Gênero e Planejamento Urbano e Regional: perspectivas de integração

 

Imagem: Raquel Isidoro e Glaucy Herdy

 

Boletim nº 68, 29 de março de 2023

 

Por Glaucy Herdy¹ e Raquel Isidoro²

No mês de março, a partir dos atos e discussões puxados por movimentos feministas do mundo todo pelo conhecido #8M – que marca o Dia Internacional das Mulheres – toda a sociedade tem a oportunidade de rememorar a luta histórica das mulheres pela igualdade, bem como de refletir sobre os desafios ainda colocados no presente. O acúmulo histórico e teórico existente hoje, possibilitado pelo grande esforço das militantes pela liberdade feminina, nos permite afirmar categoricamente que não há nada de natural que justifique a posição de subalternidade e inferioridade a que foram – e ainda são – submetidas as mulheres nas sociedades. 

O que existe, de fato, é um longo, duradouro e perpétuo processo de diferenciação entre masculino e feminino, com a construção de subjetividades e corporeidades desenvolvidas a partir da lógica de dominação, exploração e expopriação patriarcal e heteronormativa, que não somente congelou as diferenças entre os corpos, mas adicionou um conjunto de qualidades adjetivas, hierarquias, e valores sobre cada um desses, sempre opostos entre si. Os pares de conceitos tais como público/privado, racional/natural, individual/coletivo, são exemplos de dicotomias e relações binárias utilizadas de diversas maneiras, e por centenas de anos, para justificar e reforçar as diferenças e lugares destinados aos sexos na sociedade. 

Essa construção social discursiva, tão materializada e entranhada na vida cotidiana, encontrou um de seus pontos de apoio na produção do conhecimento. Há uma naturalização dissimulada da condição inferior das mulheres presente nas histórias míticas gregas, na Bíblia, no Corão, na filosofia chinesa de Confúcio, no pensamento racional de Pitágoras e Darwin, na filosofia ocidental de Aristóteles e Rousseau, na psicanálise de Freud, tudo isso integrando com múltiplos setores da vida em sociedade, inclusive no campo do Planejamento Urbano e Regional. Há ainda uma imposição do padrão universal como sendo masculino, isto é, há a construção de um mundo onde tudo, desde manequins de teste de colisões, coletes à provas de balas, balcões de cozinhas ou smartphones, até a regulação da temperatura do escritório, são projetados, testados e definidos de acordo com o padrão determinado pelas necessidades corpóreas e culturais dos homens. 

Nas cidades, a medida masculina como padrão simbólico não fica de fora. Leslie Kern (2021), aponta que as diretrizes para projetos urbanos pressupõem uma “pessoa padrão”, cuja altura, peso e área correspondem às médias de um homem branco cisheteronormativo adulto. Essa é a base repetida por séculos a fio: a ladainha da sujeição feminina, da diferença de sexo, onde os valores e as necessidades ditas masculinas são universais, padrões e superiores, e a feminilidade é tida como inferior, exclusiva e particular. Contudo, o próprio discurso revela o que está oculto: se a dominação masculina não é um dado natural, ela pode ser cultural e socialmente revertida. 

Sabendo, então, do importante papel do a produção de conhecimento na manutenção ou ruptura com as desigualdades de gênero, aproveitamos essa oportunidade do mês de Março para sublinhar a importância da integração das epistemologias feministas para o campo do Planejamento Urbano e Regional (PUR), entendendo que a disputa na arena acadêmica é, também, uma forma de buscar mudança de paradigmas no cenário prático a partir do fazer teórico. Além do mais, os saberes feministas colaboram para expor a ilusão de que a teoria e a prática do planejamento urbano são puramente técnicas, universais, abstratas, incorpóreas. Desse modo, aqui, temos o objetivo de questionar: como o campo inter-multidisciplinar do Planejamento Urbano, tem construído uma abordagem prática e teórica de gênero? De que modo as epistemologias feministas vêm sendo incorporadas no campo? De que maneira a luta histórica dos movimentos feministas e de mulheres atravessa as ações desse campo? 

