O segredo sobre o gasto público que a pandemia revelou para o mundo
Boletim nº 24 – 11 de junho de 2020
Por Beatriz Gomes, Daiane Sousa, Maria Fernanda Fontenele e Mayara Pinheiro¹
A segunda live do Ciclo de Debates IPPUR, ocorrida na última segunda-feira (02/06) no YouTube, foi apresentada pelo doutorando do IPPUR/UFRJ Rodrigo Portugal e contou com a presença dos professores do IPPUR/UFRJ: Daniel Conceição, doutorando em Economia e Ciências Sociais pela University of Missouri (Kansas City) e um dos autores do livro “Teoria Monetária Moderna”, e com Kaio Pimentel, doutor em Economia da Indústria e da Tecnologia pela UFRJ, com a pesquisa intitulada “Ensaios sobre política fiscal, demanda efetiva e finanças funcionais”.
Com o tema “O segredo sobre o gasto público que a pandemia revelou para o mundo”, a live contou com mais de oitenta participantes. Assim, tanto pessoas do meio acadêmico quanto de fora puderam assistir ao vivo um debate com especialistas em política fiscal.
Com o contexto da maior crise sanitária desde a Gripe Espanhola (1918-1920), a discussão sobre o futuro da economia no Brasil tem sido pauta de diversas frentes políticas e preocupação geral de toda a população brasileira. Na live, Conceição descreveu como o governo precisou aumentar muito os seus gastos, em um momento no qual a arrecadação de impostos caiu substancialmente, para amenizar os efeitos econômicos da pandemia. A importância do gasto público é defendida, principalmente, a partir da atuação do Estado como transferidor de renda, em um momento de recuo da economia, uma vez que o cidadão com dinheiro poderá continuar consumindo o que ainda pode ser produzido.
Conceição apresenta que, antes da pandemia, o entendimento de que o Estado não precisava se preocupar com os gastos até certo ponto, ou seja, até o limite da inflação era visto como insensatez. A partir do quadro crítico desenvolvido ao longo da quarentena, a população deixou de lado essa visão limitada e, assim, Daniel Conceição defende a importância do gasto público e afirma que, após a pandemia, será inevitável que os Estados aprendam sua necessidade ativa, independente da arrecadação. O pesquisador aponta que, por conta da pandemia, a “Teoria Monetária Moderna” veio à tona e o mundo precisou admitir que o discurso dos Estados não poderem emitir moeda é falacioso, tendo em vista que o Banco Central sempre pode financiar o gasto deficitário do governo federal de qualquer tamanho. Casos ao redor do mundo assim ocorreram, como nos EUA, cujo Federal Reserve System (Fed) emitiu base monetária para conter o colapso do sistema financeiro, inclusive através da oferta de empréstimos a governos municipais. Mesmo na Inglaterra a cultura de austeridade não impediu o financiamento em massa de políticas públicas no combate ao Covid-19 pelo Banco da Inglaterra.
Por conseguinte, a “Teoria Monetária Moderna” molda-se a partir do entendimento diferenciado sobre moeda, permitindo imaginar políticas fiscais de acordo com a realidade social e econômica, ao passo que encontra o equilíbrio sobre as demandas socioeconômicas que a atual crise sanitária requer. Conceição alega, então, ser necessário pensar a economia em função de dois fatos pouco conhecidos. Primeiramente, deve-se reconhecer que o Banco Central (Bacen) pode criar recursos para satisfazer as necessidades do Tesouro Nacional. Por isso, os Estados podem gastar mais do que arrecadam. Afinal, a moeda é uma relação contratual, ou seja, uma relação de crédito estabelecida entre o Estado e a sociedade.
A fala inicial de Daniel Conceição conclui que entender o que é moeda compõe entender que a moeda em si é uma dívida pública, e portanto o endividamento estatal é uma inevitabilidade em uma economia monetária. O problema não é se o Estado terá dinheiro para gastar, pois é ele quem emite a moeda, todavia a preocupação deve ser com a aplicação dos recursos e a formulação de políticas públicas já que a má compreensão sobre a definição de dinheiro e sobre a natureza dos títulos públicos limita a ação estatal.
Kaio Pimentel dá continuidade sobre a ideia de como o debate econômico, no Brasil, está se desenrolando e aponta que, por mais que compartilhe com Daniel Conceição sobre o fato do Estado brasileiro não ser fiscalmente restrito, existem diversos posicionamentos acerca. Com isso, os economistas que sempre defenderam austeridade estão mirando no pós-pandemia. Muitos aceitam que deve haver uma expansão dos gastos públicos deficitários para enfrentar a pandemia, mas sem abandonarem a ideia de que será necessário equilibrar as contas públicas no futuro.
É importante frisar que, para Pimentel, foi crucial o fato do governo suspender as atuais medidas que regulam as políticas fiscais do país, a partir do reconhecimento do estado de calamidade pública e o teto dos gastos (EC 95), para que o Estado brasileiro pudesse dar resposta à pandemia.
