Sobre o novo arcabouço fiscal: uma breve avaliação

 

Boletim nº 69, 27 de abril de 2023

Por Kaio Pimentel (IPPUR-UFRJ) e Daniel N Conceição (IPPUR-UFRJ)

A proposta do Novo Arcabouço Fiscal (NAF) feita pela equipe econômica do governo Lula 3 representou uma grande decepção para quem compreende que o Estado brasileiro pode – e tem o dever de – promover o crescimento econômico com inclusão social. A decepção é ainda maior porque este entendimento parecia central nas propostas do atual presidente durante sua campanha eleitoral. Neste breve texto vamos apresentar os termos principais do NAF que justificam tal decepção. 

A proposta do NAF feita pelo Governo Federal, em termos gerais:

  1. Estabelece um novo teto para o crescimento percentual dos gastos primários reais do governo entre 0,6% (piso) e 2,5% (teto). Dentro desta banda, a despesa pode crescer até 70% do incremento da receita primária do governo. 
  2. Torna a meta de resultado primário menos rígida do que o regime fiscal anterior, uma vez que agora estabelece uma banda entre os limites inferior e superior. 
  3. Protege os investimentos públicos, cujo total não poderá ser reduzido abaixo do valor executado em 2023 e pode ser elevado pelo excesso de arrecadação em relação à banda superior do resultado primário. Pela sua natureza discricionária, os investimentos públicos eram sacrificados quando o governo realizava um ajuste fiscal. Este fato levou, com o Teto de Gastos, a um dos níveis de investimento públicos mais baixos da história, insuficiente até para repor a depreciação do estoque de capital do governo. 

O NAF possui avanços inegáveis em relação ao Teto de Gastos promulgado em 2016 pela Emenda Constitucional 95/2016 (EC95). Isto ocorre pois:

  1. A despesa primária, congelada pela EC95, volta a poder crescer em termos reais. O piso de 0,6% de crescimento real e as bandas para a meta de primário permitem que a despesa primária ao menos não seja reduzida numa contração da economia, o que aprofundaria ainda mais uma recessão. 
  2. O estabelecimento de uma banda para a meta de resultado primário deve diminuir os contingenciamentos ao longo do ano, que atrapalham muito o planejamento e funcionamento do Estado brasileiro.
  3. Os parâmetros principais que regulam a potência da política fiscal poderão ser alterados a cada 4 anos, o que é bem mais flexível do que uma regra fiscal rígida com duração de 20 anos, como o Teto de Gastos.

Entretanto, o NAF não deve ser avaliado apenas quanto aos seus avanços em relação ao regime fiscal anterior, em que o Teto de Gastos Primários era o elemento central. Afinal, mesmo economistas (desnecessariamente) preocupados com a saúde financeira do Estado brasileiro reconhecem o fracasso da EC95, comprovadamente incompatível com um Estado minimamente funcional. Sobretudo, o NAF deve ser avaliado em relação ao que era possível e adequado ser feito à luz da boa teoria econômica e das potencialidades da economia brasileira.

Nossa opinião é que o NAF não está à altura do atual desafio econômico brasileiro. Tampouco leva na devida consideração o que é compatível com as atuais condições da economia brasileira. Cabe lembrar que foi a tentativa fracassada de ajuste fiscal em 2015, instituída pelo governo de Dilma Rousseff, que jogou a economia brasileira em sua recessão mais profunda e duradoura. Economistas e gestores públicos deveriam ter aprendido um pouco mais sobre as consequências políticas da austeridade fiscal baseada na restrição de despesas públicas. Ao produzirem estagnação econômica e desemprego desnecessários, governos progressistas acabam contribuindo para que forças reacionárias ganhem apoio da população e cheguem ao poder por meio do voto popular. 