É possível começar esse debate afirmando que, ao realizarmos uma revisão bibliográfica nas principais bases de dados acadêmicas do Brasil, percebemos que, apesar de a interlocução entre os estudos de PUR com as teorias feministas e de gênero estarem ganhando mais espaço, há ainda grandes lacunas a serem preenchidas, e um vasto campo de trabalho a ser investigado. 

É louvável levar em consideração os esforços recentes da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (ANPUR) em organizar o debate de gênero no campo, primeiramente com a realização do chamamento de publicações para o Dossiê Temático Território, Gênero e Interseccionalidades da Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais (RBEUR) em 2020, que resultou em uma rica coletânea de trabalhos. Mais recentemente, podemos citar a inclusão de uma Sessão Temática de “Gênero, etnia e diversidade no campo e na cidade” para o próximo Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (XVIII ENANPUR) que está previsto para acontecer em Belém – PA, em maio de 2023. Esse é um fato inédito, tendo em vista que nas edições anteriores do evento, houve o entrelaçamento entre as teorias feministas e as problemáticas urbanas e regionais, mas subdivididos em sessões temáticas mais amplas, ou categorizados em temas tangentes, como “cultura” e “insurgências no planejamento”. Isto significa que a inserção de uma sessão temática dedicada e articulada ao debate interseccional de gênero e diversidade é um fato inédito para o nosso campo. 

Outro exercício de levantamento e análise realizado, foi um rápido olhar sobre algumas produções acadêmicas da comunidade do IPPUR. Ao buscar a palavra “gênero” no corpo de periódicos lançados pelo Cadernos IPPUR3 não obtivemos nenhum resultado, enquanto a mesma busca realizada na seção “Biblioteca” do site do núcleo de pesquisa INCT Observatório das Metrópoles4, resultou em 24 publicações, que se iniciaram apenas a partir do ano de 2010, demonstrando a atualidade do debate. No entanto, dessas 24 publicações há uma variedade de formas com que o termo gênero foi utilizado: 4 utilizam a palavra gênero no substantivo, como sinônimo de categoria; outras 4, a palavra gênero apenas aparece no corpo do texto, mas não faz parte da discussão; 8 usam o conceito de gênero, mas de maneira tangencial, como “questões de gênero” ou para salientar particularidades de dados sócio demográficos; por fim, e somente a partir do ano de 2017, 8 trabalhos cujo enfoque se dá a partir da literatura especializada do debate de gênero, sexualidade e feminismos transversalizando às problemáticas de PUR. 

Com esse pequeno recorte, podemos perceber que há um crescente e recente interesse no debate de gênero ligado ao PUR, com um apontamento importante para o surgimento de trabalhos acadêmicos que tratem diretamente do debate feminista de gênero no campo, principalmente a partir do ano de 2017. Vale destacar nesse rol a tese de doutorado de Diane Helene (HELENE RAMOS, 2015), desenvolvida no IPPUR, orientada pelas professoras Soraya Simões e Ana Clara Torres Ribeiro, que recebeu em 2017 o Prêmio CAPES de melhor tese na área de Planejamento Urbano Regional, e foi publicada em formato de livro em 20195. A própria criação do Núcleo de Pesquisa em Gênero, Espaço e Políticas Públicas (NUGEPP/IPPUR) no ano de 2019, confirma a demanda pelo debate, e a atualidade de inserção dessa agenda no campo. 

Diante desse cenário, surgem outros questionamentos: como esse debate está sendo inserido no tripé de ensino, pesquisa e extensão do campo de PUR? Estão sendo tratadas as “questões de gênero e sexualidades” como apêndices, meras externalidades a serem percebidas, ou incorporadas transversalmente ao currículo tradicionalmente interdisciplinar que compõe o Planejamento Urbano e Regional? Onde se inserem as diversas categorias corporais, sexuais e territoriais no campo de PUR? Qual a responsabilidade do nosso campo profissional em transformar – ou manter – as desigualdades e injustiças enfrentadas por mulheres e demais minorias sociais? Como o PUR pode contribuir para desenvolver ferramentas teóricas e práticas que colaborem na construção de uma sociedade baseada na igualdade e equidade de gênero? 

