Justiça de dados na gestão urbana do Rio de Janeiro

Boletim nº 87, 09 de junho de 2025
Lalita Kraus – docente do IPPUR e coordenadora do Grupo Rastro
Tomás Donadio – docente e pesquisador do IPPUR, pesquisador do Grupo Rastro
Adenilson Santos – docente na UFRRJ, pesquisador do LabEspaço
Ramon Carnaval – subsecretário da SEOP, pesquisador do Grupo Rastro
Como resultado de uma das suas linhas de pesquisa – incorporação da pauta tecnológica na agenda política, o grupo de pesquisa Rastro1 (IPPUR) publicou um novo artigo na revista Journal of Urban Affairs (Taylor and Francis). No estudo, Lalita Kraus, Tomás Donadio, Aldenilson Santos e Ramon Carnaval pesquisam os sistemas de gestão de relacionamento com os cidadãos (Citizen Relationship Management, CiRM) que operam no urbanismo movido a dados através da lente da justiça de dados. Os autores2 abordam questões sobre como os dados são gerados, analisados e processados no estudo de caso sobre o 1746 da Prefeitura do Rio, apontando quem se beneficia ou é excluído pelas dinâmicas do sistema e como os dados se relacionam com uma agenda mais ampla de justiça social. O artigo está disponível no site da revista, que pode ser acessado neste link. Leia abaixo um resumo da pesquisa.
O Rio de Janeiro continua investindo significativamente para se tornar uma capital inteligente e inovadora, tendo a plataforma 1746 como um dos pilares dessa estratégia, assim como o Centro de Operações do Rio, o Porto Maravilha e o Maravalley, por exemplo. Alinhada ao princípio da Gestão de Alto Desempenho em governança urbana, a plataforma 1746 facilita solicitações e reclamações de serviços, permitindo que os cidadãos se conectem com o município por meio de múltiplos canais de comunicação. Este sistema visa gerar refleões valiosas para o aprimoramento da gestão urbana. Contrariando visões positivistas da tecnologia, este estudo destaca o surgimento de novas dimensões tecnopolíticas de injustiça vinculadas à gestão do fluxo de dados. Metodologicamente, a pesquisa adota uma abordagem de estudo de caso, integrando métodos quantitativos e qualitativos, como mineração de dados, análise geoespacial, entrevistas e análise de conteúdo. Os resultados da pesquisa revelam que o sistema tem capacidade limitada para democratizar a governança urbana no Rio de Janeiro. Embora facilite a comunicação entre os cidadãos e a prefeitura, deixa a desejar em influenciar o planejamento urbano de longo prazo, promover a inclusão de grupos marginalizados e abordar as estruturas sociais subjacentes.
A agenda das cidades inteligentes adotou e moldou discursos baseados em dados, continuando a influenciar agendas urbanas no Sul Global por meio de projetos, programas e políticas baseadas no entusiasmo tecnológico. No Brasil, a publicação da Carta Brasileira de Cidades Inteligentes em 2020 e da Política Nacional de Cidades Inteligentes marcaram o primeiro esforço para federalizar a agenda e desenvolver uma estratégia nacional. No Rio de Janeiro, a jornada rumo a uma cidade inteligente tem sido um projeto político em andamento nos últimos 15 anos, desenvolvendo-se no contexto de megaeventos que atuaram como catalisadores para investimentos tecnológicos e para a adoção de estratégias e políticas globais de inovação na governança urbana local.
Embora o urbanismo movido a dados prometa eficiência, transparência e alto desempenho, também suscita preocupações críticas em relação à justiça de dados, especialmente no contexto do Sul Global. A crescente dependência de tecnologias orientadas por dados está remodelando a forma como o conhecimento é adquirido, as interações sociais são formadas e as ações são tomadas, com implicações sociais de longo alcance. Considerando que a coleta e o uso de dados estão inerentemente vinculados a interesses específicos, dinâmicas de poder e ideologias, a abordagem da justiça de dados fornece uma compreensão fundamentada da dataficação, contextualizando e integrando dados a uma agenda mais ampla de justiça social. Sua aplicação destaca a desigualdade da dataficação e as desigualdades inerentes às suas manifestações, não apenas em relação aos direitos e oportunidades individuais, mas também dentro de estruturas sociais mais amplas.
Os aparatos do urbanismo movido a dados estão sujeitos a danos que exacerbam desequilíbrios de poder, aprofundam desigualdades e reforçam a discriminação. A transformação dos sistemas de conhecimento e as consequentes mudanças nas operações governamentais podem, por exemplo, restringir o acesso a serviços e benefícios essenciais. Simultaneamente, a falta de transparência e a presença de pontos cegos criam condições nas quais as variáveis e os conjuntos de dados que sustentam os sistemas de governança podem contribuir para a marginalização de grupos sociais ou regiões geográficas específicas. Na esfera da tomada de decisão urbana, a governamentalidade algorítmica — impulsionada por sua lógica preditiva — despolitiza a governança ao gerenciar os efeitos dos problemas sociais em vez de abordar suas causas estruturais, com uma priorização típica da eficiência em detrimento da equidade. Ela reduz a complexidade das realidades sociais ao se basear em análises estatísticas de comportamentos passados. Portanto, a justiça de dados é uma estrutura conceitual essencial para analisar e identificar aspectos sociotécnicos da dataficação da gestão de serviços públicos, reforçando ou diminuindo (in)justiças.