A década entre 2011 e 2020 foi um desastre do ponto de vista do desemprenho da economia brasileira. A inflexão econômica foi iniciada em 2015, quando a ex-presidente Dilma Rousseff entregou o Ministério da Fazenda a Joaquim Levy, um economista ultraliberal fanaticamente apegado a seu diagnóstico de que era preciso realizar um “ajuste fiscal” por meio do corte de gastos públicos para que a economia brasileira fosse (re)colocada em sua trajetória de crescimento sustentável. Todos os objetivos declarados desse ajuste falharam. O nível de PIB brasileiro só retornou ao mesmo nível de 2014 (ano de pico deste indicador) em 2022 e o Gráfico I abaixo mostra que o Brasil ainda possui, em 2022, um PIB per capita 4,8% menor que o pico de 2013.

Gráfico I. Brasil: Evolução do PIB per capita real¹ entre 2003 e 2022 (2013 = 100,0)

1. Medido em Reais constantes de 2022.
Fonte: Banco Central (2023).

Ao estabelecer apenas 2,5% como limite máximo para crescimento das despesas primárias, o NAF fixa um teto muito baixo para o crescimento real da despesa primária do governo ao longo do próximo quadriênio. Assim, o governo acaba abrindo mão, voluntariamente, do principal instrumento disponível para gerir o nível de demanda agregada e impactar positivamente o nível de renda e emprego da economia.  Observa-se, além disso, que absolutamente nada garante que a despesa primária crescerá próximo ao limite deste teto. Vale registrar que 2,5% é um patamar muito inferior à taxa de crescimento real da despesa primária durante os anos em que o PT esteve no poder, período em que a renda per capita brasileira teve um salto de 33,5% entre 2003 e 2014, como indicado no Gráfico I.

A atual equipe econômica do Governo Lula 3, mesmo com diversos integrantes ‘keynesianos’ parece seguir apegada às ideias da teoria neoclássica, base teórica das ações de política econômica desde 2015. Neste caso, a ideia é que a taxa de crescimento potencial da economia brasileira é estruturalmente baixa e qualquer tentativa de promover crescimento superior torna o gasto público inflacionário. Pelo menos é o que se lê na Seção de Perguntas e Respostas elaboradas pelo próprio Ministério da Fazenda, que afirma que o teto de 2,5% para o crescimento das despesas primárias evita “gastos excessivos” em períodos de aceleração da economia. Assim, para qualquer taxa de crescimento acima da mínima, caberia à política fiscal apenas se ajustar ao crescimento da economia, que, por sua vez, seria independente dos gastos do governo, uma vez que o crescimento da despesa dependerá do crescimento da receita. 

A fonte da “inspiração” do governo parece vir do que se pratica em alguns países europeus, que adotaram regras de gasto público estabelecendo como teto para o crescimento do gasto público a taxa de crescimento do PIB potencial. Entretanto, a hipótese que justifica as práticas europeias supõe que a taxa de crescimento do gasto público não afeta sistematicamente a taxa de crescimento da economia. Trata-se de uma premissa falsa. Não é uma coincidência que no Governo Lula 2 observou-se a maior taxa de crescimento médio para a economia brasileira (4,5% a.a), justamente quando a despesa primária mais cresceu nos últimos 30 anos (pelo menos). Assim, a utilização da experiência europeia como exemplo a ser seguido é inadequada, seja porque são países que já têm um PIB per capita bem maior que o brasileiro, seja porque são países que crescem pouco e abriram mão do exercício pleno de suas soberanias monetárias. Se o propósito é de fato dar uma guinada no crescimento da economia brasileira, por que não se aproximar da política fiscal das economias que mais cresceram nas últimas décadas?

Simulações preliminares mostram que se o NAF tivesse sido adotado em 2003, parte substantiva do gasto federal que ajudou no crescimento econômico brasileiro e atenuou nossas fraturas sociais não poderia ter sido feito. Para que tenhamos ideia da diferença, nos Governos Lula (1 e 2) a despesa primária cresceu 7,2% ao ano e contribuiu (e muito!) para o crescimento da economia brasileira. Por outro lado, a redução violenta do ritmo de crescimento das despesas primárias a partir de 2015 contribuiu muito para a contração econômica em 2015 e 2016 e baixíssimo crescimento desde então. 