As planejadoras, arquitetas e urbanistas feministas, que vêm desde pelo menos a década de 1980 criticando o saber/fazer de PUR já alertavam para a ausência das mulheres nesse campo, e também para a forma como o racionalismo e o tecnicismo do olhar masculino sobre o fenômeno urbano, impactam diretamente na vida cotidiana das mulheres nas cidades (AGREST, 1988; HAYDEN, 1980; SANDERCOCK e FORSYTH, 1992; 1996; SNYDER, 1995). Nesse sentido, é impossível não se recordar do irônico alerta dado por Jane Jacobs, ainda na década de 1960, em seu livro Morte e Vida das Grandes Cidades, um cânone da teoria de PUR: 

Planejadores e projetistas são, em sua maioria, homens. Estranhamente, eles criam projetos e planos que desconsideram os homens como integrantes da vida diária e normal de onde quer que haja moradias. Ao planejar a vida residencial, o objetivo deles é satisfazer as pretensas necessidades cotidianas de donas de casa ociosas e criancinhas em idade pré-escolar. Resumindo, eles fazem projetos estritamente para sociedades matriarcais (JACOBS, 2011, p. 65). 

A realidade é que os movimentos feministas, e toda a carga de saberes acumulada deles, têm muito a contribuir para uma mudança de paradigma no saber/fazer de PUR. A história dos movimentos feministas e de mulheres diversas vezes se embaraça na busca pelo direito à cidade, tendo elas ocupado a linha de frente das lutas populares por direitos e melhores condições de vida, seja nos espaços públicos e privados, nas ruas, nas redes, no território, na ciência. Quando reivindicam moradia e transporte de qualidade, acesso à terra, aos recursos naturais e a justiça social, quando combatem a fome e a desvalorização do trabalho do cuidado, e reivindicam acesso ao trabalho, educação e à inserção na vida política, quando bradam pela destruição dos tetos de vidro e o fim da LGBTQIA+fobia, pela defesa do ecossistema e por políticas públicas de cuidado e de valorização da vida, estão também lutando por usufruir e construir livremente as cidades em sua totalidade, nos mesmissimos termos colocados por David Harvey (2012) e Henri Lefebvre (2001). 

Entendemos que o planejamento e a forma urbana não criam por si só as múltiplas opressões, mas, são estruturas estruturantes (BOURDIEU, 1996) ativas desse ciclo, por isso, se queremos mudar as respostas e os resultados, é preciso mudar as perguntas, ações e o modo de fazer. As análises e soluções dadas em relação ao crescimento das cidades até hoje não foram capazes de minimizar uma série de problemas e violências nos espaços urbanos públicos e privados. Tendo em mente que em torno de 50% da população mundial que vive em cidades são mulheres, segundo o World Cities Report da ONU-Habitat (UN-HABITAT, 2022), é importante a inclusão dessa importante parcela da população em processos participativos, diversos e plurais, de forma ativa, e em todas as etapas. 

Nosso modelo de pensar e construir as cidades têm negligenciado as experiências de mulheres e demais populações vulnerabilizadas. É preciso integrar essas perspectivas para repensar os problemas urbanos. Há que se possibilitar uma maior abertura no campo do planejamento para receber esses novos saberes, práticas, léxicos e teorias oriundas do acúmulo dos movimentos feministas, tendo em vista o seu potencial de transformar e radicalizar a epistemologia em que se baseia o Planejamento Urbano e Regional, vislumbrando utopias outras de se projetar as cidades e as vivências territoriais. 