Dentro da estrutura conceitual de justiça de dados, cinco dimensões são descritas na literatura: processual, referente à justiça nos processos pelos quais os dados são coletados e utilizados; instrumental, referente à contribuição positiva dos dados para os resultados sociais; distributiva, centrada na distribuição equitativa dos benefícios dos dados; reconhecimento, compreendendo o reconhecimento de grupos sociais nas práticas de dados; e representativa, referente à representação precisa de diversos grupos na participação política e na tomada de decisões.
Na análise, podemos destacar a justiça distributiva, que aborda a alocação justa dos benefícios derivados dos dados. No caso do CiRM do Rio, a pesquisa revelou que, embora o sistema seja direcionado para territórios de alta renda, a prefeitura está pouco preocupada com a desigualdade na prestação de serviços. A análise do mapa, que georreferencia as solicitações de cidadão através do sistema 1746 e o Índice de Desenvolvimento Social (IDS) nos bairros e zonas do Rio de Janeiro, indica que as solicitações estão predominantemente concentradas em áreas com alto IDS. A maioria das solicitações, representada em amarelo, concentra-se principalmente na próspera Zona Sul, bem como no centro da cidade e nas regiões centrais da Zona Norte. Quanto mais nos afastamos dessas áreas geográficas selecionadas, menor é a utilização do serviço 1746. A distribuição geográfica desigual das solicitações revela um sistema de dados que contribui para concentrar a intervenção pública em regiões que já se beneficiam de serviços públicos, reforçando a exclusão das áreas mais pobres e marginalizadas da cidade.

Relação entre solicitações de cidadãos ao canal 1746 e índice de desenvolvimento social. Fonte: Grupo rastro
Concluímos, portanto, que a pesquisa aprimora a compreensão dos principais e intrincados emaranhados sociais dos sistemas de gestão urbana CiRM, que podem ser resumidos da seguinte forma: (a) ao fortalecer a comunicação entre a prefeitura e a população, os benefícios do sistema são distribuídos de forma desigual entre as linhas sociais e geográficas, perpetuando injustiças socioespaciais de longa data; (b) o poder dos dados para impulsionar a mudança social é limitado, pois o sistema obscurece o clientelismo e os interesses políticos, mascarando ineficiências e injustiças, ao mesmo tempo em que prioriza o desempenho e a estética; (c) a transformação social estrutural é limitada por um sistema que prioriza e enfatiza o fluxo de informações a montante — ou seja, a coleta, o encaminhamento e o monitoramento de demandas — enquanto o fluxo a jusante, incluindo a análise e a aplicação de dados para aprimorar o planejamento urbano e as políticas públicas, permanece focado principalmente em atingir metas institucionais, como a marca (branding) da cidade; (d) a justiça social não é a prioridade do sistema, em vez disso, ele enfatiza a manutenção de um ambiente urbano operacional e eficiente.
Esses resultados revelam, por um lado, que examinar como os dados são gerados, analisados e utilizados em sistemas de gestão urbana desvela sua relação com a representação social, a justiça e os resultados sociais na prestação de serviços públicos. Em geral, as deficiências, contradições, tensões e atritos do caso revelam um uso instrumental de dados — que ignora a transparência institucional e a distribuição equitativa dos serviços públicos — e uma estrutura social que impede benefícios equitativos para toda a população. Por outro lado, a estrutura de justiça de dados reforça que a justiça não se refere apenas à forma como a população acessa os serviços públicos, mas também à racionalidade que norteia os sistemas de dados. Portanto, a instrumentalização de dados no Rio de Janeiro deve ser entendida como parte de uma cultura de gestão urbana, política e simbolicamente incorporada na figura do prefeito Eduardo Paes, que prioriza a eficiência, a racionalização dos serviços públicos e práticas orientadas a resultados. Essa agenda ideológica promove interesses e estruturas de poder que moldam e influenciam o desenvolvimento e a gestão do 1746, limitando sua capacidade de atender totalmente às demandas sociais e potencialmente contribuindo para a manutenção ou mesmo o agravamento das injustiças urbanas.
1. Rastro é um núcleo de ensino, pesquisa e extensão em tecnopolítica e justiça socioespacial, vinculado ao Labespaço, no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ. Linhas de pesquisa: 1) Incorporação da pauta tecnológica na agenda política; 2) Lutas tecnopolíticas no território. Instagram: www.instagram.com/rastroufrj. Site oficial: www.rastroufrj.com.br.
2.
Lalita Kraus é professora assistente na graduação e pós-graduação do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ela é a coordenadora do Rastro. Temas de pesquisa relacionados a tecnologias urbanas, modelos urbanos inteligentes, digitalização e desigualdades socioespaciais.
Tomás Donadio é professor e pesquisador do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) e doutor em Estudos de Desenvolvimento pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL). É membro dos grupos de pesquisa Rastro (UFRJ), Urban Transitions Hub (ULisboa) e Jararaca (PUC/PR).
Aldenilson Santos é professor assistente da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Geógrafo (Universidade Federal do Tocantins), mestre e doutor em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ) e doutor em Geografia (Universitat Autònoma de Barcelona). Pesquisador do LabEspaço, pesquisa os impactos das tecnologias de informação e comunicação na vida cotidiana e a (re)configuração de pequenas cidades diante da globalização.
Ramon Carnaval trabalha na Prefeitura do Rio de Janeiro como subsecretário de planejamento estratégico e projetos especiais da Secretaria Municipal de Ordem Pública e foi coordenador do Datalake do Escritório de Dados. É pesquisador do Rastro (UFRJ), mestre em planejamento urbano e regional e doutorando do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR-UFRJ).