Desde o Golpe de 2016, a Constituição Federal de 1988 foi severamente atacada numa tentativa escancarada de estancar o processo civilizatório que ela possibilitou por meio de vinculações entre receita e gasto, que forçavam governos de distintas orientações políticas a ampliarem, ainda que pouco, os gastos sociais, construindo, assim, o incipiente Estado de Bem Estar brasileiro. O NAF, ao estabelecer como limite para a despesa primária 70% do crescimento da receita primária (com algumas exclusões), dado o piso de 0,6%, aponta tacitamente que o ajuste fiscal é o objetivo central da política fiscal do governo Lula 3. Ou seja, ao invés de perseguir metas funcionais como a criação de empregos e o desenvolvimento econômico, o governo estabelece que a prioridade é o saneamento de suas contas. Além disso, o governo sabe que o NAF é incompatível com as vinculações constitucionais entre alguns gastos garantidores de direitos fundamentais e receitas. Por isso, membros da equipe econômica já afirmaram que o governo deve submeter uma proposta que altera a regra de crescimento dos gastos obrigatórios, como despesas com saúde e educação. Assim, declara à sociedade brasileira que o saneamento fiscal também é mais importante do que a garantia destes direitos.

O ano de 2020 mostrou de maneira inequívoca que o governo não enfrenta restrições financeiras à sua capacidade de fazer pagamentos. O governo elevou o gasto federal de maneira deficitária enormemente (chegando a incríveis 750 bilhões de déficit primário em 2020) ao mesmo tempo em que postergou o recebimento de impostos para possibilitar as medidas de isolamento social requeridas pela pandemia de COVID-19. Apenas com o auxílio emergencial, foram gastos mais de 230 bilhões de reais em 2020. Em nenhum momento o governo enfrentou qualquer dificuldade para “financiar” gastos tão significativos. Pelo contrário, o juro básico foi (irresponsavelmente) mantido em seu mínimo histórico pelo Banco Central sem que o Tesouro enfrentasse qualquer dificuldade para seguir reabastecendo sua Conta Única através da venda de títulos públicos. O IBGE (2022) aponta que a extensão e o valor do Auxílio Emergencial em 2020 foram cruciais para que os indicadores de pobreza e extrema pobreza caíssem ao menor nível histórico para o caso brasileiro, algo que foi rapidamente revertido em 2021, quando o programa foi drasticamente reduzido em nome do “equilíbrio das contas públicas”, fazendo com que estes índices aumentassem brutalmente na pior fase da pandemia. A partir desta experiência, por que então colocar o ajuste fiscal como o objetivo principal de um governo popular? 

O momento atual de reconstrução do nosso país depois da tragédia pandêmica e do adoecimento de nossas instituições democráticas exige muita coragem. De certo, o governo Lula 3 vem sendo corajoso em diversas outras áreas, enfrentando interesses poderosos na defesa de minorias oprimidas, e na sua relação com outros países. No entanto, o mesmo governo parece acuado demais pelos defensores da austeridade em nome de um desnecessário e contraproducente saneamento das contas governamentais. Governos nacionais não são como famílias, empresas e governos subnacionais que são levados à falência caso gastem sempre mais do que suas rendas. Nossas moedas são dívidas do próprio Estado que nunca deixará de ter dinheiro para realizar seus pagamentos. Longe de serem um problema, gastos públicos superiores à arrecadação de impostos são normalmente necessários para que nossas economias monetárias estejam eficientemente próximas de seus limites produtivos e em trajetórias sustentáveis de crescimento. A trajetória da relação dívida pública/PIB, enquanto uma questão distributiva (não de financiamento), pode ser regulada por meio da diferença entre taxa de crescimento e taxa de juros e da tributação progressiva. O critério correto para identificarmos gastos públicos excessivos ou indesejáveis é o seu impacto sobre variáveis importantes como emprego e preços. Apenas gastos que empurram a economia como um todo para além de seus limites estruturais são excessivos e inflacionários. Infelizmente, ao estabelecer como prioridade a resolução de um problema inexistente (risco de falência estatal), o NAF deixa de identificar limites estruturais para o gasto do governo, que evitem que este seja insuficiente (desperdiçando empregos e oportunidades produtivas) e excessivo (inflacionário).