios impostos pelo aumento das interligações físicas e virtuais entre diversas cidades, demandam instâncias supra-municipais integradas às diversas escalas envolvidas, ao mesmo tempo em que garanta a participação, a transparência e o controle populares no nível local.

Num contexto de adoção de políticas de austeridade fiscal e de abraço a políticas ultraliberais (MELLO, 2021), após um período de crise política e econômica, o Brasil se encontra no início do século 20 com grandes dificuldades no sentido de estabelecer o terreno favorável para desenvolvimento e aplicação de programas regionais. Comandado por um governo de extrema-direita, que governa por decreto e distribui verbas através de orçamentos secretos, colocam grandes entraves à possibilidade de organização de Estados e municípios, cada vez mais impelidos a buscar recursos por outras fontes e estimulados a acirrar a concorrência entre si através da guerra fiscal. Nesse cenário de acirramento das disputas, pavimentar caminhos de interseção torna-se um imperativo para possibilitar a construção de agendas políticas e econômicas que pautem o planejamento regional no Brasil.

Referências

MELLO, G. O fracasso do ultraliberalismo. Fundação Perseu Abramo. Revista Focus Brasil.  n. 24, 23 a 29 de agosto de 2021, p. 30-34.

NABUCO, Maria Regina. A (des)institucionalização das políticas regionais no Brasil. etc… espaço, tempo e crítica, nº2 (6), vol 1, 2007.

OLIVEIRA, F. A questão regional: a hegemonia inacabada. Estudos Avançados, 7 (18), 1993.