Publicação do dossiê “Poder Judiciário e conflitos fundiários no campo e na cidade”, na InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais

Boletim nº 86, 07 de maio de 2025

Cecília Café Baldani

Mestranda pelo PPGD/UFRJ

Leonardo Evaristo Teixeira

Doutorando pelo PPGD/UFRJ

A InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, ligada ao Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) e vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília (PPGDH/UnB), criada em 2015 e contando com vinte e duas edições, lançou em 31 de março de 2025 o dossiê “Poder Judiciário e conflitos fundiários no campo e na cidade”, que propõe uma discussão ampla e atualizada a respeito das disputas territoriais, das lutas travadas pelo direito à terra e ao território, pelo direito à cidade, e suas resistências etc.

A temática relaciona os conflitos fundiários e o poder judiciário e encontra-se no escopo temático do periódico, que tem a preocupação de vincular os debates de direitos e direitos humanos aos movimentos sociais e suas lutas, sobretudo, no Brasil e na América Latina.Historicamente, a revista tem publicado, em formato de dossiês, edições dedicadas a debater assessorias jurídicas populares; direito e marxismo; o pensamento jurídico crítico e pesquisa militante na América Latina; questão agrária, conflitos socioambientais, povos e comunidades tradicionais; gênero e sexualidade; direito à cidade; mundo do trabalho; criminologia crítica; direitos das crianças e adolescentes; direito, memória e justiça de transição; direito e relações raciais, entre outros.

Seguindo a linha editorial de trazer pesquisas que se vinculam a um pensamento crítico e  à pesquisa militante no direito, a InSURgência agora publica seu maior dossiê , com “Poder Judiciário e conflitos fundiários no campo e na cidade”, organizado por Mariana Trotta Dallalana Quintans, Erika Macedo Moreira e Hugo Belarmino de Morais. O dossiê contou com a colaboração inédita dos projetos de extensão Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular (NAJUP) Luiza Mahin, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Observatório Interdisciplinar e Assessoria em Conflitos Territoriais (OBUNTU), da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e Observatório Fundiário Goiano (OFUNGO), da Universidade Federal de Goiás (UFG). As contribuições são, assim, oriundas das confluências de saberes produzidos na indissociabilidade do tripé ensino-pesquisa-extensão, em que a prática contribui com a teoria – a qual se reformula a partir das experiências materiais -, e a teoria serve para amparar a intervenção prática comprometida com uma busca por transformação da realidade.

O dossiê traz 21 artigos inéditos, nacionais e internacionais, distribuídos em quatro eixos, quais sejam: Repressão aos conflitos fundiários no contexto da ditadura empresarial-militar brasileira (Eixo 1); Permanências autoritárias e conflitos no campo (Eixo 2); O Poder Judiciário na tensão das lutas populares (Eixo 3); e Lutas territoriais na América Latina (Eixo 4). Somam-se a eles duas entrevistas publicadas na seção “Diálogos InSURgentes”: a primeira com Diego Vedovatto, militante do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra), e a segunda com Maria de Lourdes Alves, militante do MLB (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas). O dossiê também reúne verbetes, expressões poéticas, resenhas e documentos históricos relacionados a conflitos fundiários, além da seção “Em Defesa da Pesquisa”, com 3 artigos em temas diversos.

De forma geral, o dossiê aborda temáticas diversas relativas a conflitos fundiários, que envolvem desde a luta pela terra e pela reforma agrária no campo, como o direito à moradia, à reforma urbana e o direito à cidade, no contexto urbano, e ainda o direito ao território e à demarcação de terras dos povos originários e tradicionais. Dentro desse espectro, apresenta reflexões sobre estratégias, conquistas e dificuldades enfrentadas pelas mobilizações populares nas disputas territoriais (inclusive com trabalhos de pesquisa empírica sobre casos concretos), e sobre como o poder público, e especialmente o Poder Judiciário, tem agido diante de tais conflitos.

Refletir sobre os conflitos fundiários e os desafios impostos na atualidade é central para se pensar a concretização de um projeto democrático no Brasil, considerando que a garantia dos direitos fundamentais à terra, ao território e à moradia são basilares para a efetivação da cidadania.

As disputas por território por meio das ocupações – urbanas ou rurais – são uma importante estratégia de luta e mobilização popular para interpelar o poder público para a concretização da reforma agrária e da reforma urbana, já previstas no texto constitucional (respectivamente, nos art. 186, art. 182 e 231 da Constituição Federal de 1988). Especificamente, uma discussão quanto ao panorama das ocupações da região central da cidade do Rio de Janeiro está presente no artigo “Práticas Insurgentes pelo Direito à Moradia: panorama das ocupações na área central do Rio de Janeiro”, produzido por membros do IPPUR, que também contribuíram com outras produções para o dossiê.