Partindo-se de um relativo consenso de que o governo deve agir para combater os impactos econômicos da pandemia, deve-se definir a maneira como o Tesouro Nacional obterá recursos para gastar. Neste caso, há certa controvérsia, pois há quem creia que o financiamento via emissão monetária, por meio do Bacen, teria um custo menor em termos de impacto no nível de endividamento público. No entanto, a ideia de que o déficit público não viraria dívida pública é uma falácia, pois a transformação de base monetária em dívida pública remunerada é regulada pelo setor privado, através da compra e venda dos títulos públicos. Outro fator relevante, apresentado por Pimentel, é a rotatividade do dinheiro na classe trabalhadora, tendo em vista que os mais pobres consomem sua renda integralmente, retornando aos bancos as reservas bancárias que poderiam então ser aplicadas em dívidas públicas remuneradas.
Dado que os economistas em geral concordam na atuação do governo, há quem defenda o retorno das políticas de austeridade no pós-pandemia. Isto significa que o Brasil voltaria a respeitar o teto de gastos e a Lei de Responsabilidade Fiscal, suspensa por conta do decreto de Calamidade Pública. Kaio Pimentel aponta que o governo pediu empréstimos externos para pagar o auxílio emergencial e que, com isso, elabora uma narrativa visando a volta da austeridade, no pós-pandemia. Contudo, a pandemia mostrou que o governo não se encontra quebrado, sendo esta uma falácia utilizada para constranger o gasto público e restringir o espaço para a implementação de políticas. Por conseguinte, o pesquisador aponta que, se o governo suspender as medidas públicas estimulantes, ao fim do estado de calamidade pública, é possível que aconteça uma abrupta queda na reconstrução econômica do país destruído pela pandemia e pela crise ocasionada por ela.
Ao fim do debate, ambos os professores responderam às perguntas dos internautas, dentre elas sobre a possibilidade do risco de inflação, entendido como remoto, pois mesmo num contexto de significativa desvalorização cambial os índices não têm sido afetados, existindo apenas uma mudança relativa nos preços de alguns produtos, como, por exemplo, a inflação de alimentos cuja concentração de consumo está mais alta, devido à quarentena. Contudo, isto não tem contaminado o restante dos preços, apesar da existência de um problema, causado pela desvalorização cambial, em certos produtos, como combustível e custos da indústria, que podem ser repassados ao longo da cadeia produtiva.
Kaio Pimentel aponta, ainda, que o perigo inflacionário derivado de aumento de emissão de moeda é falacioso, tendo em vista a queda da demanda. Daniel Conceição afirma que pressões inflacionárias não são por excesso de demanda agregada, que seria a única razão para um esforço contracionista. Além disso, o país encontra-se em situação de rearranjo de comportamento de gastos individuais como da estrutura produtiva, podendo causar eventos pontuais de inflação, como acontecido no começo da quarentena em produtos como álcool em gel e máscaras cirúrgicas.
Outro questionamento apresentado foi acerca de qual setor seria fundamental no pós-pandemia. Conceição aponta que o esforço mais urgente é aquele que funciona como resposta à crise sanitária. Em segundo momento, a melhor forma de combater os desarranjos pontuais através de políticas públicas não é reduzir gastos, mas apontar os setores críticos, estimulando a produção. De um modo geral, para sair dessa depressão socioeconômica, o professor aponta que o estímulo do setor público deve ser capaz de reverter a queda da demanda privada.
Perguntas sobre a taxação dos mais riscos e de uma Renda Básica Universal também foram abordadas. É uma medida muito bem-vinda do ponto de vista redistributivo (macroeconômico), porém Daniel Conceição aponta que não se deve usar como forma de financiamento para o Estado, visto que não é necessário, já que o Estado pode simplesmente criar mais moeda para gastar, e não seria suficiente para tal objetivo. Sobre a questão de um auxílio permanente, o professor afirma que tais políticas e políticas de garantia de emprego dialogam entre si, pois são formas de colocar dinheiro na mão das pessoas e de mobilizar recursos materiais da economia. Seria importante avançar, assim, na proposta de renda básica, não somente como forma de garantir a sobrevivência das pessoas, mas também para nos preparar para o processo de automatização dos processos produtivos.
Por fim, ao concluir o debate acerca do gasto público durante o período de pandemia e recessão devido à crise sanitária, os professores, é explícita a reflexão acerca das desmistificações de conceitos econômicos falaciosos. O primeiro deles, a teoria de falência do Estado e por último, o conceito de moeda. Sendo assim, a live contribuiu para promover esclarecimentos sobre estes conceitos e sanar confusões acerca do tema durante o cenário de crise sanitária e econômica, enfrentado pelo Brasil atualmente.
Para mais informações, acesse o canal da Agência IPPUR no Youtube e assista a esta e outras lives do Ciclo de Debates, todas as segundas-feiras a partir das 14h.
¹Graduandas do curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (IPPUR/UFRJ).