Uma alternativa imediata e parcial, poderia ser o aumento da oferta de cursos e disciplinas que lidem transversalmente com os marcadores sociais da diferença e desigualdade por gênero, sem, no entanto, se limitar a simplesmente adicionar “um pouco de cor, um pouco de classe, um pouco de idade, um pouco de sexualidade, um pouco de religião… e misture bem!” (BUTLER, 2003 apud DORLIN, 2021, p.95). Dessa forma, os profissionais precisam abordar, escutar e implementar ações que não sejam apenas para mulheres num sentido universalizante da categoria, como “um planejamento para mulheres” e sim, questionar “como o planejamento aparentemente tão profundamente envolvido em projetos distintamente masculinos pode ser usado para fins justos e democráticos?”. Podemos nos valer, também, de aplicações teóricas e práticas de projetos e ações que possam favorecer, melhorar e ampliar a experiência das mulheres e de populações marginalizadas na cidade, no campo, no mundo. É uma proposta de revisão dos valores, crenças e concepções de conhecimento para o nosso campo. 

Portanto, é preciso refletir sobre a importância de se desenvolver um espaço, dentro do campo de PUR, para escuta dessas novas perspectivas, de forma a não reduzi-las a apenas uma apêndice ou um recorte, e sim como novos ventos soprando pela revisão epistêmica que, há muito, está fechada para esses corpos. Não há possibilidade de transformação urbana que não incorpore, e enfrente verdadeiramente, as abordagens dos movimentos feministas e de mulheres – cis e trans-, sem a abertura do espaço considerando as vozes, as experiências e as agências dessa grande parcela da população em todas as dimensões do pensar as cidades. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 

AGREST, Diana I. Architecture from without: body, logic and sex. Assemblage, n. 7, 1988, pp. 29–41. JSTOR. 

BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: Sobre a teoria da ação. Campinas: Papiros, 1996. 

DORLIN, Elsa. Sexo, gênero e sexualidades. São Paulo: crocodilo/Ubu editora, 2021. 

HARVEY, David. Cidades Rebeldes. São Paulo: Martins Editora, 2012. 

HAYDEN, Dolores. What Would a Non-Sexist City Be Like? Speculations on Housing, Urban Design, and Human Work. Signs, v. 5, n. 3, 1980, pp. 170–187. JSTOR. 

HELENE, Diana. “PRETA, POBRE E PUTA”: a segregação urbana da prostituição em Campinas – Jardim Itatinga. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2015, 334 f. 

JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. 3ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. 

KERN, Leslie. Cidade Feminista: A luta pelo espaço em um mundo desenhado por homens. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2021. 

LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. [1968]. São Paulo: Centauro, 2001. 

SANDERCOCK, L.; FORSYTH, A. A gender agenda: new directions for planning theory. Journal of the American Planning Association, Chicago, v. 58, n. 1, p. 49-59, Winter 1992. 

SANDERCOCK, Leonie; FORSYTH, Ann. Feminist theory and planning theory: the epistemological linkages. In: Campbell, Scott; Fainstein, Susan. Readings in planning theory. Malden/Mass, Blackwell Publishers, 1996, pp. 471-478 

SNYDER, Mary G. Feminist theory and Planning theory: lessons from feminist epistemologies. Berkeley Planning Journal, n.10, 1995, pp. 91-106. 

UN-HABITAT. World Cities Report 2022. ONU: United Nations Human Settlements Programme, 2022. 

 

1 Mestranda do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ) e pesquisadora do NUGEPP.
2 Doutoranda do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), pesquisadora do LABESPAÇO e do NUGEPP.
3 Periódico direcionado ao público acadêmico interdisciplinar e editado entre 1986 e 2009 pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/UFRJ. Disponível em <https://revistas.ufrj.br/index.php/ippur>, acesso em 06 de fevereiro de 2023.
4 O INCT Observatório das Metrópoles é um núcleo de pesquisa de trabalho em rede, integrado a um conjunto de mais de 100 centros de excelência do país, e que foi criado no âmbito de um projeto de parceria realizado entre o IPPUR e o PROURB na década de 1980. Busca realizada no site <https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/biblioteca-digital/>, em 06 de fevereiro de 2023
5 HELENE RAMOS, Diana. Mulheres, direito à cidade e estigmas de gênero: a segregação urbana da prostituição em Campinas. São Paulo: Annablume, 2019.