Outras contribuições do dossiê se dedicam ao direito originário à terra dos povos indígenas, quilombolas e demais povos tradicionais e à demarcação de seus territórios, previsto no art. 231 da CF/88 e no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Tais direitos também encontram dificuldades de efetivação, principalmente diante dos desafios advindos da criação de conceitos, como o “marco temporal”, e da consolidação de interpretações normativas hegemônicas que acabam por limitar o acesso desses povos à terra e aos territórios1.

Os exemplos citados demonstram como os conflitos fundiários emergem da ausência de políticas públicas efetivas para a garantia do direito à terra, ao território, à reforma agrária, no campo, e à moradia e à reforma urbana, nas cidades. É nesse cenário que também emerge a reflexão quanto ao papel do Estado e, mais especificamente, do Poder Judiciário, e demais atores responsáveis pelo cumprimento da reforma agrária e política habitacional. 

O dossiê se dedica a esse tema ao tratar, por exemplo, das Comissões de Soluções Fundiárias, importante espaço no Poder Judiciário para resolução dos conflitos fundiários coletivos, cujos incidentes prevêem a realização de visitas técnicas nas ocupações e de audiências de mediações ou conciliações, a serem realizadas obrigatoriamente antes de eventual despejo, permitindo (ou ao menos criando possibilidades) para uma análise mais aprofundada do conflito e de maior escuta dos ocupantes. Sua criação se tornou obrigatória em todos os Tribunais de Justiça Estaduais e Federais, conforme a Resolução n. 510/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que reafirmou a previsão da Quarta Cautelar da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 828 do Supremo Tribunal Federal (STF)2.

Discutir essa temática se revela ainda mais importante na atual conjuntura político-social, que impõe novos desafios na superação de uma histórica concentração fundiária, principalmente diante do fortalecimento de grupos em defesa da permanência da lógica proprietária e do latifúndio (tal como, por exemplo, o grupo denominado de “Invasão Zero”, com atuação no Congresso Nacional, também abordado em materiais deste dossiê3).

Como se vê, o dossiê traz uma diversidade de temas que envolvem a luta por terra, por reforma agrária, por demarcação dos territórios dos povos originários e tradicionais, assim como por direito à moradia, à reforma urbana, e o direito à cidade, nessa gama de disputas e conflitos territoriais, em uma perspectiva de construção do conhecimento interligada com a práxis.

Por fim, a edição também veicula importantes documentos históricos na seção “Práxis de Libertação”, que tem por objetivo socializar documentos, argumentos jurídicos e táticas processuais que possam contribuir com advogados e advogadas populares e com movimentos sociais das diversas regiões do país que lutam pelo direito à terra e à moradia, contra a criminalização e a violação de direitos humanos. 

O dossiê está disponível para consulta na página da revista e e também pode ser acessado  na íntegra neste link.

Convidamos todas, todos e todes à leitura e ao debate! Confira.

 

1 Sobre a luta pelo território indígena no Rio de Janeiro, o dossiê traz, por exemplo, o conflito territorial indígena urbano, em solo carioca, da Aldeia Maraka’ná, no artigo “Disputas pela cidade: o caso da Aldeia Maraka’ná”; ou ainda, a respeito do conflito territorial em terras da União, como no caso da comunidade quilombola da Ilha da Marambaia (RJ), no período da ditadura, em “Comunidades remanescentes de quilombos em áreas ocupadas pelas Forças Armadas no Brasil (pós-1964): uma síntese desafiadora”.

2 Para entender o que são as Comissões de Soluções Fundiárias e por que elas são consideradas um importante instrumento atual para as garantias do direito à terra e à moradia, recomenda-se a leitura dos artigos “A atuação da Comissão de Soluções Fundiárias no Estado de Goiás diante da luta pela reforma agrária e da reação conservadora de bases oligárquicas”; e “Poder Judiciário e conflitos fundiários: a atuação da Comissão de Soluções Fundiárias do TRF da 2ª região”.

3 Para maiores informações a respeito do que se trata o “Invasão Zero” e de como tem sido sua atuação, o dossiê traz o verbete “Invasão Zero: a nova contrarreação do latifúndio”; e ainda o material de “Mapeamento de projetos de lei relacionados ao ‘Invasão Zero’ na Câmara dos Deputados (2023-2024)”, produzido pelo NAJUP Luiza Mahin.